“onde existe o estímulo para o jovem, há uma mão de ferro que oprime a mulher e a desanima”
A história da luta das mulheres por igualdade de direitos é relativamente recente. Embora o movimento feminista só ganhe esse nome no fim do século XIX, as primeiras obras de mulheres que reivindicam espaço na educação e na política aparecem no século XVIII, inspiradas pelos ideais iluministas de igualdade e liberdade e pelo sucesso da Revolução Francesa. Esse processo, entretanto, é longo e vagaroso, e a conquista de alguns desses direitos é muito mais recente do que costumamos imaginar. Até as mais básicas dessas reivindicações, como o direito à educação e ao voto – que hoje parecem banais – ganharam força apenas no fim do século XIX e só vieram a se realizar, de fato, ao longo do século XX.
No Brasil, a história é ainda mais recente e quase totalmente concentrada no século XX, embora não seja totalmente descolada da história de conquistas ao redor do mundo – o boom do movimento sufragista nos Estados Unidos e na Europa, assim como outras das principais vitórias das mulheres nesses lugares também só acontecem depois de 1900. Ainda assim, há algumas brasileiras pioneiras com discursos feministas na segunda metade do século XIX, mas são casos isolados. É esse o caso da autora do Tratado sobre emancipação política da mulher e direito de votar, que assina o manifesto sob a sigla A.R.T.S.
Publicado em 1868, no Brasil imperial e escravocrata, o tratado reivindica o direito das mulheres de participar da política, do mercado de trabalho e da educação, e defende o voto feminino também como um símbolo dessa possibilidade de participação. Quase nada se sabe sobre a autoria e a circulação da obra, publicada pela famosa editora do tipógrafo Francisco de Paula Brito, responsável também pelo lançamento, 30 anos antes, da primeira revista brasileira direcionada especialmente ao público feminino, A mulher do Simplício, ou A Fluminense Exaltada. O anonimato da escritora, provavelmente uma mulher de classe alta, é sintomático: as ideias radicais defendidas no livro muito possivelmente não seriam bem recebidas no meio intelectual onde circularia a obra [ver, no fim do texto, nota sobre a descoberta da identidade da autora do texto].
O tratado tem forma de manifesto e se propõe a questionar os principais argumentos da época para manter a mulher longe da escola, do trabalho e da política, e apresenta de forma contundente as falácias que constroem as crenças do senso comum. Assim, não é apenas uma questão de protestar contra o tratamento desigual que é destinado às mulheres, mas de explicitar a fragilidade das razões que o justificam e com isso conscientizar as mulheres sobre um espaço na esfera pública que deve existir e ser ocupado por elas. A importância do sufrágio feminino é a de também permitir que as mulheres ocupem seu próprio lugar na política – elas não querem só ser lembradas e representadas por seus maridos, mas falar por si mesmas: “não só procuramos proteger a mulher, mas antes pô-la em uma posição de se proteger ela mesma”.
As contradições da sociedade patriarcal conservadora que impede a mulher de participar da esfera pública são postas em cheque constantemente no manifesto, que assume a postura radical de tentar esclarecer como a maior parte das características ditas naturais das mulheres, que as tornariam inadequadas a certos espaços e funções, são na verdade determinadas pela forma como essas mulheres são educadas. Essa suposta naturalidade é uma crença difundida pelos próprios homens interessados em mantê-las afastadas dos espaços majoritariamente masculinos.
A autora mostra, por exemplo, os problemas das mulheres no mercado de trabalho: como são poucas as funções que são autorizadas a exercer, a oferta de trabalho é muito menor do que a procura, o que é causa direta do salário baixíssimo que ganham as poucas mulheres que trabalham – quando as oportunidades são raras, sempre haverá uma que aceita trabalhar por menos do que as outras. É com essa mesma clareza que o manifesto derruba a justificativa da maternidade como impedimento para o trabalho ou participação política das mulheres, que já teriam uma atividade integral à qual se dedicar: “nem mulheres nem homens precisam de uma lei que exclua eles de uma ocupação quando eles tem empreendido uma outra que é incompatível com ela. Ninguém se lembra de excluir o sexo masculino porque um homem pode ser soldado em serviço ativo (…) A razão deste caso para as mulheres, é a mesma que para os homens: onde existe uma incompatibilidade real não é necessária a lei, mas é injustiça fazer da incompatibilidade um pretexto para exclusão dessas que não estão nesse caso.”
Mas a principal denúncia do tratado diz respeito à educação das mulheres. Lançando mão de alguns casos excepcionais de mulheres que tiveram sucesso – na ciência, por exemplo -, a autora demonstra que o mito do homem mais inteligente do que a mulher é apenas uma consequência da educação à qual cada um tem acesso. Para ela, “só a educação faz a diferença; diz-se que a mulher é deserdada da natureza, é destituída do espírito de invenção, que nada tem produzido; que o homem é astrônomo, poeta, maquinista e descobridor de terras; mas se ele recebesse a triste educação da mulher, que só serve para pasto do despotismo do homem, quero saber que habilidades ele adquiriria”.
E o manifesto vai além, questionando que a não educação das mulheres não é por acaso, mas serve à manutenção desse sistema de crenças sobre a naturalidade das características e funções inferiores da mulher. As mulheres são educadas para uma vida subordinada, onde seu papel é restrito à vida doméstica. Assim, para a autora, “se esse é o lugar destinado à mulher, então é um benefício criá-las na última ignorância, fazê-las acreditar que a maior fortuna que lhes pode caber, é serem escolhidas por um homem para esse fim, e que qualquer outra carreira que o homem chama feliz e honrosa, é-lhes fechada pela lei, não pelas instituições, mas pela natureza e destino.”
Reivindicar o direito ao voto não é, nesse caso, um ato isolado, mas inserido numa denúncia sobre a arbitrariedade do sistema de leis que aliena a mulher como isso fosse natural: “o protesto das mulheres não é contra um abuso especial, mas contra um inteiro sistema de injustiças; e a importância particular do sufrágio político para a mulher é porque ele parece ser o símbolo de todos os seus direitos.”. É a questão do voto, também, que escancara o vanguardismo do tratado; o primeiro país a permitir a participação de mulheres em eleições é a Nova Zelândia, que o faz em 1893, 25 anos depois da publicação desse manifesto, e no Brasil isso só acontece em 1932. Embora pareça hoje um problema antigo, o sufrágio feminino é uma pauta que se arrasta por mais tempo do que imaginamos: na Suíça e em Portugal, só se torna lei depois de 1970.
Assim como o voto feminino, as outras questões tratadas no livro podem parecer superadas. Mas é preciso notar, entre tantas mudanças, alguns problemas importantes persistem: mesmo em áreas pautadas há tanto tempo, como a política e a ciência, ainda hoje há uma desigualdade de participação que não pode ser ignorada; persiste também a naturalização de comportamentos “femininos” e o espaço doméstico a ser ocupado e cuidado, entre tantos outros exemplos. Por isso, “para interesse tanto dos homens como das mulheres, e do melhoramento do mundo, no mais largo senso, a emancipação da mulher, que o mundo moderno se gaba que tem efetuado (…), não pode parar aí.”
Autoria revelada
A historiadora Cristiane de Paula Ribeiro desvendou a identidade da autora do texto durante sua pesquisa de mestrado pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Trata-se de Anna Rosa Termacsics. Em entrevista que concedeu ao Blog, Cristiane conta mais sobre a vida e a obra dessa pioneira do feminismo brasileiro. Sua dissertação de mestrado também está disponível online: A vida caseira é a sepultura dos talentos: gênero e participação política nos escritos de Anna Rosa Termacsics dos Santos (1850 1886).
Olá, esse documento está digitalizado? onde eu consigo localizá-lo? Muito obrigado.
Olá Leandro,
Esse documento ainda não foi digitalizado pela Biblioteca, mas pretendemos disponibilizá-lo em breve em nossa biblioteca virtual.
Otimo o artigo, consegui absorver muita coisa boa, estão de parabéns !!!
Muitoo bom o artigo, aprendi muito com ele, obrigada e Deus o abençoe!!!
Olá, gente. Aqui está o arquivo em pdf
https://www.4shared.com/office/1F0MbR7Xce/Tratado_sobre_a_emancipao_poli.html?
tem no google play de graça como e-link, mas fiz questão de fazer uma cópia.
pelo fim do colonialismo acadêmico, pela mídia livre, democrática e plural de verdade!
E nada como criar um panfleto para isso dar certo!
É muito importante a busca por documentos feministas, não só de Anna Rosa Termacsics mas também de outras mulheres como Nísia Floresta, Mariana Coelho, Leolinda Daltro e outras. O resgate dessas obras não só demonstra a força da tradição feminista no Brasil, mas também nos motiva a olhar para nossa sociedade e desejar mudá-la – desejar de fato a revolução feminista, já prevista por Mary Wollstonecraft em 1792. É notável a agudez de uma obra como esse tratado de Anna Rosa Termacsics, especialmente perante o fato de que 80% das empresas ainda pagam menos às mulheres no Brasil, desrespeitando a Constituição, a Lei Magna de 1988.