Desenvolvimento e Colonização: a Ferrovia Madeira-Mamoré na obra de Franz Keller-Leuzinger

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Em 1o de agosto de 1912, o barulho estridente de uma pesada locomotiva ressoava pela floresta amazônica. Estava enfim inaugurada a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM), localizada no atual estado de Rondônia.

por Millena Pereira Machado

A EFMM foi uma construção de grande porte ocorrida no atual estado de Rondônia, nas proximidades da fronteira com a Bolívia. Uma obra como essa, inevitavelmente, precisava mobilizar diversos operários e especialistas por um longo período de tempo: passaram mais de 50 anos desde os primeiros projetos até a inauguração da estrada de ferro. Entre os indivíduos do grupo de especialistas a trabalharem para que a ferrovia pudesse começar a ser construída estava o engenheiro, fotógrafo e desenhista alemão Franz Keller-Leuzinger. Ele deixou registros que mostram alguns porquês de planejar uma estrada de ferro para o interior norte do país.

Keller-Leuzinger foi o responsável por uma expedição comissionada pelo Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas do Império do Brasil para explorar principalmente os rios Amazonas e Madeira e averiguar as condições para a construção de uma ferrovia. Após uma série de relatórios feitos por ele, os escritos e ilustrações dessa viagem realizada em conjunto com seu pai, Joseph Keller, deram forma à obra Vom Amazonas und Madeira (“Sobre o Amazonas e o Madeira”) publicada originalmente na Alemanha, em 1874. O livro apresenta três aspectos principais: é um relato do trajeto feito por eles, do Rio de Janeiro à Amazônia; uma descrição detalhada das populações, fauna e flora da região; um conjunto de cerca de 72 gravuras.

Capa da primeira edição de Vom Amazonas und Madeira, 1874

Juntamente com a grande importância da expedição (que o autor relata ter chegado a contar com mais de oitenta pessoas e várias embarcações), o relato aponta para dois motivos principais pelos quais ele foi comissionado. O primeiro era que, como engenheiro, deveria estudar as intervenções necessárias para viabilizar a construção da ferrovia Madeira-Mamoré e os potenciais ganhos para o governo em investir nesse empreendimento. O segundo, era o caráter exploratório da viagem, pois mesmo que a região amazônica já tivesse sido navegada, o conhecimento sobre ela era menor em relação ao restante do território brasileiro. Assim, para atender a ambas as funções, Keller demonstra diversas de suas concepções na narrativa de viagem, que também nos ajudam a acessar aspectos da realidade amazônica no século XIX.

[Uma Jangada sobre as ondas], gravura do primeiro capítulo. Retrata Franz Keller-Leuzinger e Joseph Keller nos afluentes do Rio Amazonas, no estado do Pará, depois de iniciar sua rota no Rio de Janeiro.

Em nome do desenvolvimento econômico

O fato de ter sido comissionado pelo governo brasileiro e de documentar uma empreitada grande e dispendiosa revela que o projeto de ferrovia tinha motivações econômicas para existir. Não era preciso planejar apenas quanto de investimento seria necessário, mas também de onde viria a mão de obra? O que se faria a respeito dos moradores estabelecidos na região por onde passariam os trilhos? Quais seriam as medidas depois que ela fosse construída? Para responder a algumas dessas perguntas, o engenheiro escreve:

“Algumas centenas de operários europeus necessários para a construção da estrada de ferro do rio Madeira certamente permanecerão nestas terras, a despeito das febres e dificuldades. Dependerá então apenas da habilidade da companhia e da conduta do governo brasileiro […].”

Trecho do capítulo I, tradução de Adriano Gonçalves Feitosa

Nesse trecho é enfatizado a importância dos trabalhadores europeus e, em outros, o autor ainda se refere especialmente aos alemães. A concepção que Keller-Leuzinger desenvolve na obra é de que o Brasil deveria tomar medidas para a modernização de todas as regiões, especialmente da Amazônia. Todo esse potencial, segundo ele, poderia ser bem administrado pelos europeus, capazes de equiparar o país dos trópicos ao avanço das nações europeias. Logo, esses trabalhadores viriam para as proximidades da ferrovia, se estabeleceriam ali e, depois da inauguração, poderiam desenvolver outras atividades que complementassem aquelas já realizadas pelos indígenas, como veremos adiante.

Essa concepção desenvolvimentista, ora brasileira, ora estrangeira, também foi retratada nas gravuras. A imagem reproduzida abaixo é um exemplo das ilustrações do autor que unem diversos elementos: as embarcações da expedição, a vegetação, a população e um tipo de trabalho desenvolvido na Amazônia. A principal atividade econômica da região norte era o extrativismo vegetal, especialmente o processo de fabricação da borracha. Keller-Leuzinger escreve que essa atividade era pouco aproveitada pelos indígenas e reconhece sua importância e capacidade de movimentar lucros. Nesse contexto, a função da ferrovia seria acelerar o escoamento da borracha, aproveitando-se da mão de obra nativa e empregando diversos estrangeiros no Brasil.

[Moradia de um rico seringueiro]

Essa concepção de levar o desenvolvimento para o interior do território já havia afetado outras localidades no decorrer da ocupação do país e mais cedo ou mais tarde haveria de atingir a Amazônia. Assim, a concepção e a construção da estrada de ferro são partes de um projeto em que as grandes construções e os ganhos econômicos levariam a civilização para essa região, nos moldes europeus do que seria “civilização”.

Colonização do Alto Madeira

Sobre o caráter exploratório da viagem, a ideia de levar a civilização aparece também na maneira como o autor aborda as populações nativas estabelecidas nas proximidades de onde seria construída a EFMM.

“Se fosse possível nos próximos anos pacificar os índios Caripunas, tornando-os vizinhos toleráveis aos brancos, este seria o primeiro esforço para a colonização do Alto Madeira. Mesmo que não possam ser empregados como escavadores e mateiros na construção de estradas e ferrovias, ainda assim poderiam ser úteis […].”

Trecho do capítulo II

Diversos povos foram encontrados pelos viajantes, entre eles os Muras, Araras, Mundurucus e Parintintins, mas o autor trata especialmente dos Caripunas. Para além da concepção comum à época de que os nativos eram naturalmente selvagens, Keller-Leuzinger também dedica boa parte dos seus escritos às possibilidades dos Caripunas, considerados mais amigáveis por ele, se tornarem civilizados. Nesse sentido, a construção da ferrovia seria também uma oportunidade para que esses nativos pudessem colaborar para o desenvolvimento da região e, para isso, precisavam ser pacificados pelos brancos. A colonização desses indígenas, portanto, é algo fundamental na visão do autor. É uma justificativa ideológica para que a ferrovia fosse construída, que por sua vez une-se às justificativas econômicas tratadas anteriormente.

[Primeiro encontro com os indígenas caripunas]

O resultado desse processo foi a destruição, como na maioria dos contatos com não-indígenas. Muitos morreram, principalmente por doenças, invasões ao território promovidas pela indústria extrativista e pelos conflitos que sucederam o início da construção da estrada de ferro. A mortalidade não afetou apenas nativos, mas os motivos da fatalidade em estrangeiros e brasileiros de outras regiões do país comumente se davam pela inadaptabilidade à região, ao clima ou por pobreza. O contato violento com os Caripunas foi o responsável pela redução da população até a atualidade, nos municípios de Porto Velho e Nova Mamoré, onde está localizada a terra indígena desse povo.

“Sobre o Amazonas e o Madeira” é um exemplo de como projetos desenvolvimentistas frequentemente se dão em detrimento de trabalhadores e das populações nativas. O autor cumpriu suas duas funções no trabalho para o governo brasileiro e a serviço dos interesses de estrangeiros interessados na mina econômica que é a Amazônia. A ferrovia foi construída e nos seus primeiros anos de fato rendeu algum ganho aos investidores do projeto, contudo foi desativada em 1972, sessenta anos depois da inauguração. O impacto humanitário também rendeu uma repercussão negativa à Madeira-Mamoré, que recebeu o apelido de Ferrovia do Diabo. Essa discussão se insere num debate mais amplo e atual de projetos para a região amazônica, hoje dominada pela extração vegetal, mineral e pela agropecuária, responsáveis por um processo intenso e contínuo de dano à realidade socioambiental sob a égide do desenvolvimento.

[Topografia: Mapa do Rio Madeira no trajeto entre as corredeiras de Santo Antônio e Guajará-Mirim], mapa feito pelo autor que apresenta o trajeto da expedição e os nomes das localidades que aparecem no texto

Referências

“Vom Amazonas und Madeira”, obra original de Franz Keller-Leuzinger que pode ser consultada no acervo digital (https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/6648) e físico da Biblioteca Brasiliana;

“Os Rios Amazonas e Madeira: esboços e relatos de um explorador”, de Franz Keller-Leuzinger, tradução apresentação e notas de Adriano Gonçalves Feitosa, Belo Horizonte: Dialética, 2021;

Indicação de leitura

“A Exploração dos rios Amazonas e Madeira no Império Brasileiro por Franz Keller-Leuzinger: imprensa e nação”, artigo de Moema de Rezende Vergara, Almanack. Guarulhos, n.06, p.81-94, 2o semestre de 2013.

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Millena Pereira Machado é graduanda em História pela FFLCH-USP e bolsista da BBM pelo Programa Unificado de Bolsas (PUB-2023-2024).

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