Por Patricia Freire do Nascimento
As definições dos dicionários trazem a palavra “sertão” como o interior, região distante do mar e, com certo sentimentalismo, como o coração das terras. Assim, pressupõe-se que qualquer região afastada da costa poderia ser caracterizada como sertaneja. Contudo, na percepção brasileira, a palavra provoca uma relação instantânea com diversos outros fatores de cunho cultural, econômico e social: a região árida, a seca, a população retirante, personagens como o cangaceiro, o líder religioso, o vaqueiro.
Percebe-se que desde a definição do termo não há exatamente uma limitação à natureza meramente geográfica, afinal, o Sertão também é “o coração das terras”, órgão vital dotado de conotação sentimental. Assim, o Sertão transborda para além da questão territorial e diz respeito também às histórias, à ficção e ao imaginário. Nesse sentido, desde antes de seu desbravamento, a região já era tida como um “mar misterioso”, tanto em relação aos perigos que apresentava quanto às riquezas que guardava. Ainda que seja oposto à direção do litoral, esse desbravamento pode ser visto de forma análoga às grandes viagens marítimas, também incertas, que acabavam por despertar o misticismo e o imaginário dos viajantes.
Nesse contexto de desbravamento, é importante ter em mente a lógica de civilização versus barbárie que acompanhava a conquista da região. Tal lógica, presente na colonização como um todo, teve maior dimensão na região sertaneja, pois o domínio do litoral se deu de maneira estratégica logo no início da ocupação, deixando o interior como uma incógnita selvagem. Essas leituras do interior podem ser tomadas como alguns dos pilares da construção das narrativas e identidades sertanejas.
Jorge Henrique da Silva Romero aponta, no detalhe do mapa que se encontra no Atlas Miller (1519), a tradução clara dessa visão, havendo uma divisão entre dois mundos. À medida que o litoral é dado como um espaço do colonizador, organizado pela palavra, e portanto, pela civilização, o interior do território é representado de forma figurativa, em que se nota o caráter de desordem, de convivência entre animais e humanos e de imaginário fantástico, que coloca um dragão onde hoje chamamos de centro-oeste brasileiro.
O sertanejo
Somada à percepção de Sertão, constituiu-se também a percepção de um “outro”, o sertanejo. Tão pertinente e curiosa é tal visão que para os próprios habitantes do interior, o “sertão de verdade” sempre se encontra “lá”, mais distante, nunca “aqui”, tendo em vista a caracterização exótica e pitoresca da identidade do sertanejo e do Sertão em si. Esse distanciamento também pode, à primeira vista, parecer inconveniente à ideia de vínculo forte estabelecido entre o Sertão e a população que o habita, contudo, tal vínculo, ainda assim, se mostra essencial.
Gustavo Barroso, em Terra de Sol, diz que “a alma do sertão modelou a alma do sertanejo”. Considerando a questão do distanciamento citado e da autoidentificação como pessoa do sertão , há abertura para o questionar qual sertão seria esse, seria o “de verdade”? Seria o Sertão construído sobre temáticas como a seca, o cangaço, o retirante, a luta, a esperança ? Seria a região Nordeste do Brasil e o norte de Minas Gerais ou fala-se do interior do Sul, de centro-oeste e da Amazônia também?
Para Jorge Henrique da Silva Romero:
O sertão está em toda parte
É múltiplo
Invisível
O sertão pula de nós
E vai parar nos outros
O sertão está nas cidades
Nos homens e mulheres…
Às vezes eu fico tão inundado
Que transborda sertão
Pra todo lado!
Sertão, sertões
Falar de Sertão é, nessa visão, falar de sertões diversos, tendo em vista que não há uma definição meramente territorial nos dicionários nem concreta entre as próprias pessoas ditas do sertão. Nessa linha, Guimarães Rosa coloca que “o sertão está em toda parte” e que “O sertão é do tamanho do mundo”; e mais, “sertão: é dentro da gente”. Assim, a definição do Sertão se mostra mais aberta e abrangente do que delimitadora, contemplando o âmbito da pessoa e o âmbito de mundo.
A literatura roseana tem, sem dúvida, um peso imenso sobre a projeção de Sertão que se constituiu no meio literário. Para além da recriação da linguagem, Rosa retrata o sertão sob uma perspectiva mística, através de símbolos e mitos de validade universal. Tendo suas obras dentre as mais reconhecidas na literatura brasileira, a importância da temática sertaneja pode ser vista, dessa forma, com significância em termos de identidade em nível nacional.
Antes de Rosa, José de Alencar trata no romance O Sertanejo (1875), de aspectos como heroísmo, luta, simplicidade e autoidentificação no interior nordestino. Fundamental para o projeto literário do escritor, a obra também aborda a questão de identidade nacional.
Na virada do século Euclides da Cunha projetou, em Os Sertões (1902), uma visão de grande repercussão e impacto sobre esse território. De forma mais pontual e acerca de um acontecimento específico, a Guerra de Canudos, Cunha foi importante interlocutor entre o Sertão e núcleos urbanos no início da República. Apesar de partir do conflito baiano, sua leitura acerca da Terra, do Homem e da Luta trouxe, de forma significativa e não tão pontual, uma nova perspectiva acerca do Sertão, diferente da que ele próprio tinha antes de entrar em contato direto com a região.
Gustavo Barroso também pode ser tido como um importante caracterizador do Sertão no início do século XX. Em Heróis e Bandidos (1917), por exemplo, ele analisa a região Nordeste, e o cangaço em especial, a partir de parâmetros deterministas sobre os crimes e a violência da região. Mais tarde, Rachel de Queiroz, em O Quinze (1930), retoma a temática do sertão e enfoca a questão da seca, trabalhando a importância do fenômeno climático na vida sertaneja. A autora trata também do descaso governamental com a região e de questões sociais.
Alguns exemplos apenas deixam claro que são as leituras e interpretações que exercem o papel principal na abordagem da riqueza da temática sertaneja e que as formas de expressão do Sertão são relevantes em nível regional, nacional e até mesmo universal. Portanto, abordar os sertões é fazer uma leitura de gente, de identidade, de cultura, de interpretação, de sociedade, de religião. Também é falar de Brasil ou “Brasis” , de política, de região, de mundo, de interior, de terra e de coração.
Referências
BOLLE, Willi. O Sertão como Forma de Pensamento. Scripta, Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 259-271, 1998.
ROMERO, Jorge Henrique da Silva. Sertão, sertões e outras ficções: Ensaio sobre a identidade narrativa sertaneja. 2015. Tese (Doutorado em Teoria e Crítica Literária) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2015.
_____________________
Patricia Freire do Nascimento é graduanda em Relações Internacionais pelo IRI-USP
Não posso deixar de concordar que o sertão está em todos os lugares, salta do espaço geográfico e se dispõe com “as terras do coração”. Porém, no conjunto das simbologias brasileiras — especialmente no campo da literatura —, o sertão adquiriu espaço, personas, cenários e realidades. Podemos citar Vidas Secas, de Graciliano Ramos, ou tantos outros livros que se estabeleceram sobre o alicerce do sertão como uma área restrita, com sua cultura, vida comum e, principalmente, com seus estigmas.