Gravuras no acervo da BBM: Dossiê Maria Bonomi

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Por: Pedro Perera

A brasileira de alma Maria Bonomi, nascida na Comuna de Meina, no Norte da Itália, construiu desde os anos 1950, após a família ter se mudado para o Brasil, um dos mais sólidos trabalhos de produção gráfica no país. Criadora incansável, sua obra inclui centenas de gravuras feitas em madeira, metal e pedra, obras de arte pública espalhadas pela cidade de São Paulo e em outros cantos do país, esculturas em metal, uma lista que há anos vem crescendo. O acervo de livros da Biblioteca Brasiliana conta com um verdadeiro dossiê a respeito da vida e da obra artística de Maria Bonomi. A coleção, com diversos itens adquiridos ao longo dos últimos anos inclui diversos livros publicados no Brasil e no exterior sobre a obra gráfica de Bonomi, uma série de pequenas publicações de diversas instituições culturais da cidade e gravuras originais da artista feitas em parceria com sua colega, Renina Katz. Com sólida presença no campo da produção artística no Brasil, suas obras integram acervos de importantes instituições e ornam diversos edifícios e estações de metrô. Ao tirar o material da inércia, Bonomi conquista o espaço com sua monumentalidade.

Maria Bonomi em poucas linhas: da Itália para o Brasil

Maria Anna Olga Luiza Bonomi nasceu na região do Piemonte na Itália, filha de Georgina Martinelli Bonomi e Ambrogio Bonomi, em 8 de julho de 1935. Seu avô Giuseppe Martinelli foi um dos homens mais ricos do país na primeira metade do século XX, responsável pela construção do primeiro arranha céu brasileiro, o atual Edifício Martinelli, localizado no centro histórico da cidade de São Paulo, que mesmo pertencendo à prefeitura de São Paulo desde 1975, possui atividades culturais comandadas por uma associação da qual Bonomi atualmente faz parte. 

Nascida numa família rica, e mudando-se para o Brasil em 1944 por conta da guerra na Europa, Maria Bonomi pôde desde cedo manter contato não só com os maiores mecenas do país, tais como Francisco Matarazzo, mas também com grandes artistas, como Lina Bo Bardi. Desde cedo estudou desenho e pintura, apresentou suas obras pela primeira vez na III Bienal de São Paulo em 1955 como a artista mais jovem de todas na época. Ainda jovem, Bonomi dividiu por muito tempo sua carreira de artista plástica com a cenografia para o teatro, área em que atuou com grandes nomes, tais como Antunes Filho, Flávio Rangel e Sérgio Ferrara. 

No mesmo ano de 1955, Maria Bonomi pôde conhecer o trabalho de Lívio Abramo numa exposição de arte contendo algumas gravuras do artista no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Observamos em diversos depoimentos o quão fascinante foi essa experiência, o que a levou a procurar Lívio Abramo para aprender as técnicas de gravura. Em seu livro sobre a vida e obra de Bonomi, o crítico de arte Jacob Klintowitz nos conta que Bonomi tentou ser aluna de Lívio e foi rejeitada inicialmente pelo artista. Este se recusava a ensinar suas técnicas gráficas. Somente com persistência Bonomi é aceita para trabalhar com o artista numa longa parceria de aprendizado até se tornarem parceiros de trabalho num ateliê criado por ambos em 1960, o Ateliê Gravura em São Paulo.  

A própria artista, em alguns depoimentos, diz que os anos de 1960-70, marcados pela ditadura, forneceram o contexto da solidificação de seu trabalho. Bonomi, sem aprofundar-se em muitos detalhes, fala sobre alguns casos de repressão do regime, como quando teve o seu ateliê destruído pela polícia na década de 1960 por causa de uma gravura de 1934 por ser atribuída a um artista comunista da época, ou quando foi detida em 1974 após uma palestra em um museu, ou ainda quando participou de um movimento contra o presidente Castelo Branco para a libertação do cientista Mário Schenberg da prisão em 1965. 

Bonomi nos dá um depoimento muito interessante a respeito do desenvolvimento da gravura no país. A gravura enquanto técnica voltada para as artes plásticas encontrou muitos impedimentos no país, por se tratar de um campo de arte que chega e se desenvolve no Brasil através de artistas com forte relação com o socialismo, seja no sertão nordestino ou no sudeste do país. A perseguição anticomunista, somada ao monopólio da arte em pintura de tela, resultam no que a artista acredita ter sido um verdadeiro impedimento social e mercadológico, que nas últimas décadas tem diminuído.

Desde as últimas décadas, a artista tem atuado paralelamente em diversos projetos artísticos no Brasil e em diversos cantos no exterior. Seu ateliê está localizado na cidade de São Paulo e além de concentrar boa parte de sua produção, funciona como um centro de memória para as artes da cidade. A própria paisagem de São Paulo leva em boa medida, contribuições estéticas da artista. Após realizar sua tese de doutorado em 1999 pela Escola de Comunicação e Artes da USP com o título “Arte Pública. Sistema Expressivo/Anterioridade”, podemos observar uma mudança de percurso bastante sensível, afinal a artista se aproxima cada vez mais de obras públicas de grande magnitude, tais como painéis e esculturas. 

Bonomi no acervo BBM.

A Biblioteca Brasiliana, seguindo a tradição de seus fundadores Guita e José Mindlin, guarda em seu acervo atual uma coleção de gravuras de alguns dos artistas brasileiros de maior renome que produziram em meados do século XX. Nomes como Fayga Ostrower e Renina Katz, possuem um lugar reservado no catálogo de consulta da instituição, e o mesmo acontece com Maria Bonomi. Uma série de livros dão conta de perscrutar a produção gráfica e escultórica da artista. 

O primeiro destaque é a primeira edição do livro infantil de Cecília Meireles Ou isto ou aquilo realizado em 1964 pela Antiga Editora Giroflé. A edição conta com ilustrações e projeto gráfico de Maria Bonomi. Texto e gravura, duas linguagens que apesar de distintas formam uma relação capaz de promover uma melhor fruição do argumento e da experiência literária. A linguagem verbal de Meireles e a linguagem visual de Bonomi amalgamam-se livremente compondo um todo indissociável.

Dois livros publicados mais recentemente merecem o nosso destaque: A Dialética Maria Bonomi de Mayra Laudanna e Maria Bonomi, Gravadora de Jacob Klintowitz, ambos em edições de luxo, compõem uma ampla crônica da trajetória pessoal e estética da artista. Ambos foram realizados através de pesquisas em acervos documentais e com contribuições em primeira mão da própria artista e são muito representativos dos distintos percursos de trabalho trilhados por ela. Ao se deparar com algumas dessas obras dedicadas à artista, percebemos alguns dos porquês que explicam seu destaque nas artes gráficas brasileiras. 

“Eu gosto dos pintores que aos 80 anos ainda permanecem firmes no ateliê, não para repetir pela milésima vez a forma que encontraram um dia, mas para provar algo mais, alguma coisa que prove estarem realmente vivos.” (Laudanna, 2016)

Com esse depoimento, Maria Bonomi nos dá uma mostra de um de seus valores mais importantes, que é a necessidade de reinvenção. As edições presentes na coleção BBM acompanham as inovações de Bonomi no campo das artes. Ao compor gravuras em grandes escalas, Bonomi atua de forma pioneira rompendo com o decoro da forma estética da gravura e decide experimentar tamanhos monumentais para suas obras em madeira abrindo caminhos para experimentações em outros artistas. 

Ateliê de Maria Bonomi

A artista pensa a gravura enquanto linguagem, o que por sua vez significa entender a gravura a partir da maleabilidade e da variedade de técnicas adequando-se à uma ideia ou um conjunto delas. Segundo Bonomi, o que existe é um pensamento gráfico que antecede a materialização da técnica, porque se trata de uma postura mental diante do trabalho artístico. E cada material com suas especificidades fornece os desafios e as soluções para o processo criativo. Gravuras em madeira, em metal e em pedra foram exploradas e experimentadas largamente pela artista. Um álbum contendo 6 gravuras originais de Bonomi em parceria com Renina Katz integra a coleção de obras de arte da Biblioteca. São ao todo duas gravuras em metal, duas litografias e duas digigrafias. Trata-se de um álbum em edição de luxo com tiragem de 90 exemplares assinados e numerados pela artista que podem ser apreciados na Biblioteca.

“Certos materiais são transcendentes e podem transcender a materialidade ao serem combinados e coexistindo. Há todo um percurso de procurar a matéria, os materiais são vários no processo da gravura, e eles combatem entre si, água e ácido, água e gordura […]”

A instalação A Epopeia Paulista, cuja história é apresentada em catálogo presente no acervo da BBM nos dá um pouco dessa mostra. Situada no subsolo da Estação de Metrô da Luz, trata-se de uma obra que mescla em si características da gravura em relevo e da escultura monumental em concreto, dando uma mostra da sua vontade de experimentação do material. A artista foi convidada diretamente pela CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) para ocupar o corredor de ligação da estação da Luz com uma obra sua em 2002 e contou com o apoio do Museu de Arte Contemporânea da USP e de mais de mil voluntários para a execução da obra que levou mais de três meses.  

A Epopeia paulista, 2005

Diversas publicações presentes no acervo da BBM nos dão uma mostra das impressões e marcas da artista deixadas também na cidade de São Paulo. Uma série de catálogos de exposição e encartes de pequenos formatos também estão disponíveis para consulta. Recentemente a Biblioteca Brasiliana pôde contar com a parceria da artista e da professora da Escola de Comunicação e Artes da USP Marisa Midori em um amplo projeto de arte: fruto de uma longa viagem de pesquisa pelas bibliotecas mais impressionantes do planeta, a edição de As bibliotecas de Maria Bonomi, disponível online para consulta, é fruto dessa parceria, que resultou também em uma exposição dos trabalhos realizada na BBM. Algumas das bibliotecas mais impressionantes das Américas, da Ásia e da Europa foram representadas através das xilogravuras de Bonomi. 

Biblioteca Brasiliana USP, gravura do livro As bibliotecas de Maria Bonomi

O cenário cultural da cidade apresenta múltiplos lugares no qual essa memória se desenvolveu a partir do percurso de Bonomi pela arte pública. A artista acredita que esse tipo de arte tem papel significativo na sociedade por contribuir para a composição da paisagem urbana da qual as pessoas se apropriam e se identificam com o lugar. O próprio espaço público é marcado pela monumentalidade de suas obras e a cidade é conquistada por seus trabalhos.

Referências

LAUDANNA, Mayra. “A Dialética Maria Bonomi”. Neuchâtel – Suisse: Éditions du Griffon, 2016.

LAUDANNA, Mayra. “A Dialética Maria Bonomi”. Neuchâtel – Suisse: Éditions du Griffon, 2016.

KLINTOWITZ, Jacob. “Maria Bonomi, Gravadora”. São Paulo: Cultura, 2000. 

“Pioneiros e Discípulos”. Fundação Calouste Gulbenkian. Centro de Arte Moderna, 1988. 

“Registro e Impressões. Artistas Seminais”. Secretaria de Estado da Cultura: Casa das Rosas Galeria estadual de Arte.

CAMARGO, Luís Hellmeister. “Poesia infantil e ilustração: estudo sobre Ou Isto ou Aquilo de Cecília Meireles”. Campinas: Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas. Dissertação de Mestrado, 1998.  

MEIRELES, Cecilia. “Ou isto ou aquilo”. São Paulo: Giroflé, 1964. 

DEACET, Marisa Midori; BONOMI, Maria. “As Bibliotecas de Maria Bonomi”. São Paulo: Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, 2017.

KLINTOWITZ, Jacob. “Maria Bonomi, Gravadora”. São Paulo: Cultura, 2000. 

“Pioneiros e Discípulos”. Fundação Calouste Gulbenkian. Centro de Arte Moderna, 1988. 

“Registro e Impressões. Artistas Seminais”. Secretaria de Estado da Cultura: Casa das Rosas Galeria estadual de Arte.

CAMARGO, Luís Hellmeister. “Poesia infantil e ilustração: estudo sobre Ou Isto ou Aquilo de Cecília Meireles”. Campinas: Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas. Dissertação de Mestrado, 1998.  

Depoimentos em vídeo. 

Espaço arte 1  https://www.youtube.com/watch?v=bvaEmUYTXTM
Provocações    https://www.youtube.com/watch?v=KlkXfeGDiMM

Pedro Perera é graduando em História pela FFLCH-USP.

Curadoria

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