Dom Quixote – Cervantes, Portinari e Drummond: Um diálogo entre as artes

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por João Paulo Panucci Gomes Rosa

Em 1973, foram publicados pela primeira vez um conjunto de 21 desenhos de Candido Portinari e de 21 poemas de Carlos Drummond de Andrade inspirados em Dom Quixote, o grande romance da literatura espanhola, escrito por Miguel de Cervantes no século XVII. Em 1985, as releituras visual e poética do pintor e do poeta brasileiros foram lançadas no México.

Nessa edição mexicana, a tradução para o espanhol ficou a cargo de Edmundo Font e foi lançada numa tiragem de três mil exemplares. O diálogo entre prosa, poesia e pintura torna-se ainda mais interessante com as especificidades do exemplar da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, que conta com uma dedicatória de Drummond ao casal Mindlin, na qual o poeta se auto-intitula “um intrometido entre Cervantes e Portinari”

Dedicatória de Drummond ao casal Guita e José Mindlin.

Podemos dizer, primeiramente, que a presente obra possui extrema representatividade quando o assunto é relações literárias entre o Brasil e as literaturas hispânicas: um diálogo entre pintura, poesia e um clássico imortal do Século de Ouro espanhol.

Trata-se de uma edição que apresenta 21 desenhos do artista Candido Portinari feitos a lápis de cor, representando passagens da obra cervantina Dom Quixote de La Mancha, sem dúvida a obra mais conhecida entre as escritas no idioma castelhano, que, por antonomásia, ficou conhecido como a língua de Cervantes. 

Acrescidos aos desenhos, temos 21 poemas que Carlos Drummond de Andrade compôs especialmente para as gravuras do pintor. Assim, podemos presenciar um diálogo desses dois gênios do movimento modernista brasileiro com a obra, o que torna ainda mais interessante a tradução desses poemas para o espanhol, língua original na qual foram escritos os feitos do célebre cavaleiro de La Mancha

Com o título Don Quijote: Drummond, Portinari, a edição em espanhol foi publicada pela Secretaria da Educação Pública do México. Pode-se dizer, com tudo isso, que essa imbricada relação entre as artes, fomentadora desta tradução, tem sido frequente desde o lançamento de Dom Quixote, uma das obras mais lidas e referenciadas da história. 


 Capa da obra Don Quijote: Drummond, Portinari. Glosas de Carlos Drummond de Andrade; Veintiún dibujos de Candido Portinari. Traducción de Edmundo Font. Cidade do México : Secretaría de Educación Publica, 1985. Este exemplar possui encadernação em tecido cinza, com estampa em detalhes em azul e marrom.

Dom Quixote 

Escrito pelo espanhol Miguel de Cervantes e publicado em duas partes, a primeira em 1605, a segunda dez anos depois, o livro, que é um dos precursores do romance moderno, retrata a loucura de Alonso Quijana, um fidalgo espanhol que imaginava ser um cavaleiro andante.

Um homem tranquilo, já idoso para o seu tempo, Alonso Quijana começa a se afeiçoar e consumir em excesso os livros de cavalaria, o que o leva à sandice. Dessa forma, trocando seu nome para Dom Quixote, parte para as aventuras em companhia de seu vizinho e escudeiro, o lavrador Sancho Pança. 

Suas façanhas já foram representadas por célebres artistas, como Gustave Doré, Pablo Picasso, Salvador Dali e, é claro, Candido Portinari. Esses artistas imortalizaram cenas como o embate contra os moinhos de ventos, as cambalhotas do Quixote na Serra Morena, Sancho e Quixote cavalgando lado a lado, entre outras imagens que vêm à mente imediatamente quando se menciona o “cavaleiro da triste figura”. 

Assim, Dom Quixote funciona como uma espécie de anti-herói, na medida em que é uma paródia crítica dos livros de cavalaria, muito consumidos à época. Valendo-se da sátira e da comédia, Cervantes criou um livro único, trazendo à tona grandes questões universais.

Portinari

Dom Quixote e os moinhos de vento

Portinari

Filho de imigrantes italianos, Candido Portinari nasceu no interior do estado de São Paulo em 1903. Um dos maiores pintores brasileiros, Portinari teve uma expressiva participação no movimento modernista, tendo sido contemporâneo de Mário de Andrade, Oswald de Andrade e outros importantes nomes do período. 

Em 1956, Portinari começou a fazer as ilustrações que figuram na obra, após pedido do editor José Olympio três anos antes. No total, finalizou 21 ilustrações, usando lápis, pois já apresentava problemas de intoxicação com as tintas, o que o levaria à morte alguns anos depois. 

Com forte apelo ilustrativo, a obra de Cervantes foi bastante produtiva para as representações: as descrições e caracterizações dos personagens facilmente propõem uma imagem; a forma como Cervantes descreve Dom Quixote, Rocinante, e o escudeiro Sancho Pança, por exemplo, cria um arquétipo caricatural passível de reconhecimento imediato. O mesmo pode ser dito para os episódios do romance, como o ataque aos moinhos de ventos e às ovelhas, Quixote e Pança trotando em suas montarias, o “manteamento” de Sancho, entre outros. No início do primeiro capítulo, por exemplo, Cervantes assim descreve o “cavaleiro da triste figura”, de forma que beira o pictórico:

Frisaba la edad de nuestro hidalgo con los cincuenta años. Era de complexión recia, seco de carnes, enjuto de rostro […] Fue luego a ver su rocín, y aunque tenía más cuartos que un real y más tachas que el caballo de Gonela, que «tantum pellis et ossa fuit», le pareció que ni el Bucéfalo de Alejandro ni Babieca el del Cid con él se igualaban.

Tanto é assim, como bem aponta Navarro Flores (2011), que o próprio personagem Sancho reconhece a possibilidade de futuras representações artísticas das façanhas de Dom Quixote, em um episódio no qual a discussão é uma pintura clássica numa hospedaria: 

-Yo apostaré -dijo Sancho- que antes de mucho tiempo no ha de haber bodegón, venta ni mesón, o tienda de barbero, donde no ande pintada la historia de nuestras hazañas. Pero querría yo que la pintasen manos de otro mejor pintor que el que ha pintado a éstas.

Assim, os episódios e personagens retratados por Portinari em seus 21 desenhos são, no geral, bem característicos e reconhecíveis para quem está minimamente familiarizado com a obra cervantina. Um detalhe interessante é a presença de Sancho Pança: o escudeiro aparece em boa parte das ilustrações, ocupando, em algumas delas, um destaque especial, demonstrando o apreço do pintor brasileiro pelo personagem. 

Além disso, o pintor faz uso de cores contrastantes, bem como de figuras geométricas, como plano de fundo para representar o real e o irreal, a loucura e a lucidez, oposição que perpassa o livro de Cervantes desde a primeira página até a última.

Dom Quixote acomete as ovelhas, pensando tratar-se de dois exércitos conflitantes. Ao fundo aparecem os pastores atirando pedras ao “cavaleiro da triste figura”.

Drummond

Os poemas de Drummond para os desenhos de Portinari foram publicados em 1973, quando saiu a primeira publicação conjunta. Fazendo um interessante diálogo intertextual, o poeta mineiro compõe 21 glosas poéticas, uma para cada um dos desenhos de Portinari, que o teriam impressionado profundamente. 

Dialogando, por um lado com o texto em prosa de Cervantes, por outro com os desenhos do artista modernista brasileiro, Drummond versifica essas experiências artísticas e traz uma leitura própria do Quixote, moderna. Podemos dizer, de maneira geral, que este livro em si é todo um processo de tradução, na qual é aberto um espaço para a criatividade imaginativa dos artistas envolvidos.

Drummond inicia a série com um soneto, poema de formas fixas dos mais tradicionais e consagrados da literatura, ao mesmo tempo em que abre espaço para um poema concreto, em “Uno en cuatro”, e outro de composição bastante livre, “Aventura del caballo de palo”. 

De certa forma, a figura louca do cavaleiro dialoga com o gauche do poeta, na medida em que a realidade é adversa ao herói cervantino, da mesma forma que ocorre ao eu lírico das obras iniciais de Drummond. Assim, ocorre uma identificação do poeta com o personagem. Dessa maneira, o poema final, “Nocturno antefinal”, apresenta Alonso Quijano como um perdedor, um gauche

Tradução

A tradução, por outro lado, é um assunto importantíssimo dentro da obra de Cervantes, que chega a abordá-la como um tópico literário e que está na base do romance. No capítulo nove da primeira parte, o narrador do Quixote diz ter encontrado alguns escritos em árabe na cidade de Toledo, tratava-se da história do cavaleiro manchego. Não tendo domínio do árabe, o narrador propõe a um “mouro aljamiado”, ou seja, que compreendia a língua semítica, a tradução dos textos mediante um pagamento. Por fim, ao longo do livro, Cervantes volta a fazer referência ao tradutor em diversos momentos, aludindo a trechos perdidos ou não detalhados pelo tradutor, tendo sempre em vista o tópico de que o livro fora originalmente escrito por um escritor árabe, o historiador Cide Hamete Benengeli. 

Nesse sentido, a obra que estamos abordando é muito significativa: trata-se de uma tradução ao espanhol dos versos de Drummond que dialogam, junto aos desenhos de Portinari, com o texto narrativo do Quixote, escrito originalmente em castelhano. Temos, assim, um diálogo entre gêneros distintos, sendo a tradução um elo fundamental para que tal ocorra. 

Edmundo Font, tradutor da edição mexicana, é um diplomata e escritor mexicano formado em letras pela Universidad Nacional Autónoma de México. Atuando na diplomacia mexicana, Font trabalhou em diversos países, incluindo o Brasil, entre os anos de 1980 e 1986, quando chefiou as Missões Consulares no Rio de Janeiro, tendo trabalhado na tradução de Dom Quixote de Drummond e Portinari justamente nesse período.    

Apesar da importância do tradutor no contexto dessa obra, a edição não faz nenhuma menção considerável a Font, além de sua referenciação bibliográfica como tradutor, é claro. Não obstante, reserva um texto intitulado “Notas bibliográficas” para dedicá-lo a Drummond e Portinari.

De forma geral, a tradução não se distancia muito dos efeitos estilísticos do original, considerando a proximidade entre as duas línguas; isso pode ser visto no poema “Uno en cuatro” (Um em quatro), de aspecto concreto e experimental, que foi facilmente traduzido para o castelhano sem que fosse necessária uma alteração da forma, como pode ser visto na imagem abaixo.

No ano de 2020 o Museu Castro Maia, em parceria com o Projeto Portinari e com o Instituto Cervantes, lançou uma versão bilíngue da obra, que contou ainda com a participação musical do Maestro Norberto Macedo, associado ao projeto por meio de uma exposição, com sua suíte para violão “Dom Quixote”. A edição, publicada em um contexto comemorativo (em 2019 foram celebrados os 40 anos de existência do Projeto Portinari), não faz nenhuma menção às traduções anteriores, e ainda reivindica para si a “coragem de traduzir para a língua espanhola”.

Literatura brasileira em tradução na BBM

Este texto é resultado das pesquisas feitas para o projeto “Literatura brasileira em tradução na BBM”, que consiste no levantamento, estudo e difusão de informações sobre obras da literatura brasileira em tradução pertencentes ao acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. O recenseamento e a posterior seleção dos títulos permitirá conhecer: a extensão e a importância dos livros traduzidos em quatro domínios linguísticos: inglês, espanhol, francês e alemão; a recorrência, nesse conjunto, de obras de determinados períodos, autores e gêneros literários; o percurso dos livros até sua chegada e inclusão na coleção por meio do exame de marcas autógrafas e paratextos. O projeto é coordenado por Hélio de Seixas Guimarães

Referências bibliográficas

FLORES, Célia Navarro. Drummond, o cavaleiro de tristíssima figura e Dom Quixote, o gauche maior. In: Anais do 2º Congresso Brasileiro de Hispanistas, São Paulo, 2002. Disponível em: http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?pid=MSC0000000012002000200008&script=sci_arttext&tlng=pt Acesso em 16/06/2023

FLORES, Célia Navarro. Portinari, leitor do Quixote. Revista Lumen et Virtus, v. II, n. 5, p. 193, setembro/2011. ISSN 2177-2789.

Don Quijote: Drummond, Portinari. Glosas de Carlos Drummond de Andrade; Veintiun dibujos de Candido Portinari. Traducción de Edmundo Font. Cidade do México : Secretaría de Educación Publica, 1985. 

FONSECA, Maria Gabriella Flores Severo; (2015). Lendo o Quixote nas ilustrações de Gustave Doré e Candido Portinari. Scripta Alumni – Uniandrade, (14), INSS: 1984-6614

GIRÁLDEZ, Miguel Cruz. La locura caballeresca de Don Quijote. Universidad de Sevilla, Revista de Humanidades, Sevilla, v. XX, n. X, p. 61-69, 2008. ISSN: 1130-5029

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João Paulo Panucci Gomes Rosa é graduando em Letras pela FFLCH-USP e bolsista do projeto “Literatura brasileira em tradução na BBM”, coordenado por Hélio de Seixas Guimarães (PUB-2022-2023).


Curadoria

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