Os Tupi da costa
Quando os primeiros europeus aportaram na costa atlântica sul-americana, eles encontraram principalmente povos tupi, que se distribuíam do atual estado do Maranhão, ao norte, ao de São Paulo, ao sul. Esses povos falavam línguas bastante próximas entre si, talvez vários dialetos de uma mesma língua, que passou a ser conhecida como Tupi Antigo. Tupinambá, Tupiniquim, Caeté, Temiminó e Potiguar eram algumas das denominações com que diferentes grupos de povo tupi aparecem nas fontes dos séculos XVI e XVII. De maneira geral, eles ficaram conhecidos como os Tupi da costa.
Embora os primeiros contatos entre os Tupi da costa e os invasores europeus (portugueses e franceses sobretudo) tenham sido pacíficos, não tardou para essas populações originárias sofressem as terríveis consequências da colonização. Guerras, epidemias, escravização, catequização e aldeamento forçado tiveram um impacto desastroso entre os Tupi da costa, que contudo lutaram como puderam contra os invasores. Parte significativa das populações morreu em decorrência de guerras, epidemias e campanhas de apresamento. Outra parte fugiu para o interior do país. Apesar de terem sido considerados praticamente desaparecidos da costa brasileira desde o final do século XVII, ainda hoje há povos herdeiros dos antigos tupi, como os Tupiniquim do Espírito Santo e os Tupinambá da Bahia.
Durante os séculos XVI e XVII, cronistas, viajantes, missionários, colonos e administradores coloniais documentaram muitos aspectos dos Tupi da costa. Por meio dessas fontes, é possível acessar o modo como esses povos viviam, que ainda é pouco conhecido da maioria dos brasileiros e bem diferente tanto da imagem estigmatizadora de que eram ferozes canibais quanto da imagem que os idealiza como bons selvagens. Nesta série de publicações, o Blog da BBM resgatará vários desses aspectos dos Tupi da costa presentes nas fontes quinhentistas e seiscentistas.
Indumentárias
Yves d’Evreux
Viagem ao norte do Brasil feita nos anos de 1613 a 1614
Estes povos, e não só eles, porém geralmente todos os Indios do Brazil, tem por costume cortar o corpo, e recorta-lo tão lindamente, que os costureiros, e alfaiates, embora. hábeis em sua profissão, buscam imitá-los no corte dos seus vestidos.
Este costume não é só privativo dos homens, e sim também das mulheres, com a diferença única de que os homens se cortam por todo o corpo, e as mulheres apenas desde o umbigo até as coxas, o que praticam por meio de um dente de Cutia, muito agudo, e uma espécie de goma queimada, reduzida a carvão, aplicada sobre a chaga, e nunca apagam os cortes. Digo de passagem e não para demorar-lhe, e sim apenas para descobrir a origem deste antigo costume, que me parece ser fundado pela natureza, visto ser praticado, já há muitos anos, por nações civilizadas, cujo conhecimento por falta de comunicação não podia ter esta Nação bárbara e assim inventou-o e d’ele usou.
Soube d’estes selvagens, que duas razões os levam a cortar assim seus corpos, uma significa o pesar e o sentimento, que tem pela morte de seus pais, assassinados pelos seus inimigos, e outra representa o protesto de vingança, que contra estes prometem eles, como valentes e fortes, parecendo quererem dizer por estes cortes dolorosos, que não pouparam nem seu sangue e nem sua vida para vingá-los, e na verdade quanto mais estigmatizados mais valentes e corajosos são reputados, no que também são imitados pelas mulheres de iguais qualidades.
André Thevet
Singularidades da França Antártica, a que outros chamam de América (1558).
O caramujo, espécie de peixinho
Não basta o selvagem americano andar totalmente nu, pintar o corpo de várias cores e arrancar-lhe o pelo. Para tornar-se ainda mais disforme, perfura, quando ainda jovem, os lábios, empregando, nessa operação, certa planta afiadíssima. O orifício aumenta com o crescimento do corpo, enfiando nele os índios uma espécie de caramujo, – que é um marisco comprido, de casca dura e semelhante às contas de rosário.
Os indígenas metem essa cunha (quando o marisco deixa a casca) no lábio inferior, à maneira do que se faz com o batoque, ou o espicho do moio do vinho, ficando a ponta mais grossa para o lado de dentro e a mais fina para o lado de fora.
Pedras de cor puxando à esmeralda.
E, logo que a pessoa atinge a idade do matrimônio, trocam-se as conchas por grossas pedras, de cor puxando à esmeralda, às quais guardam os índios tal estima que dificilmente é possível alguém conseguir um desses objetos, mesmo em troca dos mais altos obséquios, pois são coisas raras no país. Seus vizinhos e amigos trazem tais pedras de uma alta montanha, que fica na terra dos canibais, polindo-as tão bem, com outra pedra para isso adequada, que o mais hábil ouvires não o faria melhor. Na montanha, de que falo, talvez se encontrem algumas esmeraldas, pois uma dessas pedras me pareceu realmente verdadeira.
É assim que os selvagens americanos se desfiguram, isto é, à custa de orifícios e grossas pedras no rosto; mas nisso experimentam um prazer como um alto fidalgo francês, quando traz os seus ricos e preciosos colares. E de tal modo que é tanto mais honrado e tido como senhor ou morubixaba quem mais exibe pedras, nos lábios, na boca e nas faces. As pedras, que trazem os homens, são da espessura de um dedo grande e, às vezes, tão largas quanto um duplo ducado, senão mais, impedindo-lhes, por isso, a palavra. Quando estão assim adornados, dificilmente se pode entendê-los, pois é como se estivessem com a boca cheia de farinha.
A cavidade produzida pela pedra torna o lábio inferior do tamanho de um punho e, segundo sua grossura, é possível estimar a capacidade de resistência do orifício. Quando, entretanto, querem os índios falar, retiram a pedra. E, então, se vê a saliva correr pelo conduto, – aspecto hediondo à vista. Essa gentinha, enfim, quando pretende zombar de alguém, costuma estirar a língua pelo buraco destinado ao adorno.
As mulheres não são tão disformes, embora tragam certos brincos às orelhas, semelhantes às velas de um liard de largura e comprimento; são feitos com os grandes búzios e conchas marinhas. Os homens, demais, conduzem ao pescoço crescentes do tamanho de um pé (comumente as crianças de dois ou três anos). E também alguns colares brancos fabricados com outras espécies de búzios, apanhados no mar, aliás muito caros e estimados.
Colares de búzios. Espécie de contas brancas.
As contas de rosário, que se vendem atualmente em França, quase tão brancas quanto o marfim, procedem das regiões americanas e são os próprios indígenas que as fabricam. São transportadas pelos marinheiros, que a adquirem por preços vis. E, quando começaram a ser usadas em França. Acreditava-se tratar do coral branco; só depois se viu que a matéria de que
são feitas é a porcelana. É permitido benzê-las, assim o queira o dono.
Braceletes de escamas de peixes.
Vi ainda, braceletes de ossos de peixe. São dispostos à maneira dos braçais dos gendarmes. Os selvagens, finalmente, apreciam muito as nossas contas de vidro.
Deformidade dos selvagens americanos.
O que desfigura os indígenas, sobretudo, são as tintas de certas cores que usam homens e mulheres, extraídas, como já disse dos frutos. Os selvagens pintam-se e adornam-se reciprocamente, mas são as mulheres que tingem os homens, desenhando mil primores, tais como linhas, ondas e coisas assim semelhantes, em traços tão miúdos que mais não é possível.
(…) As mulheres americanas não tingem o rosto e o corpo de seus filhos apenas de negro, mas de várias outras cores, especialmente de uma que se assemelha ao boli armênio. Essa última tinta é fabricada de uma terra gorda como a argila, que dura por espaço de quatro dias. As índias pintam-se as penas com uma tinta de cor igual ao boli armênio, de modo que, ao vê-las de longe, julgar-se-á que estão metidas em belas calças de fina estamenha preta.
Jean de Léry
Viagem à Terra do Brasil (1578).
Quando vão à guerra, ou quando matam com solenidade um prisioneiro para comê-lo, os selvagens brasileiros enfeitam-se com vestes, máscaras, braceletes e outros ornatos de penas verdes, encarnadas ou azuis, de incomparável beleza natural, a fim de mostrarem-se mais belos e mais bravos. Muito bem mescladas, combinadas e atadas umas às outras sobre talicas de madeira formam vestuários que parecem de pelúcia e que podem rivalizar com os dos melhores artífices de França. Do mesmo modo enfeitam as guarnições de seus dardos e clavas de madeira, os quais, assim decorados, produzem um efeito deslumbrante.
No preparo de seu vestuário utilizam-se de grandes penas de avestruz, obtidas com seus vizinhos. Isso prova a existência, em alguma região do país, dessas enormes aves; mas não posso dizer que as tenha visto. As plumas, que são pardas, ligam-se pela haste central, ficando soltas as pontas que se encurvam à maneira de uma rosa e formam grandes penachos denominados araroyé, os quais são usados amarrados à cintura por um cordel de algodão.
(…)
Para dançar, beber e cauinar, o que constitui sua ocupação ordinária, procuram algo que os anime, além do canto com que em geral acompanham as danças; para isso colhem certo fruto do tamanho da castanha d’água e com ela parecido. Depois de secá-lo, tiram-lhe os caroços e colocam no lugar algumas pedrinhas; amarram-nos então aos tornozelos, pois assim dispostos fazem tanto barulho quanto os guizos dos europeus, dos quais, aliás, se mostram muito cobiçosos.
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Evreux, Yves d’. Viagem ao norte do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Leite Ribeiro, 1929.
Thevet, André. Singularidades da França Antártica, a que outros chamam de América. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2018.
Léry, Jean de. Viagem à Terra do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1961.
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Millena Pereira Machado, graduanda em História pela FFLCH-USP e bolsista da BBM pelo Programa Unificado de Bolsas (PUB 2024-2025), fez a seleção dos trechos apresentados.
Excelente artigo! A forma como você resgata a história dos povos Tupi da costa e a contextualiza dentro do impacto da colonização é extremamente rica e esclarecedora. Fiquei particularmente interessado nos relatos dos cronistas, que revelam detalhes fascinantes sobre as práticas culturais e o modo de vida desses povos. É importante destacar como essas tradições, muitas vezes mal interpretadas pelos europeus, eram na verdade expressões profundas de identidade, resistência e conexão com a natureza. Parabéns pela abordagem e pelo esforço em preservar e compartilhar essa parte essencial da nossa história!