Colônia Cecília – uma experiência anarquista no Brasil

Share

Não se faz uma sociedade nova com homens emprestados de uma sociedade velha.” 

Giovanni Rossi

Colônia Cecília

A Colônia Cecília foi uma experiência anarquista realizada no Paraná, entre 1890 e 1894. A comunidade reuniu principalmente imigrantes italianos e, em seu auge, chegou a abrigar 250 habitantes. Desta experiência, restaram alguns relatos de ex-colonos e seus filhos, além de ensaios de seu fundador, Giovanni Rossi. A partir desses documentos, recuperados ao longo do século XX, a história da colônia foi contada diversas vezes em filmes, minisséries e livros, entre os quais está Colônia Cecília – Uma aventura anarquista na América, escrito em 1942 por Afonso Schmidt, escritor e militante anarquista.

A história contada por Afonso Schmidt

O livro relata a história de Giovanni Rossi, apelidado de Cárdias desde a idealização do projeto na Itália até o fim da colônia. A versão de Schmidt conta que Rossi, já com o plano de formar uma colônia anarquista, decide tentar se estabelecer no Brasil depois de uma conversa com o amigo Carlos Gomes, compositor e músico brasileiro, que descreveu sua terra natal com entusiasmo e contou que D. Pedro II estava a caminho da Itália. Diante da oportunidade, o italiano entra em contato com o imperador e consegue a doação de terras brasileiras onde poderia realizar sua experiência.

O grupo que fundou a colônia era bastante heterogêneo. Para alguns, a viagem era simplesmente uma oportunidade de abandonar uma vida infeliz, e mesmo entre os mais entusiastas do anarquismo, eram notáveis algumas diferenças na forma como pensavam em pôr em prática seus ideais. Algumas questões concretas sobre sua forma de sustentação começaram a aparecer tão logo se estabeleceram no Paraná. A pequena quantidade de dinheiro que tinham arrecadado ainda na Itália através de anúncios em jornais socialistas acabou rapidamente. Os recursos tirados da natureza não eram suficientes e a produção própria não ia bem, já que grande parte dos colonos não tinha experiência com agricultura. Desde então, e em muitos momentos ao longo dos quatro anos seguintes, os colonos precisaram completar seus recursos com trabalho externo à comunidade, principalmente na construção de estradas de ferro na região – o dinheiro arrecadado era sempre destinado a um fundo coletivo da colônia, mas nem todos concordavam que essa forma de trabalho se adequasse ao projeto anarquista ideal. Giovanni Rossi considerou, posteriormente, que “era a incompreensão do grande sonho o mal que deveria destruí-lo”.

Outra questão concreta tocava em um ponto muito sensível a Cárdias, o amor livre. O filósofo acreditava que uma comunidade que abrisse mão da propriedade privada teria também uma postura libertária quanto aos relacionamentos amorosos. Para ele, mesmo que não fosse esse o projeto inicial de qualquer sociedade livre, o fim da propriedade privada levaria, mais cedo ou mais tarde, a uma nova concepção de amor. Na Colônia Cecília, porém, isso demorou a acontecer – as primeiras mulheres da colônia chegaram com seus parceiros ou famílias formadas e assim se mantiveram. Um dos poucos casos envolvia o próprio Cárdias, que se relacionou com uma mulher que tinha também outro parceiro, mas mesmo esse passou a ser um relacionamento monogâmico depois que o primeiro parceiro da mulher abandonou a colônia.

O fim da colônia, como conta Afonso Schmidt, aconteceu progressivamente. As terras doadas pelo imperador D. Pedro II em 1889 só foram ocupadas pela Colônia no ano seguinte, quando a monarquia já tinha caído. Anos após a proclamação da república a doação de D. Pedro II foi contestada e o governo republicano impôs uma série de cobranças pelo uso das terras da colônia. O relato de Schmidt conta que diante dessa dívida, a colônia se organizou como nunca e, entre as plantações próprias de milho e o trabalho fora da comunidade, juntou dinheiro suficiente para regularizar sua situação. O tesoureiro do grupo, porém, dizendo que ia à cidade pagar as contas, levou o dinheiro e não voltou mais: foi o começo do fim da colônia. A partir desse momento, os colonos começaram a ir embora, se estabeleceram em cidades próximas, e a comunidade foi aos poucos se esvaziando.

Outras versões

Os relatos sobre a Colônia Cecília divergem em alguns pontos. O contato com D. Pedro II, a doação das terras e o fim da colônia são os principais pontos de discordância. É possível que Giovanni Rossi nem pretendesse se estabelecer no Paraná: alguns dizem que as terras doadas eram no Rio Grande do Sul e outros defendem que, não tendo tido contato com o imperador, o filósofo pretendesse ir ao Uruguai, mas, impossibilitado por diversas razões, estabeleceu-se onde foi possível.

Há consenso quanto ao impacto que a mudança de regime causou na colônia, mas não quanto às principais causas de seu fim. Alguns relatos sugerem que a vida ali já era miserável e que o abandono cada vez mais frequente era natural – a cobrança de impostos teria apenas agravado a situação e o roubo, atribuído a um colono comum que tinha acesso ao fundo como todos os outros, seria consequência da desorganização.

Apesar das polêmicas em torno dos fatos e dos temas, dos períodos de miséria e de tantos problemas, a experiência da colônia terminou sem nenhum episódio de violência, sem proclamar um líder e, mesmo nos momentos de maior necessidade de produção e trabalho, sem imposição de obrigações a nenhum de seus habitantes.

 

Algumas publicações e outras produções sobre o tema:

Afonso Schmidt, Colônia Cecília. São paulo, Brasiliense: 1980.

Giovanni Rossi, Colônia Cecília e outras utopias. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2000.

Miguel Sanches Neto, Um amor anarquista. Rio de Janeiro: Editora Record, 2005.

Cândido de Mello Neto, O anarquismo experimental de Giovanni Rossi. Ponta Grossa, Paraná: Editora UEPG, 1998.

Isabelle Felici, A verdadeira história da Colônia Cecília de Giovanni Rossi.(http://segall.ifch.unicamp.br/publicacoes_ael/index.php/cadernos_ael/article/viewFile/104/110)

Zélia Gattai, Anarquistas, graças a Deus. Rio de Janeiro: Record, 1998.

Anarquistas, graças a Deus, minissérie da Globo inspirada na história de Zélia Gattai, adaptada por Walter George Durst e dirigida por Walter Avancini. (http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/minisseries/anarquistas-gracas-a-deus/fotos-e-videos.htm)

Colônia Cecília, minissérie originalmente exibida pela Band, escrita por Patrícia Melo e Carlos Nascimbeni, e dirigida por Hugo Barreto. (http://redeglobo.globo.com/platb/rpctv-revistarpc/2012/04/22/assista-a-todos-os-episodios-de-colonia-cecilia/)

Colônia Cecília, peça de Renata Pallotini. Porto Alegre: Tchê!, 1987.

La Cecilia, filme de Jean-Louis Comolli. (https://www.youtube.com/watch?v=MTHaEWuIsJg&feature=youtu.be)

 

Maria

4 Comments

  1. Ja li o livro do Miguel Sanches Neto, um sistema social diferente mexe com a cabeça da gente

Deixe um Comentário

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.