Navio negreiro: tragédia no mar: cenários que compõem a edição de 1979

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por Aline Kobori e Juliana Barbosa Manso

Uma edição especial do célebre poema de Castro Alves, “Navio negreiro: tragédia no mar”, foi publicada pela Universidade Federal da Bahia em 1979. Essa edição, em que o artista plástico Hansen Bahia aparece como segundo autor, é atravessada por algumas particularidades editoriais e até mesmo históricas, incluindo uma carta de Fernando Rocha Peres a Guita e José Mindlin.

O poema icônico de Castro Alves, marco do movimento abolicionista, foi publicado originalmente em 1869. Em 1958, a Universidade Federal da Bahia (UFBA) preparou uma edição em quatro línguas,  a original, em português, a versão em inglês, francês e espanhol com as xilogravuras de Hansen. Mais de 100 anos depois do primeiro lançamento, em 1979, a publicação ganhou uma nova edição especial, feita pela mesma instituição. O livro traz, além dos versos em português, as traduções para o inglês e o francês, e as gravuras de Hansen Bahia. A nova edição foi preparada pela UFBA para homenagear o artista plástico, que havia morrido em 1978.

O artista Hansen Bahia (1915 – 1978) foi batizado como Karl Heinz Hansen em Hamburgo, na Alemanha. Chegou a São Paulo em 1950 e, na Bahia, em 1955, onde, junto de sua esposa, absorveu a cultura local, aprendendo a arte da xilogravura, e tornou-se uma figura respeitada, adotando o nome de Hansen Bahia. Sua experiência na Segunda Guerra Mundial, seus ideais progressistas e a inauguração da Fundação Hansen Bahia revelam habilidade do artista em compreender, criar e expressar a força do clássico de Castro Alves.

O exemplar da BBM

Navio negreiro: tragédia no mar foi editado e confeccionado pela UFBA. É um volume de 30 cm por 30 cm, com capa dura e uma seleção de cores contrastantes: branco, preto e dourado na capa e, no lugar do dourado, o vermelho no interior, com o miolo impresso em papel couché brilho. O exemplar ainda conta com o ex-libris de José Mindlin, um sumário apenas para as gravuras e, em anexo, uma carta pessoal de Fernando Rocha Peres, antigo diretor do Patrimônio Histórico e Artístico (IPHAN) da Bahia e de Sergipe, endereçada a José e Guita Mindlin. Ao folheá-lo, percebe-se que o livro é imponente, com o poema magistralmente ilustrado pelas xilogravuras de Hansen Bahia.

Augusto Mascarenhas, reitor da universidade baiana entre 1975 e 1979, escreveu o prefácio para a edição, no qual relembra os 20 anos da edição de “Navio negreiro” em quatro línguas com xilogravuras do mesmo Hansen e exalta a sua figura e popularidade entre população das cidades de Cachoeira e São Félix (BA). No texto, o acadêmico pontua que, após a edição de 1958, havia uma demanda estrangeira por uma nova edição e Bahia se animou com a nova oportunidade, já que as primeiras gravuras do poema saíram em baixa qualidade. O projeto estava em andamento quando o artista já estava adoecido, inclusive com encontros pessoais do próprio reitor com o artista e o responsável pela programação visual, Bruno Fuhrer, na casa do alemão então já naturalizado brasileiro. Assim, fica clara a dedicação para comemorar o esforço e o talento de Hansen Bahia, personagem tão querido entre os baianos. 

Outros elementos compõem esta edição tão singular. Há o bilhete em papel mais rígido, com os dizeres “Explicação: Por um lapso de paginação, na versão do poema em francês, o texto da página 81 aparece na 83 e o desta na 81. A Editora.”, e alguns erros de impressão, como a numeração entrecortada ou ausente. Os tradutores também parecem, pela pressa ou pelo foco na relação entre Hansen e “Navio negreiro”, ter pouco destaque: seus nomes são citados apenas na página que introduz as versões em língua estrangeira. Estes aspectos demonstram uma certa avidez por uma publicação rápida, agraciando a memória de Hansen Bahia.

Os tradutores

A tradução francesa escolhida para compor a edição é de Hippolyte Pujol, oriunda do livro Anthologie des poètes brésiliens, publicado em 1912. Hippolyte nasceu nas Pyrénées-Orientales, no sul da França, e após uma visita a seu irmão que residia no Brasil, mudou-se para o Rio de Janeiro. Orientado por sua formação em Letras, interessou-se pelas publicações literárias brasileiras e traduziu diversos poemas de autores do século XIX, que resultaram na Anthologie des poètes brésiliens

Luiz Angélico da Costa (? – 2011) foi o nome escolhido para a tradução em inglês. Foi professor titular do Departamento de Letras Germânicas e professor emérito da UFBA, possuindo um trabalho notável na área. Formado na mesma universidade, com Bacharelado e Licenciatura em Letras Anglo Germânicas, em 1950 e 1951, respectivamente, obteve especialização em ensino de inglês como segunda língua em 1952, pela Universidade de Michigan – Ann Arbor. Além de ter sido professor visitante em grandes instituições, como a Yale, foi muito atuante no campo da tradução, coordenou cursos de língua inglesa, literatura americana e tradução entre 1972 e 1995. Foi também líder do grupo de pesquisa Brazilian Literature in Translation and Foreign Literature in Brazilian Portuguese e organizou o livro Limites da traduzibilidade (1996). A carreira sólida de Luiz, porém, não é mencionada nesta versão de “Navio negreiro”, e a tradução tampouco é referenciada em bancos de informações acerca do professor. 

Como dito anteriormente, além dos nomes na página de introdução às traduções, não há mais nenhum detalhe sobre as traduções e seus responsáveis, de tal modo que só é possível saber que a edição é bilíngue ao folheá-la. Portanto, o foco da publicação está nas gravuras e, é claro, no poema, e se assemelha a um catálogo de exposição de arte que convida o leitor a explorar os versos por meio das xilogravuras. Essa breve e única menção aos tradutores levanta hipóteses sobre o processo de elaboração da edição.

“Navio negreiro” em quatro diferentes versões

Circundados de tal incógnita a respeito de suas traduções, resta-nos olhar para o que o livro nos oferece de concreto. Ainda que não haja evidências de outras traduções do texto de Castro Alves para o idioma francês, a escolha da tradução de Pujol para a edição de o “Navio negreiro” de 1979 desperta curiosidade devido ao intervalo de 67 anos entre as duas publicações. Já a tradução do texto para o inglês parece ter sido preparada para a edição; também não foram encontrados indícios de traduções catalogadas mais antigas e, embora muitas informações tenham se perdido com o tempo, existe o fator da proximidade entre Luiz e os editores da obra, uma vez que este já lecionava na UFBA.

Diante disso, percebe-se certa urgência na publicação do livro, apesar do intervalo de 20 anos decorridos entre a primeira edição e o novo trabalho. Consequentemente, a escolha do francês e do inglês para essa edição dos anos 70 sugere o interesse de abranger idiomas que captem mais leitores, visto que, de acordo com o prefácio escrito por Augusto Mascarenhas, o novo volume foi publicado pela recorrência das solicitações de exemplares advindas do exterior à UFBA. 

Navio negreiro: tragédia no mar, assim, constitui-se como uma obra completa em quatro diferentes versões: a elevação das 20 gravuras de Hansen Bahia a não apenas uma ilustração do poema, mas a uma tradução visual dele. Ainda é interessante notar a heterogeneidade entre as traduções textuais. Para averiguar ainda mais de perto essa disparidade, analisemos as três últimas estrofes nas três versões do poema.

O texto original em português está estruturado em estrofes heróicas, cujo arranjo das  rimas é ABABABCC, como se pode ver no exemplo da última estrofe:

Fatalidade atroz que a mente esmaga! 

Extingue nesta hora o brigue imundo 

O trilho que Colombo abriu nas vagas, 

Como um íris no pélago profundo! 

Mas é infâmia demais! … Da etérea plaga 

Levantai-vos, heróis do Novo Mundo! 

Andrada! arranca esse pendão dos ares! 

Colombo! fecha a porta dos teus mares!

A tradução de Hippolyte Pujol foi por outro caminho, as rimas estão estruturadas na ordem ABCCDDEEBA em estrofes com nove versos hendecassílabos na contagem francesa:

Fatalité cruelle écrasant tous les cœurs !

Le vaisseau négrier en ces jours de douleurs

Efface la voie que Colomb fraya sur l’onde

Comme un iris tracé sur la vague profonde ! 

Ah c’est trop d’infamie ! Au fond de vos tombeaux 

Ah ! frémissez d’horreur, ressuscitez, héros 

Du Nouveau Monde! Andrade, arrache la bannière 

Qui flotte au grand mât de la barque négrière ! 

O Colomb, viens fermer la porte de tes mers !

Nota-se que o último verso está sem rima. Além disso, existem acréscimos e realocações na tradução para dar ritmo ao poema, como a interjeição “Ah !” que aparece duas vezes, e o penúltimo verso que não existe no texto original em português. Já na versão para o inglês, a estrutura das estrofes de oito versos foi conservada. No entanto, o poema perdeu suas rimas: 

Outrageous fatality overwhelming one’s mind!

The loathsome bring does now destroy the trail

– The furrowed way Columbus opened in the waves –

Like a rutilant iris in the depths of the bottomless ocean!…

… But it’s utmost infamy!… From your heavenly realms

Rise, heroes, rise, o heroes of the New World!…

Andrada! pull that banner out of the air!

Columbus! close the portals of your seas!

Com isso, as versões dos poemas selecionadas para compor a edição não parecem terem sido escolhidas por uma afinidade textual, dado que não possuem qualquer diálogo entre si. A versão francesa se distancia ainda mais dos dois outros textos pelas escolhas de tradução. Além disso, não há homogeneidade entre a separação de partes; enquanto a edição em língua portuguesa não possui tal demarcação, a em francês é dividida como “V” e a em inglês, “VI”. Assim, a edição de 1979 oferece aos leitores quatro diferentes perspectivas de um mesmo texto, mas sem uma explicação editorial para esse fenômeno. 

A carta anexa

A carta de Fernando Rocha Peres endereçada a José e Guita Mindlin, em 20 linhas, apresenta temas e diálogos valiosos. O ex-diretor da IPHAN retoma a sua saída do órgão e justifica tal movimento. “Aqui na Bahia, uma velha luta cultural”, inicia Peres ao informar que, apesar de ter escolhido deixar o cargo, tendo em vista também o convite do reitor da UFBA para a pró-reitoria de Extensão, houve uma luta travada anteriormente para sua permanência. O poeta e então administrador relata as “‘forças ocultas’ que só posso contar pessoalmente”.

Nos parágrafos seguintes, o tom sombrio toma um rumo diferente. O amigo de Mindlin cita os dois livros enviados: Arte de gramática, de José de Anchieta, e Navio negreiro, de Castro Alves e Hansen Bahia, ambas edições da UFBA. Além disso, pede desculpas pela inércia de um projeto que realizaria com o bibliófilo e “Nava”, um livro com as cartas de Machado de Assis. Peres justifica a paralisação pela “absoluta falta de tempo” e ainda demonstra carinho e intimidade ao mencionar sua própria família.


A epístola escrita em 1980 revela a atuação de Mindlin diretamente na cultura, uma vez que Peres parabeniza o bibliófilo por assumir o cargo no Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural Brasileiro, órgão máximo do IPHAN responsável pelo exame, apreciação e decisões relacionadas à proteção e tombamento do Patrimônio Cultural do Brasil. Além disso, por afirmar que “não abandonei a causa”, Peres provavelmente referia-se à situação política do país na época, ainda atormentado pela ditadura militar, pouco depois dos anos de chumbo. 

Os períodos sombrios, entretanto, não detiveram a paixão e os esforços de Fernando, tampouco de José e Guita. Houve o trabalho incansável pela continuidade da cultura em nosso país. Vale lembrar que, apesar de discordar do regime militar, Mindlin foi convencido a aceitar o cargo de Secretário de Cultura do Estado de São Paulo em 1974, mas se demitiu em 1976 após o assassinato do jornalista Vladimir Herzog. Ainda, e como referido na carta, a busca por novas publicações resultou em trabalhos valiosos, como esse Navio negreiro: tragédia no mar

Assim, para além de uma edição comemorativa e de difusão literária, o exemplar de “Navio negreiro” presente na BBM carrega histórias que começam no século XIX com o texto original de Castro Alves e que reverberam em várias outras memórias de figuras importantes da cultura brasileira durante o século passado. 

Literatura brasileira em tradução na BBM

Este texto é resultado das pesquisas feitas para o projeto “Literatura brasileira em tradução na BBM”, que consiste no levantamento, estudo e difusão de informações sobre obras da literatura brasileira em tradução pertencentes ao acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. O recenseamento e a posterior seleção dos títulos permitirá conhecer: a extensão e a importância dos livros traduzidos em quatro domínios linguísticos: inglês, espanhol, francês e alemão; a recorrência, nesse conjunto, de obras de determinados períodos, autores e gêneros literários; o percurso dos livros até sua chegada e inclusão na coleção por meio do exame de marcas autógrafas e paratextos. O projeto é coordenado por Hélio de Seixas Guimarães.

Referências

ALVES, Antonio de Castro. Navio negreiro: tragédia no mar. Tradução de Hyppolite Pujol e Luiz Angélico da Costa. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1979.

ALVES, Antonio de Castro. O navio negreiro [Livro].[S.l.] : Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=736 Acesso em: 17/06/2023.

JOSÉ Mindlin será homenageado pela Assembleia. Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, 05/03/2007. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=271535. Acesso em: 17/06/2023.

PUJOL, Hippolyte. Anthologie des poètes brésiliens. São Paulo: Corbeil Imprimerie Crété, 1912. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/7539 Acesso em: 17/06/2023.

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Aline Kobori e Juliana Barbosa Manso  são graduandas em Letras pela FFLCH-USP e bolsistas do projeto “Literatura brasileira em tradução na BBM”, coordenado por Hélio de Seixas Guimarães (PUB-2022-2023).

Curadoria

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