“As lendas foram colhidas em 1964, durante uma estada de quatro meses na aldeia waurá, situada à margem de um dos lagos do rio Batovi. O narrador era Praguái, um dos homens mais velhos da tribo. Falou em waurá ao microfone de um gravador de som. O índio Ikiana, filho de mãe waurá e pai kustenau, traduziu o texto gravado para o vernáculo, que aprendera quando cozinheiro num Posto Indígena, e o ditou ao pesquisador. Termos chulos foram substituídos sem alteração do sentido.”
Schultz, Harald. Lendas Waurá. Revista do Museu Paulista, Nova Série v. XVI (1965-1966), p. 21-149. São Paulo: Museu Paulista, p. 21.
Escada do céu – Povo Waujá
Kamukwaká [1] subiu na casa. Tudo gente subiu. Aí Kamukwaká falou pra uma gente: “Então você vai jogar flecha”.
Aí gente jogou flecha. Mas flecha não foi lá no céu. Aí flecha volta. Flecha volta e cai no chão. Apanha outra. Aí flecha quase chega lá no céu. Volta e cai no chão. Depois pessoal dele falou: “Kamukwaká, então vai jogar flecha até ficar lá no céu. Até flecha vai pendurar lá no céu”.
Kamukwaká puxa a corda do arco, joga flecha. E Kamukwaká jogou flecha no céu. Ficou lá no céu. Ponta pegou lá no céu. Aí jogou outra. Aí ficou. (O informante tradutor demonstra com meu lápis como a primeira flecha “ficou no céu”, a outra pega na extremidade da primeira, e assim por diante). Aí ficou lá no céu. Aí jogou outra, pegou na outra. Aí foi dois flecha. Ficou lá no céu. Atirou outro, atirou outro, até flecha foi até o chão, chegou lá no chão. Duas carreiras de flecha.
Kamukwaká fumou muito. Aí fumaça saiu no boca de Kamukwaká. Aí flechas viraram cipó-escada [2]. Aí fica dois.
Aí já tem Sol. Quer fazer cobra de algodão. Tira o algodão dos braços, das pernas, aí algodão virou sucuri. É Sol que fez. Kamukwaká é cunhado de Sol. Sol foi morar no Kamukwaká. Sol casou com irmã de Kamukwaká. Então Sol falou pra mulher dele pra fazer buraco (O tradutor diz que o informante está “fazendo mistura” dos assuntos). Sol apanha de algodão. Bem comprido de algodão. E Sol fuma bastante. Aí Sol, fumaça sai da boca de Sol. Aí algodão virou de cobra grande, nome de Capisalabi. Dizem que é cobra muito maior que sucuri. Aí Sol falou pro Capisalabi: “Então, você vai comer Kamukwaká.. Vai comer toda gente, todo pessoal de Kamukwaká. Quando já tá acabado, comeu gente de Kamukwaká, aí você come Kamukwaká. Aí acabou gente de Kamukwaká.
Aí Capisalabi foi. Foi entrar na casa de Kamukwaká.. Cobra fala pro Kamukwaká. “Eu quero comer você”. Aí Kamukwaká pega menino, joga lá. Aí cobra come. Come gente. Vai embora. Vai lá no casa dele. Entra lá no casa, aí dormir.
Meio dia cobra levanta. Val lá no casa de Kamukwaká. Vai pedir comida. Pessoal dele pra comer. Aí Kamukwaká pega um do pessoal dele, vai jogar lá fora. Aí cobra come.
Aí cinco horas, cobra vai levantar. Vai pedir outro: “Eu quero comer gente!” — Aí Kamukwaká pega um gente e joga lá fora. Aí come. Até tudo dia que fala, todo dia, até quase acabar gente de Kamukwaká.
De manhã, meia noite, Kamukwaká vai cantar dentro de casa. Dentro de casa Kamukwaká canta. Kamukwaká falou pro bugio. Bugio vai lá adiante: “Vovô, você vai lá adiante”. Quando de manhã cedo Kamukwaká falou: “Você vai na frente no céu”. Aí Bugio vai cantar, vai cantando, vai lá no céu, e gente de Kamukwaká foi atrás de bugio, e bugio foi lá adiante. Ficou um Kamukwaká dentro de casa. Depois que vai. Então Sol tá dormindo no casa dele, e Capisalabi tá dormindo no casa dele. Então Sol tá subindo lá no céu. De manhã cedo Kamukwaká já foi. Já tem irmão dele. Então Kamukwaká falou: “Vamos subir!” — Então vem mulher subir, tem medo. Aí Kamukwaká falou: “Então você fica em casa. Apanha de panela grande. Vai fechar porta. Fica debaixo da panela”. Kamukwaká deu pro irmão dele facão grande: “Cobra quando entrar na casa, quando sair atrás, aí você corta cabeça dele!” — Aí foi. Sol levanta. Tá escutando barulho de Kamukwaká lá no céu. Aí Sol tá brabo de cobra. Vai chamar cobra: “Levanta, vai comer gente. Gente subiu lá no céu! ” — Aí cobra levantou, foi lá no casa de Kamukwaká. Aí não tem nada de gente lá. Só tem casa. Aí cobra entra. Espia, espia de pessoal. Não tem. Aí: “O que é este?” Espiou buraco dele: “Então sumiu!” Aí vira lá pra trás. Aí cobra foi atrás, até cabeça dele foi lá longe e rabo fora. Aí mulher levanta, levantou, apanhou facão e corta rabo dele. Caiu no chão. Aí cobra fala: “Que é isto?” Aí corta mais pedaço. Corta pedaço, pedaço. Então cabeça volta no chão. Cobra quase foi cabeça lá no céu. Quase que vai entrar no céu, rabo pendurado. Aí mulher corta rabo, aí cai no chão, pedaço, pedaço. Vai cortar, vai cortar, até cabeça chega lá no casa, por cima de casa. Aí corta, corta. Bem cheio ficou casa de pedaço de carne de cobra. Cobra mais grande. Corta, corta, até cabeça entra na casa. Aí mulher apanha facão, corta pescoço. Cabeça cai no chão. Aí morreu!
Aí mulher foi carregando lá no água. Jogou o carne lá no lago. Mulher vai carregando, vai jogando, vai jogando até acabar. Aí ficou, virou poraquê. Mulher vai carregando, aí vira de poraquê. Aí apanha mais de carne, joga lá na água. Aí vira poraquê.
Aí ficou uma mulher, irmã de Kamukwaká. Já tem filho dele. É homem. Filho de Ravero. Então apanha canoa: “Então vamo embora!” Ravero vai saindo, vai remando, vai remando. Aí filho falou: “Mãe, eu quero fruta de pau”. Aí vai remando, vai remando. Aí viu outro fruta bom: “Mamãe, eu quero aquele fruta!” — Mãe dele apanha. Dá na mão dele. Aí come. Até meio dia, filho tá falando: “Mãe, eu quero este, quero este”. Aí mãe dele falando: “Que é isto. Eu não posso. Vamos remar, vamos chegar lá na casa. Você vai buscar”.
Aí Ravero apanha filho dela e joga lá no mato. Aí menino virou macaco. Quando mãe dele apanhou o filho pra jogar, aí gritou: “kui-kui-kui!” Aí mãe dele falou: Tá bom, vai ficar macaco. Pode ficar no mato. Então gente vai comer você”. Mãe dele falou. Por isto todo índio gosta de macaco. “Então você vai ficar comida de gente!” Acabou.
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[1] – Diz o glossário de Schultz, na mesma edição: “KAMUKWARÁ, é ao mesmo tempo um personagem lendário, cunhado do Sol e um lugar no Morená (vide Morená) onde há “pedra grande, casa do Sol”, ou aldeia de Kamukwaká, onde morou Sol ao casar-se com a irmã daquele personagem”. (Nota da Edição Original)
[2] – Cipó-escada – nas matas da região existe este cipó achatado e ondulado parecendo uma escada. (Nota da Edição Original)
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Schultz, Harald. Lendas Waurá. Revista do Museu Paulista, Nova Série v. XVI (1965-1966), p. 21-149. São Paulo: Museu Paulista, p. 42-44.
Sobre os Waujá
Os Waujá (também conhecidos por Waurá) são um povo de língua da família linguística Arawak, habitantes do Parque Indígena do Xingu no Mato Grosso, tendo suas aldeias nas proximidades do limite sul do território. Constituem, conjuntamente com outros povos do completo alto-xinguano, o famoso sistema de trocas interculturais do Xingu (comércio, casamento, visitação, cerimonialismo, etc), como modo de integração sociopolítica da região. Seu ritual aos Apapaatai também é bastante conhecido.
Para saber mais sobre os Waujá, acesse: Waujá – Povos Indígenas no Brasil (socioambiental.org)
Para saber mais sobre o complexo altoxinguano, acesse: Almanaque Socioambiental Parque Indígena do Xingu: 50 (para os Waujá, p. 130).
Sobre a narrativa
A narrativa acima é extremamente particular no tocante à sua linguagem. Contada por um ancião em waujá, traduzida ao português por outro mais jovem (que aprendera a língua nacional ao trabalhar na cozinha de um posto indígena) e transcrita ainda por um terceiro, Harald Schultz, que não falava a língua de partida da narrativa, o registro aqui apresentado é resultado de inúmeras transformações. Para além das mudanças de vocabulário na passagem para o português transcrito, as quais o transcritor admite, não se sabe em que mais ele pode ter mexido e, ainda, tendo a narrativa pulado de língua em língua, há de se considerar alguma não fidelidade de tradução.
Apesar dessas ressalvas, o que se apresenta ao leitor é uma narrativa repleta de características de oralidade, marcada por repetições inúmeras (comum técnica de memória), frases curtas e, o que é ainda mais raro de se encontrar, descrições do gestual utilizado durante a narração, que a complementariam em um cenário cara-a-cara e também a complementam aqui. Logo, essa variedade do português e essa forma de narração não são de modo algum “quebrados” ou “confusos” mas, pelo contrário, deixam transparecer a língua e cultura waujás por suas frestas através das palavras, das construções frasais, das ênfases neste ou naquele ponto, etc. O que se tem aqui é um registro riquíssimo e extremamente importante para a preservação não apenas das narrativas originárias, mas também da própria tradição oral.
Narrativas ameríndias no Blog da BBM
Encontram-se dispersas pelo acervo BBM muitas narrativas que, desde o século XVI, foram contadas por pessoas indígenas a viajantes, missionários, naturalistas, etnólogos, linguistas etc. Essas narrativas estão presentes em livros e periódicos originalmente publicados em português, inglês, francês, alemão, italiano e espanhol. As informações a respeito dessas narrativas variam muito e vão de casos em que sequer o povo do narrador é identificado até publicações em que as narrativas foram documentadas nas próprias línguas indígenas.
Nesta série de postagens Narrativas ameríndias, resgatamos e compartilhamos uma seleção dessas histórias, que ajudam a contar como os povos originários que viviam e vivem no Brasil pensam e exprimem o mundo ao seu redor.Essa iniciativa do Blog da BBM faz parte de um projeto mais amplo, chamado Livros da floresta, cujos objetivos principais são mapear livros e outras produções bibliográficas produzidas por autoras e autores indígenas, obras em línguas indígenas (de autoria indígena ou não) e documentos que registram memórias sobre os povos habitantes no Brasil e nos países vizinhos. O projeto pretende também, e sobretudo, estabelecer contatos com as populações diretamente concernidas por essas obras e convidá-las a tomar parte nas ações relacionadas a esse acervo.
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Gabriela Lourenço Fernandes, graduanda em Letras (Português/Japonês) pela FFLCH-USP e estagiária da BBM, fez a transcrição e apresentação da narrativa.