Distribuição territorial – Os Tupi da costa

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Os Tupi da costa

Quando os primeiros europeus aportaram na costa atlântica sul-americana, eles encontraram principalmente povos tupi, que se distribuíam do atual estado do Maranhão, ao norte, ao de São Paulo, ao sul. Esses povos falavam línguas bastante próximas entre si, talvez vários dialetos de uma mesma língua, que passou a ser conhecida como Tupi Antigo. Tupinambá, Tupiniquim, Caeté, Temiminó e Potiguar eram algumas das denominações com que diferentes grupos de povo tupi aparecem nas fontes dos séculos XVI e XVII. De maneira geral, eles ficaram conhecidos como os Tupi da costa. 

Embora os primeiros contatos entre os Tupi da costa e os invasores europeus (portugueses e franceses sobretudo) tenham sido pacíficos, não tardou para que essas populações originárias sofressem as terríveis consequências da colonização. Guerras, epidemias, escravização, catequização e aldeamento forçado tiveram um impacto desastroso entre os Tupi da costa, que contudo lutaram como puderam contra os invasores. Parte significativa das populações morreu em decorrência de guerras, epidemias e campanhas de apresamento. Outra parte fugiu para o interior do país. Apesar de terem sido considerados praticamente desaparecidos da costa brasileira desde o final do século XVII, ainda hoje há povos herdeiros dos antigos tupi, como os Tupiniquim do Espírito Santo e os Tupinambá da Bahia. 

Durante os séculos XVI e XVII, cronistas, viajantes, missionários, colonos e administradores coloniais documentaram muitos aspectos dos Tupi da costa. Por meio dessas fontes, é possível acessar o modo como esses povos viviam, que ainda é pouco conhecido da maioria dos brasileiros e bem diferente tanto da imagem estigmatizadora de que eram ferozes canibais quanto da imagem que os idealiza como bons selvagens. Nesta série de publicações, o Blog da BBM resgatará vários desses aspectos dos Tupi da costa presentes nas fontes quinhentistas e seiscentistas.

Distribuição territorial geral

Pero Vaz de Caminha

Carta a El-Rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil (1500).

“Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha, que haverá nela bem vinte ou vinte cinco léguas por costa. Traz ao longo do mar, em algumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas e delas brancas, e a terra, por cima, toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é toda praia parma, muito chã e muito  formosa; pelo sertão nos pareceu do mar muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão a terra e arvoredos, que nos parecia mui longa terra.”


Hans Staden

Duas viagens ao Brasil (1547).

“Os Tupinambás vivem próximos ao mar, ao pé da grande serra já mencionada, mas seu território se estende também além das montanhas, por cerca de sessenta milhas. Têm terras no rio Paraíba, que vem da serra e desemboca no mar, e ao longo do mar possuem uma área de cerca de 28 milhas de comprimento, que habitam.

São pressionados por adversários de todos os lados. Ao norte, seus vizinhos são uma tribo de selvagens chamados Guaitacás. São seus inimigos. Seus adversários ao sul são os Tupiniquins; os que vivem em direção ao interior das terras são chamados de Carajás; perto deles, na serra, vivem os Guaianás, e, entre estes, vive mais uma tribo, a dos Maracajás, que os perseguem continuamente. (…)”


Pedro de Magalhães Gândavo

Tratado da Terra do Brasil: história da província Santa Cruz, a que vulgarmente chamamos Brasil (1826).

“Esta costa do Brasil está pera a parte do ocidente, corre-se de norte e sul. Da primeira povoação até derradeira há trezentas e cinquenta léguas. São oito capitanias, todas têm portos muito seguros onde podem entrar quaisquer naus por grandes que sejam. Não há pela terra dentro povoações de portugueses por causa dos índios que não no consentem, e também pelo socorro e tratos do reino lhes é necessário estarem junto ao mar por terem comunicação de mercadorias. E por este respeito vivem todos junto da costa.”

“Havia muitos destes índios pela costa junto das capitanias, tudo enfim estava cheio deles quando começaram os portugueses a povoar a terra; mas porque os mesmos índios se alevantaram contra eles e faziam-lhes muitas traições, os governadores e capitães da terra destruíram-nos pouco a pouco e mataram muitos deles, outros fugiram pera o sertão, e assim ficou a costa despovoada de gentio ao longo das capitanias. Junto delas ficaram alguns índios destes nas aldeias que são de paz, e amigos dos portugueses.”

Duas narrativas, sobre a costa da Bahia e do Maranhão

Gabriel Soares de Sousa

Tratado descritivo do Brasil em 1587 (1587).

“Já fica dito como o gentio tupiniquim senhoreou e possuiu a terra da costa do Brasil, ao longo do mar, do rio de Camamu até o rio de Cricaré, o qual tem agora despovoado toda esta comarca, fugindo dos tupinambás, seus contrários, que os apertaram por uma banda, e aos aimorés, que os ofendiam por outra; pelo que se afastaram do mar, e, fugindo ao mau tratamento que lhes alguns homens brancos faziam, por serem pouco tementes a Deus. Pelo que não vivem agora junto do mar mais que os cristãos de que já fizemos menção. 

Com este gentio tiveram os primeiros povoadores das capitanias dos Ilhéus e Porto Seguro e os do Espírito Santo, nos primeiros anos, grandes guerras e trabalhos, de quem receberam muitos danos; mas, pelo tempo adiante, vieram a fazer pazes, que se cumpriram e guardaram bem de parte a parte, e de então para agora foram os tupiniquins muito fiéis e verdadeiros aos portugueses. Este  gentio, e os tupinaés, descendem todos de um tronco, e não se têm por contrários verdadeiros, ainda que muitas vezes tivessem diferenças e guerras, os quais tupinaés lhe ficavam nas cabeceiras, pela banda do sertão, com quem a maior parte dos tupiniquins agora estão misturados. Este gentio é da mesma cor baça e estatura que o outro gentio de que falamos, o qual tem a linguagem, vida e costumes e gentilidades dos tupinambás, ainda que são seus contrários, em cujo título se declarará mui particularmente tudo o que se pode alcançar. E ainda que são contrários os tupiniquins dos tupinambás, não há entre eles na língua e costumes mais diferença da que têm os moradores de Lisboa dos da Beira; mas esse gentio é mais doméstico e verdadeiro que todo outro da costa deste Estado. É gente de grande trabalho e serviço, e sempre nas guerras ajudaram aos portugueses, contra os aimorés, tapuias e tamoios, como ainda hoje fazem esses  poucos que se deixaram ficar junto ao mar e das nossas povoações, com quem vizinham muito bem, os quais são grandes pescadores de linha, caçadores e marinheiros, são valentes homens, caçam, pescam, cantam, bailam como os tupinambás e nas coisas de guerra são mui industriosos, e homens para muito, de quem se faz muita conta a seu modo entre o gentio.”

“Que trata de quais foram os primeiros povoadores da Bahia 

(…) e chegando à notícia dos tupinambás a grossura e fertilidade desta terra, se juntaram e vieram de além do rio de São Francisco, descendo sôbre a terra da Bahia que vinham senhoreando, fazendo guerra aos tupinaés que a possuíam, destruindo-lhes suas  aldeias e roças, matando aos que lhe faziam rosto, sem perdoarem a ninguém, até que os lançaram fora das vizinhanças do mar; os quais se foram para o sertão e despejaram a terra aos tupinambás, que a ficaram senhoreando. E estes tupinaés se foram pôr em frontaria com os tapuias seus contrários, os quais faziam crua guerra com fôrça, da qual os faziam recuar pela terra adentro, por se afastarem dos tupinambás que os apertavam da banda do mar, de que estavam senhores, e assim foram possuidores desta província da Bahia muitos anos, fazendo guerra a seus contrários com muito esforço, até a vinda dos portugueses a ela; dos quais tupinambás e tupinaés se têm tomado esta informação, em cuja memória andam estas histórias de geração em geração.”


Claude, d’Abbeville

História da missão dos padres Capuchinhos na ilha do Maranhão e terras circunvizinhas (1614).

“De como os índios Tupinambás se fixaram na Ilha do Maranhão e circunvizinhanças

Em primeiro lugar, é preciso saber que os índios do Maranhão julgam existir para o lado do Trópico de Capricórnio um belo país a que chamam Caetê, floresta grande, porque aí existe grande quantidade de matas e de florestas e de árvores de incrível grossura e admirável altura; aí habitaram eles no passado. E, por serem considerados os mais valentes e os maiores guerreiros, usavam o nome de tupinambá, que conservaram até agora.

Apoderando-se os portugueses dessa região de Caetê, quiseram também sujeitar os habitantes a suas leis. Os tupinambás, porém, são livres por natureza e inimigos da sujeição; por isso, preferiram abandonar o seu próprio país a se entregarem aos portugueses. Assim fizeram, embrenhando-se nos matos e nas mais recônditas florestas.

Mas não se sentindo aí muito seguros, porque seus inimigos os perseguiam por toda parte com ódio de morte, tomaram a resolução de atravessar campos e desertos. Caminharam tanto que, finalmente, atingiram quase o Equador, onde encontraram o grande Oceano que os impediu de ir além, contendo-lhes os passos do lado direito, assim como o fazia do lado esquerdo o rio Amazonas. Não podendo continuar, e não ousando recuar de receio de seus inimigos, resolveram ficar nessa região, uns à beira-mar, os quais, por isso, se chamam paranã euguare (habitantes do mar), outros na grande montanha de Ibiapaba os quais se denominam Ibouiapab euguare (habitantes de Ibiapaba). Apoderaram-se alguns da grande Ilha do Maranhão, por julgá-la lugar muito seguro e de difícil acesso, e que talvez lhes tenha Deus reservado desde a eternidade para preservá-los da perseguição de seus inimigos e do diabo, e assim salvar esta nação pela qual queria ser servido, adorado e glorificado, entre esses bárbaros que se converteriam antes do fim do mundo pelas prédicas do Evangelho. Estes foram chamados maranhã euguare (habitantes do Maranhão). Outros ainda permaneceram à margem do rio Tabucuru e se chamaram tabucuru euguare (habitantes de Tabucuru). Outros localizaram-se ao longo do rio Mearim e ficaram denominados Meari euguare (habitantes de Mearim). Outros finalmente concentraram-se em Comá, Pará de leste e Pará de oeste, e também em Caietê, à beira-mar, espalhando-se por aí e derivando seus nomes dos lugares de suas residências, mas conservando todos, entretanto, o nome de tupinambá que serve até hoje para qualificá-los.

Muitos desses índios ainda vivem e se recordam de que, tempos após a sua chegada na região, fizeram uma festa, ou vinho, a que dão o nome de cauim e à qual assistiram os principais e os mais antigos, juntamente com grande parte do povo. Aconteceu que, estando todos embriagados, uma mulher esbordoou um companheiro de festa, disso resultando grande motim que provocou divisão e a separação do povo todo. Uns tomaram o partido do ofendido e outros o da mulher, e de tal modo se desavieram que, de grandes amigos e aliados que eram, se tornaram grandes inimigos; e desde então se encontram em estado de guerra permanente, chamando-se uns aos outros de tabajaras, o que quer dizer, grandes inimigos, ou melhor, segundo a etimologia da palavra: tu és o meu inimigo e eu sou o teu. Embora sejam todos da mesma nação e todos tupinambás, atiça-os o diabo uns contra os outros, a ponto de se entrecomerem, como já disse.”

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Referências:

Caminha, Pero Vaz de. Carta a el-rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil. Portugal, Torre do Tombo, Gavetas, Gav. 15, mç. 8, no 2.

Claude, d’Abbeville. História da missão dos padres Capuchinhos na ilha do Maranhão e terras circunvizinhas. Tradução de Sérgio Milliet. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2008.

Gandavo, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil: história da província Santa Cruz, a que vulgarmente chamamos Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2008.

Sousa, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Ministério da Educação.

Staden, Hans. Duas Viagens ao Brasil. Porto Alegre, L&PM, 2008.

Thevet, André. Singularidades da França Antártica, a que outros chamam de América. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2018.

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Millena Pereira Machado, graduanda em História pela FFLCH-USP e bolsista da BBM pelo Programa Unificado de Bolsas (PUB 2024-2025), fez a seleção dos trechos apresentados.

Curadoria

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