Poesias Infantis e a formação do cidadão republicano

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A produção literária de Olavo Bilac, frequentemente lembrada a partir de sua poesia parnasiana, compreende ainda crônicas, artigos, peças publicitárias e contos. Durante a Primeira República (1889-1930), Bilac se engajou politicamente em prol da modernização nacional, em campanhas que passavam, dentre outras propostas, pela construção de um novo projeto educacional brasileiro. Nesse contexto, Poesias Infantis (1904) está inserido em uma parcela bastante particular da obra de Bilac: os livros infantis, concebidos para servirem de base à educação cívico-moralizante.

por Caroline Ramazini Dubovicki

Olavo Bilac: poeta, cronista, educador, nacionalista…

Para além de sua extensa e consagrada trajetória no universo das Letras, Olavo Bilac foi, pessoalmente, um enérgico republicano. Sucessor de Machado de Assis no jornal Gazeta de Notícias e contribuinte diário no periódico A Notícia, Bilac veiculou muitas de suas ideias políticas publicamente, em crônicas que sinalizavam os principais desafios a serem enfrentados pela sociedade brasileira e tangiam a necessidade de modernizar o país sob os ares da Primeira República. Das crônicas aos livros escolares, a busca por um Brasil reformado esteve impregnada em grande parte da produção bilaquiana de fins do século XIX e início do XX.

Tendo como referência a experiência europeia de nação, o poeta advogou em favor de uma agenda modernizante cujas medidas solucionariam problemas comuns à população brasileira: pautas relacionadas à obrigatoriedade do serviço militar, à saúde pública e mesmo ao embelezamento da capital federal foram acolhidas por Bilac e pelo meio intelectual ao qual pertencia – à época, grande parte dos homens letrados se engajou em campanhas cívicas, inspirados pela recém-proclamada República e por correntes de pensamento em voga, como o positivismo e o cientificismo. Muitas dessas ideias estão prefiguradas nas crônicas periódicas assinadas por Bilac, e quase sempre sob a forma de críticas às instituições públicas e suas políticas que, para o autor, frequentemente caminhavam na contramão do progresso. Apesar de seus escritos cobrirem diversos aspectos da vida política e social do país, há uma problemática que parece basilar para Bilac, considerada pelo poeta a causa primária de todas as mazelas encontradas no Brasil: o analfabetismo.

Capa da Gazeta de Notícias de 13 de novembro de 1900. A ilustração de Olavo Bilac homenageia o retorno do autor ao Brasil após um período em Buenos Aires a serviço do jornal

Empossado em 1898 como inspetor de ensino da rede pública brasiliense, a preocupação de Olavo Bilac no que concerne à educação na República parece natural e esperada. Ainda assim, é digna de nota a defesa ferrenha que o autor faz da alfabetização em massa e da obrigatoriedade do ensino primário para todos os brasileiros: é na produção bilaquiana que encontramos uma grande fatia da militância por um ensino público reformado, que atenderia às mais diversas esferas da sociedade – quanto a isso, é importante manter em vista que a escolarização, sob um contexto cívico-moralizante, trespassa o indivíduo e deve servir ao projeto de construção da nação. Portanto, mais do que uma forma de promover o desenvolvimento pedagógico e social do aluno, Bilac e seus semelhantes enxergavam na alfabetização uma ferramenta capaz de garantir um progresso futuro ao país: para o escritor, o analfabetismo era o maior responsável por não existirem, no Brasil, “eleições”, “dignidade cívica” ou “sentimento de nacionalidade”, alguns dos elementos que considerava fundamentais para a construção de um povo forte e uma nação próspera. 

De fato, era amplamente difundida pelos meios intelectuais da época a ideia que o Brasil era uma nação “a ser educada”. À virada do século, a mobilização em prol de novas políticas pedagógicas urgia: como conceber um novo formato de educação, capaz de construir o ideal de civilidade necessário à manutenção da recém-instaurada República? Nesse novo contexto político, o papel das escolas primárias está associado ao desenvolvimento da cidadania e à manutenção de certos valores, como o patriotismo e o moralismo cívico, já que a formação de intelectuais permaneceria resguardada a determinadas instituições e restrita a seletos indivíduos. 

Assim, impulsionado pelo nacionalismo e ávido pela construção de uma nova cultura escolar, Olavo Bilac escreveu diversos livros para o público infantil. Suas obras foram rapidamente incorporadas ao currículo da educação primária e, hoje, constituem objeto relevante para a análise de alguns dos ideais pedagógicos circulantes durante a Primeira República – além de proporcionarem uma outra vista da produção literária do príncipe dos poetas. 

A educação e os valores em Poesias Infantis

Poesias Infantis, um dos livros infantis mais populares de Olavo Bilac, foi publicado em 1904 – até 1961, o título teve mais de 26 edições. O livro conta com cerca de cinquenta poemas, além de quatro fábulas de Esopo, dispostas ao final do livro. A obra foi escrita sob encomenda, e especificamente para uso escolar, conforme esclarece o prefácio do autor.

O livro é organizado a partir de duas seções: As Estações e Os Meses. Internamente, os poemas que as compõem também correspondem a temáticas específicas, como, por exemplo, a natureza, o tempo (além do tempo cronológico, Bilac abarca as fases da vida e a consequente maturação física e psicológica do homem), a virtude e a religiosidade. Cada um dos poemas é acompanhado por uma ilustração, disposta imediatamente antes de seu título, que simboliza o conteúdo dos versos. 

Em seu prefácio, Bilac reitera seu compromisso com o Brasil, exprimindo o desejo de “contribuir para a educação moral das crianças de seu país”, mas sem a “exagerada futilidade com que costumam ser feitos os livros do mesmo gênero”. De fato, os versos de Bilac são sóbrios e em nenhum momento recorrem à fantasia ou a quaisquer elementos férteis à imaginação infantil. O repúdio do autor por esses artifícios revela a intenção formativa da obra, a partir da qual a criança é entendida como um pequeno adulto, desconsiderando-se as particularidades da infância em prol do desenvolvimento moral e cívico. Portanto, além de estimular a leitura como instrumento para a alfabetização, os livros escolares bilaquianos foram concebidos para constituir parte do processo de formação do cidadão ideal republicano. 

Nos poemas “Justiça”, “O trabalho”, “A coragem”, “Modéstia”, “O credo”, “A pátria” e “A casa”, Bilac destaca algumas das qualidades do bom cidadão – mas, apesar de ter reservado uma porção específica da obra para tratar especificamente das virtudes, esses valores atravessam toda a obra. Em “Os pobres” e “As formigas”, por exemplo, o autor demonstra as supostas benesses associadas à caridade e ao trabalho recorrendo a um formato semelhante ao das fábulas, nas quais a história é encerrada com uma reflexão de ordem moral.

Trecho do poema A Pátria. Num tom ufanista, buscava-se embutir a ideia de que o Brasil é um país esplêndido como nenhum outro

O patriotismo é um dos temas mais recorrentes em Poesias Infantis, e grande parte dos poemas têm pelo menos um verso dedicado à celebração da nação. Na subseção Os Meses, apenas os poemas “Janeiro”, “Julho” e “Dezembro” não contam com menções explícitas a eventos históricos, festas tradicionais ou figuras emblemáticas brasileiras. Mesmo em peças aparentemente desconexas ao tema nacional, o patriotismo emerge: em “O Avô”, por exemplo, a figura do progenitor é exaltada a partir da contribuição militar do homem durante a juventude.

Este que, desde a sua mocidade, 

Penou, suou, soffreu, cavando a terra,

Foi robusto e valente e, em outra edade,

Servindo à pátria, conheceu a guerra

.

Combateu, viu a morte, e foi ferido;

E, abandonando a carabina e a espada,

Veio, depois de seu dever cumprido,

Tratar das terras, e empunhar a espada.

[…] 

.

E fica alegre quando vê que os netos,

Ouvindo-o, e vendo-o, e lhe invejando a sorte,

Batem palmas, extacticos, e inquietos,

Amando a pátria sem temer a morte!

O Avô (pp. 52-53)

Nesse contexto, em que o valor do cidadão está intrinsecamente associado com sua capacidade e disponibilidade de servir à pátria, os homens pobres e analfabetos são considerados um empecilho à construção da nação brasileira republicana. Em discurso proferido na Faculdade de Direito de São Paulo em 15 de outubro de 1915, Olavo Bilac afirma que esses homens “não são brasileiros, nem ao menos verdadeiros homens”, chamando atenção para as altas taxas de analfabetismo entre as classes mais baixas ao declará-los “inimigos da carta de abc”.

É também digna de atenção a representação infantil na obra. Frequentemente posicionados como protagonistas das histórias de Poesias Infantis, as crianças são inseridas no livro como modelos de cidadania, que devem inspirar boa conduta nos leitores mirins. Na capa da primeira edição estão ilustradas crianças bem vestidas, que lêem em meio à natureza. Essa primeira aproximação à obra revela precocemente a motivação que permeia seu conteúdo: a formação de homens alfabetizados, capazes de atuar como cidadãos em um novo contexto social e político.

Capa da primeira edição de Poesias Infantis, volume disponível na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin

Assim, submetendo o público infantil a um padrão moral, cívico e político a ser seguido, é também limitado o desenvolvimento psicoemocional da criança. Se hoje a literatura infantil e infantojuvenil passa pelo desenvolvimento da sensibilidade, da autonomia e da criatividade em seus leitores, as obras cívico-moralizantes da Primeira República mantinham em seu horizonte a padronização do comportamento da criança em prol da defesa da pátria  – mais do que espaço de transmissão de conhecimentos técnicos e científicos, o papel da escola seria o de preparar os indivíduos para a vida social segundo os moldes republicanos de cidadania.

Nesse sentido, Poesias Infantis é, mais do que mera literatura infantil, um exercício nacionalista de Olavo Bilac. O autor, que em muito perseguiu uma nova realidade para o Brasil, engajou-se em uma missão patriótica que passava pela figura das crianças como pequenos adultos, responsáveis pelo desenvolvimento de uma nova concepção de nação brasileira que emerge a partir da Proclamação da República. Nesse sentido, o processo de alfabetização e a prática da leitura não deveriam estar alheias ao culto à pátria e às boas maneiras, valores demonstrados rigorosamente nos versos de tais poesias.

Referências 

BARCHI, F. Y. .; CUNHA, F. L. da. As letras e a nação: Olavo Bilac e suas crônicas sobre educação (1900-1906). Cadernos de História da Educação, [S. l.], v. 20, n. Contínua, p. e008, 2020. DOI: 10.14393/che-v20-2021-8. Disponível em: <https://seer.ufu.br/index.php/che/article/view/58223>. Acesso em: 06 mai. 2024.

BILAC, Olavo. A defesa nacional. Rio de Janeiro: Edição da Liga da Defesa Nacional, 1917. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4713. . Acesso em: 9 mai. 2024.

BILAC, Olavo. Poesias infantis. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1904. Disponível em: <https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4694>. Acesso em: 9 mai. 2024.

GAZETA de Noticias. Rio de Janeiro, RJ: [s.n], 1900-1919. Disponível em: <http://bndigital.bn.br/acervo-digital/gazeta-noticias/721026>. Acesso em: 23 mai. 2024.

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Caroline Ramazini Dubovicki é graduanda em Letras (Português/Espanhol) pela FFLCH-USP e bolsista da BBM pelo Programa Unificado de Bolsas (PUB-2023-2024).

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