Iraçéma: o primeiro romance brasileiro traduzido para o inglês

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por Aline Kobori

O romance de José de Alencar, Iracema: lenda do Ceará, de 1865, foi a primeira obra ficcional brasileira traduzida para a língua inglesa, recebendo o título Iraçéma, the Honey-Lips: a legend of Brazil. Essa edição, lançada em 1886 com esforços do casal Isabel e Richard Burton, é peça fundamental da história da Literatura Brasileira.

O século XIX foi um período de grandes movimentações sociais e políticas no Brasil, seguindo a tendência da Europa pós-Revolução Francesa. A literatura também foi influenciada pelos ares da Independência de 1822 e pela cultura trazida pelos estudantes brasileiros que estudavam na França. As ideias românticas, então, eram absorvidas amplamente pelos intelectuais daqui e adaptadas às nossas características e necessidades. Buscando encontrar o herói nacional, símbolo puro do que seria o Brasil, os escritores voltavam-se para a exuberante natureza e construíam, sob os moldes da Europa, o nosso “bom-selvagem”, o indígena. 

José de Alencar (1829-1877), político e escritor, foi um dos grandes nomes do movimento literário romântico, do qual foi um dos fundadores, com sua trilogia indigenista. Um de seus livros mais celebrados, Iracema (1865), foi o  primeiro texto de prosa ficcional brasileiro a ser traduzido para a língua inglesa, trabalho consentido pelo próprio autor e assinado por Isabel Burton (1831-1896), e que ganhou o título Iraçéma, the Honey-Lips: a Legend of Brazil

José de Alencar

A Biblioteca Brasiliana guarda dois exemplares desta rara edição, que, além de representar uma parte importante da História da Literatura Brasileira, é um testemunho dos processos de tradução e publicação do século XIX. O interesse de Alencar em expandir os leitores do romance e do casal Burton em mostrar para a “civilização” o exotismo de terras longínquas deixaram um legado duradouro tanto para o cânone literário brasileiro quanto para a recepção estrangeira de nossa literatura. 

Os exemplares de Iraçéma

Iraçéma, the Honey-Lips: a legend of Brazil  foi publicado em 1886, cerca de 20 anos após a publicação em português, pela renomada editora britânica Bickers & Son e com autorização do próprio José de Alencar. Além disso, há o prefácio de Isabel Burton e um argumento histórico, que contextualiza a história para o leitor estrangeiro. A editora, ainda, escolheu publicar no mesmo volume, além da tradução de Iracema, a de Manoel de Moraes, de Pereira da Silva, com a assinatura de Isabel e Richard Burton (1821-1890) como tradutores.

Página de rosto de Iraçéma

A primeira edição para o inglês conta com dois exemplares na BBM; ambos dispõem de capas duras adicionadas para conservação e são pequenos, com 17cm x 11,5cm. Perteceram à coleção de Rubens Borba de Moraes, posteriormente doada a José Mindlin, e por isso trazem os ex-libris dos dois colecionadores. 

O exemplar número 1 traz uma capa dura simples, protegida por um plástico maleável e com bordas marrons, e lombada mais detalhada com arabescos dourados, embora os escritos tenham se apagado com o tempo. Entre as folhas, encontra-se ainda um recorte de revista com menção à obra. O ex-libris de Borba de Moraes está na folha de guarda, e o de Mindlin, na folha seguinte.

Os dois exemplares de Iraçéma do acervo BBM

Já o exemplar de número 2 tem sua capa estofada com estampa e bordas amarronzadas. Os cortes inferior, superior e dianteiro estão em dourado, e a lombada também possui a inscrição nesta coloração, porém sem outros ornamentos. Na contracapa, encontramos a capa original colada; na próxima folha, o ex-libris de Rubens e, na seguinte, o de José. 

Capa de Iraçéma

A tradutora e a tradução 

Isabel Burton, Lady Burton ou Isabel Arundell – antes de casar-se -, foi uma mulher de origem nobre da Inglaterra. Sua família era influente no país e tinha uma forte convicção católica, o que, em 1850, levou os Arundell de Wardour a se instalarem em Bolonha, na França. É nesse período que conhece Richard Burton, então soldado e explorador do Oriente Médio e da Ásia. Os dois, porém, só se reuniram para o casamento 11 anos depois; enquanto Isabel percorreu a Europa neste meio tempo, Richard partiu em uma expedição para a África. 

Em 1861, após o casamento, Richard Burton iniciou seu trabalho como diplomata na Ilha de Fernando Pó, na Guiné-Equatorial, hoje conhecida como Bioco. O casal chega ao Brasil em 1865, atracando no Rio de Janeiro, onde se hospedaram por algumas semanas, e se instalaram no consulado brasileiro da cidade de Santos. Aqui, viajaram para Minas Gerais, e o marido também conheceu a Bahia, explorando o Rio São Francisco, e o sul do continente. As expedições originaram registros detalhados das duas partes, já que Richard Burton aprendeu o português, e expressou a visão europeia de um Brasil exótico e selvagem.

Essa visão estrangeira acabou se mostrando presente na tradução de Iracema. Isabel viveu entre Santos e São Paulo, onde provavelmente participou do círculo cultural da cidade e, por conseguinte, conheceu o autor José de Alencar. As histórias que o escritor estava publicando coincidiram com os interesses do casal: as quatro obras selecionadas pelos Burton para edição e tradução – Iracema, Manuel de Morais, Duas viagens ao Brasil e O Uraguai – envolviam a temática indígena. O encontro entre eles rendeu a primeira tradução de uma obra ficcional brasileira para a língua inglesa, com Isabel elogiando Alencar em seu prefácio:

“… he deserves to be as well known in England as in Brazil, and it must be the result of the usual modesty of a really clever man that he is not so.

He is their first prose and romance writer. His style, written in the best Portuguese of the present day – one to be learnt and copied – is in thorough good taste and feeling. It contains poetic and delicate touches, and beauty in similes, yet it is real and true to life.” (Marcações próprias)

“… ele merece ser tão bem conhecido tanto na Inglaterra quanto no Brasil, e isso deve ser resultado da modéstia habitual de um homem realmente inteligente.

Ele é o primeiro escritor de prosa e romance deles. Seu estilo, escrito no melhor português da atualidade – que deve ser aprendido e copiado – é de extremo bom gosto e sensação. Contém toques poéticos e delicados, a beleza nas comparações, ainda que real e fiel à vida.”

(Tradução minha)
Prefácio escrito por Isabel Burton

Neste mesmo prefácio, há registros essenciais para a compreensão do processo de tradução, além de resquícios da visão que o casal britânico tinha do Brasil. Quando a mulher ressalta sua intenção de traduzir o livro da maneira mais fiel possível e conta que José de Alencar pessoalmente lhe instruiu sobre a língua tupi, percebe-se a tendência de preservar e enfatizar o que seria mais exótico no país. Algumas escolhas de tradução, como a presença maciça de notas de rodapé, muitas adicionadas pela própria tradutora, com termos tupi e a adição de sinais gráficos inexistentes na língua original, também fortalecem tal perspectiva. 

Recepção de Iraçéma em solo estrangeiro

Richard Burton, grande interessado em História e Literatura, em vários escritos argumentou a respeito da necessidade de os falantes da língua inglesa conhecerem a Literatura Brasileira e elaborou uma lista de obras que deveriam ser traduzidas. José de Alencar igualmente desejava expandir o público leitor de suas obras, visto a sua participação ativa na publicação da primeira edição em língua inglesa. Seus livros, de fato, foram lidos e recebidos no exterior.

Primeiro capítulo de Iraçéma

Conforme destaca Valéria C. Bezerra (2016), na Inglaterra, a obra foi destinada a um público acadêmico e elitista específico, e o jornal The Glasgow Herald, apesar de reconhecer o mérito de Alencar, avalia negativamente a tentativa de transpor um romance tão singular para o inglês. A dificuldade em assimilar tantos novos termos indígenas, com extensas notas de rodapé, seria um fator de distanciamento entre o autor e os britânicos. Nos Estados Unidos, por outro lado, o romance foi apreciado e elogiado por sua qualidade artística. Alencar, inclusive, ganhou verbetes em enciclopédias da época, como a Johnson’s Universal Cyclopedia (1898), o que  motivou a tradução de outros romances seus, a exemplo de O Guarani.

Nota-se, assim, que houve diferenças na recepção inicial de cada país, porém manteve-se a percepção do Brasil como um país selvagem e exótico. Os próprios tradutores e editores da obra, Isabel e Richard Burton, sempre demonstraram particular interesse pelas tribos indígenas que aqui habitavam, contemplando títulos que abordavam o tema. A crítica inglesa considerou o romance indigenista de difícil compreensão para o público popular europeu, e a estadunidense atraiu-se pelo “estilo nativo” (Andrews, 1887, apud Bezerra, 2016). 

Iraçéma estabelece-se como título fundamental do acervo da Biblioteca. Seus dois exemplares trazem consigo o início da história da tradução de obras brasileiras para o inglês, língua que posteriormente seria tomada como “universal”, e evidenciam o processo de internacionalização de uma literatura produzida longe dos grandes centros editoriais, como Paris, Londres e Nova York. 

Literatura brasileira em tradução na BBM

Este texto é resultado das pesquisas feitas para o projeto “Literatura brasileira em tradução na BBM”, que consiste no levantamento, estudo e difusão de informações sobre obras da literatura brasileira em tradução pertencentes ao acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. O recenseamento e a posterior seleção dos títulos permitirá conhecer: a extensão e a importância dos livros traduzidos em quatro domínios linguísticos: inglês, espanhol, francês e alemão; a recorrência, nesse conjunto, de obras de determinados períodos, autores e gêneros literários; o percurso dos livros até sua chegada e inclusão na coleção por meio do exame de marcas autógrafas e paratextos. O projeto é coordenado por Hélio de Seixas Guimarães.

Bibliografia

ALENCAR, José Martiniano de. Iracema, the honey lips: the legend of Brazil [Iracema: Lenda do Ceará]. Translated with the author permission. Tradução de Isabel Burton. 1. ed. Londres: Bickers, 1886.

NASCIMENTO, Patricia Freire do. Isabel Lady Burton, uma viajante oitocentista. Blog da BBM. 18 de janeiro de 2021. Disponível em <https://blog.bbm.usp.br/2021/isabel-lady-burton-uma-viajante-oitocentista/> . Acesso em 20 de julho de 2023.

BEZERRA, Valéria Cristina. The Honey-lips e The Guarany: os romances de José de Alencar em língua inglesa no final do século XIX. Signo, v. 41, n. 72, p. 16-26, 25 out. 2016.

BATISTA, E. L. A. DE O. O método de Isabel Burton na primeira tradução de um romance brasileiro para a língua inglesa ? Iraçéma, the honey-lips, de José de Alencar. Revista de Letras, v. 2, n. 40, 9 nov. 2021.

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Aline Kobori é graduanda em Letras pela FFLCH-USP e bolsista do projeto “Literatura brasileira em tradução na BBM”, coordenado por Hélio de Seixas Guimarães (PUB-2022-2023).


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