Durante muito tempo, parte da teoria social brasileira ignorou a presença e a importância dos povos indígenas no Brasil. Sob a justificativa de que essas populações estariam fadadas ao desaparecimento, ou que elas já teriam deixado de existir devido a uma suposta evolução da humanidade – responsável por operar a chamada “integração” à sociedade nacional –, muitos pensadores acabaram por considerar questões associadas aos modos indígenas de vida e a suas demandas políticas como menos urgentes.
Se por um lado estimativas historiográficas e arqueológicas apontam a existência de milhões de indígenas na época em que os colonizadores europeus invadiram as terras brasileiras, com o passar do tempo esses números foram diminuindo significativamente. Essa constatação demonstra um problema que chama a atenção para pelo menos dois temas latentes em nossa história: a forma violenta como os contatos entre os brancos e os indígenas foram e continuam sendo travados e também as disputas políticas que envolvem essas populações e suas demandas.
Sobre as disputas políticas, é válido mencionar a promulgação, em 1988, de uma nova Constituição Federal, que pela primeira vez se propunha a encarar com mais sensibilidade temas como a demarcação de terras indígenas, a pluralidade étnica e a autodeterminação dos povos. A Carta foi recebida com entusiasmo, pois significou avanços como o abandono dos projetos de integração e o reconhecimento das organizações sociais, costumes, línguas, crenças e tradições de povos indígenas.
Os avanços possibilitados pela nova Constituição, no entanto, não foram suficientes para garantir o direito à existência dessas populações. Só na última década pudemos assistir a um aumento escandaloso de processos de grilagem, invasões garimpeiras, derrubadas de florestas, roubo de patrimônio imaterial e incêndios criminosos em terras indígenas já demarcadas pela União – isso para citar apenas algumas das graves violações aos direitos indígenas. Tais violações, além de atualizarem conflitos que existem desde o início da colonização, alertam para o fato de que os direitos indígenas estão constantemente ameaçados e necessitam de uma mobilização frequente, que alie parceiros indígenas e não indígenas.
Junto aos avanços e apesar dos conflitos violentos, essas populações ocupam cada vez mais espaços políticos, artísticos e de debates públicos, demonstrando uma imensa e duradoura luta de resistência. Pensando sobre o tema, a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin dedica uma seção de sua lista 200 livros para pensar o Brasil a obras que procuram discutir, sob diferentes óticas, algumas questões relacionadas aos povos ameríndios no Brasil.
A lista começa com a obra de Davi Kopenawa Yanomami em parceria com o antropólogo Bruce Albert, A queda do céu, a mais relevante aliança literária já firmada entre um xamã indígena e um antropólogo não indígena. Depois, encontra-se o livro de Ailton Krenak, Ideias para adiar o fim do mundo, composto por ensaios inspiradores em que o autor questiona, entre outros pontos, conceitos arraigados no pensamento euro-americano, como a ideia de uma humanidade singular capaz de abarcar todos os povos do planeta. Mais adiante, aliando uma bela escrita literária com importantes descrições etnográficas, está a célebre obra de Claude Lévi-Strauss, Tristes Trópicos, um clássico tanto para aqueles que desejam pensar o Brasil como para aqueles que procuram conhecer mais sobre os povos indígenas do continente. Avançando um pouco mais, vemos aparecer A inconstância da alma selvagem, de Eduardo Viveiros de Castro, uma coleção de ensaios na qual o autor apresenta algumas de suas principais ideias que marcaram a Antropologia, como por exemplo o conceito de perspectivismo ameríndio, que é capaz de oferecer outra imagem do pensamento indígena. Na sequência, está História dos Índios no Brasil, coletânea organizada por Manuela Carneiro da Cunha que conta com textos de diversos antropólogos e historiadores dedicados à discussão das histórias de diferentes povos indígenas neste país. Ao final, o leitor encontra três obras de viajantes confrontados com os povos indígenas no Brasil. As duas primeiras se passam durante o princípio da colonização: Duas viagens ao Brasil, de Hans Staden, e Viagem à Terra do Brasil, de Jean de Léry. Já o último, O Selvagem, de Couto Magalhães, constitui-se como uma encomenda, a pedido do imperador D. Pedro II, que atribui às populações indígenas no Brasil o papel de inimigas, uma verdadeira barreira ao projeto civilizador. Esses trabalhos permitem entrever além de elementos etnográficos sobre os povos de língua Tupi, teorias europeias de séculos passados a respeito do local ocupado por esses povos no pensamento da época.
Boa leitura!
A queda do céu – palavras de um xamã Yanomami
por Davi Kopenawa Yanomami e Bruce Albert
Davi Kopenawa e Bruce Albert. A queda do céu – palavras de um xamã Yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015
Davi Kopenawa Yanomami é uma das lideranças indígenas mais importantes, reconhecidas e premiadas no Brasil e no mundo. Nascido em 1956 em uma comunidade indígena relativamente isolada na região norte da Amazônia – a atual Terra Indígena Yanomami –, teve desde a infância a vida marcada pelas consequências violentas da ação dos brancos em seu território, principalmente aquelas ligadas à atividade garimpeira e às epidemias. Bruce Albert, nascido no Marrocos em 1952, é doutor em Antropologia pela Universidade de Paris X e defensor dos direitos indígenas, especialmente do povo Yanomami, com quem trabalha desde 1975. A parceria de vida e de trabalho entre o xamã indígena e o etnólogo francês resultou em uma obra que já nasce clássica: A queda do céu – palavras de um xamã Yanomami.
O livro, que ultrapassa as setecentas páginas, demorou mais de vinte anos para ser finalizado com a grandeza impressionante das reflexões de Davi Kopenawa, traduzidas e comentadas por Bruce Albert. Os pensamentos do xamã a respeito da cosmologia Yanomami e também sobre o mundo dos brancos revelam que a incessante busca por ouro e por outras riquezas arrasará não apenas a vida das populações indígenas, mas a de todos os habitantes do planeta. Contra esse terrível desfecho, que se dará por meio de um fato concreto, o desabamento do céu, Davi Kopenawa junta seus esforços, ao lado de espíritos auxiliares, em uma solidária e árdua luta. A obra, definida por Albert como um “pacto etnográfico”, é também um aviso sobre a urgência em mudar radicalmente os modos de vida dos brancos. Nesse sentido, as sabedorias indígenas oferecem caminhos possíveis para escapar de uma catástrofe há muito tempo já anunciada.
Ideias para adiar o fim do mundo
por Aílton Krenak
Ailton Krenak. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
Ailton Krenak (1953) é uma das maiores lideranças indígenas do Brasil. Escritor e poeta da etnia indígena Krenak, Ailton é professor Honoris Causa da Universidade de Juiz de Fora e ficou conhecido pelo papel fundamental durante a constituinte de 88 onde, , ao pintar seu rosto de jenipapo para protestar contra o retrocesso dos direitos dos povos originários, protagonizou a cena mais marcante do evento.
Ideias para adiar o fim do mundo é a reunião de uma série de conferências e palestras que o autor participou nos últimos anos. Nelas, Ailton discorre com muita crítica sobre temas sensíveis do mundo contemporâneo e questiona conceitos como sustentabilidade, o mundo ocidental e branco e a humanidade única que pensamos ser. O livro tornou-se rapidamente um sucesso de vendas, deu projeção nacional a Ailton por marcar uma ruptura com o pensamento branco e ocidental e é, atualmente, utilizado como literatura obrigatória em diversos cursos de sociologia e antropologia no Brasil. Mais do que uma reunião de conferências, Ideias para adiar o fim do mundo é um livro fundamental para entender o Brasil da perspectiva indígena, que por muito tempo foi silenciada pelo homem branco.
Para saber mais:
O mito do acampamento garimpeiro. Entrevista com Ailton Krenak. Boletim 3X22 – Pluralidades Indígenas. Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (usp.br)
KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
Entrevista no programa Roda Viva. Roda Viva | Ailton Krenak | 19/04/2021 – YouTube
Tristes Trópicos
por Claude Lévi-Strauss
Claude Lévi-Strauss. Tristes Trópicos. Paris: Librairie Plon, 1955. (1ª Edição)
Considerado o criador da antropologia estrutural, cujas implicações teóricas e práticas impactaram imensamente as ciências humanas do século XX, Claude Lévi-Strauss foi um antropólogo, filósofo, advogado e professor francês integrante da missão universitária francesa, responsável por auxiliar a estruturação da Universidade de São Paulo em meados da década de 1930. Nesta missão, o antropólogo ocupou a cadeira de Sociologia na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da instituição.
Foi durante sua passagem pelo Brasil, ainda nos anos 30, que ocorreram as inspiradoras viagens etnológicas de Lévi-Strauss às regiões mais remotas e profundas de um Brasil central quase sem fim. As viagens, marcadas pelo entusiasmo de um jovem que estava prestes a viver experiências análogas às de seus escritores de cabeceira – os viajantes europeus do século XVI, como Jean de Léry –, proporcionaram o encontro melancólico do antropólogo com diversas populações indígenas no país. Tal encontro, além de ter transformado sua trajetória para sempre, daria origem, décadas depois, a uma de suas mais célebres e belas obras, Tristes Trópicos.
De difícil classificação, poderia-se dizer que o livro repousa nas fronteiras borradas dos escritos etnográficos, dos diários de viagem, da literatura e também das autobiografias. Como o título já anuncia, o caráter triste da obra se deve à comovente constatação de que o tempo, aliado às intransigentes ações do capitalismo colonial, estaria atuando como um trator aniquilador das diferenças entre aquelas populações e a sociedade nacional brasileira. O tempo, aliás, é o eixo responsável por dar contorno às inquietações de Lévi-Strauss durante toda a extensão da obra. Este foi o primeiro esforço do autor em elaborar reflexões sobre a temática, que o acompanhou por outros de seus escritos.Além de descrever os percalços do jovem pesquisador em uma aventura antropológica, Tristes Trópicos anuncia a angústia em relação ao futuro do país. Através das lentes de sua câmera Leica e de seus escritos em cadernos de campo, Lévi-Strauss registra um presente vertiginoso, capaz de remeter ao passado e de fazer refletir sobre uma possibilidade de futuro que jamais acontecerá.
A inconstância da alma selvagem
por Eduardo Viveiros de Castro
Eduardo Viveiros de Castro. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
Eduardo Viveiros de Castro é um antropólogo brasileiro internacionalmente reconhecido por sua contribuição para os estudos de etnologia indígena, sobretudo a respeito das terras baixas sul-americanas. Formado em Ciências Sociais pela PUC-RJ, é mestre e doutor pelo Museu Nacional (UFRJ). Tendo desenvolvido trabalho de campo entre os Yawalapíti, povo indígena do Alto Xingu, e também junto aos Araweté, povo indígena tupi-guarani do estado do Pará, Viveiros de Castro é professor adjunto do Museu Nacional (UFRJ), já tendo sido professor visitante nas Universidades de Chicago, Manchester, Paris X na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, entre outras instituições de ensino.
O livro A inconstância da alma selvagem reúne uma coletânea de textos do antropólogo, organizados cronologicamente a partir da década de 1970 até o início dos anos 2000. O título faz referência a um sermão de Antônio Vieira sobre a velocidade com que certas crenças e práticas cristãs são tomadas e abandonadas pelos indígenas a partir do contato com os brancos, daí a inconstância em relação ao projeto catequizador. Quebrando as expectativas do pensamento colonizador religioso, Viveiros de Castro demonstra que, ao contrário do que esperavam os religiosos, as práticas de vingança ocupam um lugar muito mais duradouro e relevante no pensamento indígena do que a devoção a um único Deus compartilhado por toda a humanidade na terra. O tema da vingança, inclusive, liga diretamente seu trabalho a outra obra clássica das Ciências Sociais, A função social da guerra na sociedade Tupinambá, de Florestan Fernandes. É em A inconstância da alma selvagem que o etnólogo realiza uma de suas mais importantes contribuições teóricas: a síntese comparativa sobre o perspectivismo amazônico, responsável por projetá-lo internacionalmente. Nas palavras de um de seus mestres, Claude Lévi-Strauss, Eduardo Viveiros de Castro pode ser considerado “o fundador de uma nova escola na antropologia”.
História dos índios no Brasil
por Manuela Carneiro da Cunha
Manuela Carneiro da Cunha. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
Manuela Carneiro da Cunha nasceu em Portugal em 1943. Filha de pais húngaros, chegou ao Brasil ainda na infância, quando tinha apenas 11 anos. Mudou-se para Paris na década de 1960. Na mesma época, já formada em Matemática, a pesquisadora passou a frequentar os seminários de Claude Lévi-Strauss. O etnólogo francês, interessado na possibilidade de traduzir para as linguagens matemáticas os seus esquemas estruturalistas, viu em Carneiro da Cunha uma importante interlocução. Inspirada por Lévi-Strauss, a autora realizou uma importante pesquisa etnográfica entre os Krahô, povo indígena habitante do Brasil Central. Intitulado Os Mortos e os Outros, esse trabalho permanece fundamental para a etnologia brasileira.
Militante política pelos direitos indígenas, publicou em 1992 o livro História dos Índios no Brasil. A obra é fruto de um projeto iniciado em 1988, cujos objetivos eram realizar um balanço a respeito do desenvolvimento teórico dos estudos de história indígena no país e também traçar novas direções para as pesquisas que estariam por vir. O ano de 1988, vale lembrar, também era o ano do nascimento de uma nova Constituição Federal, conhecida por seus avanços em diversas agendas progressistas, inclusive a indígena. Manuela Carneiro da Cunha reuniu neste livro uma coletânea com pesquisas de diferentes áreas das ciências humanas, que têm como ponto comum a abordagem do passado dos povos indígenas no país. Já na apresentação do livro, é possível verificar críticas a algumas armadilhas do pensamento colonialista brasileiro, como o suposto primitivismo indígena e a crença evolucionista, responsável por localizar as populações indígenas em uma posição de atraso em relação à sociedade nacional.
Duas viagens ao Brasil
por Hans Staden
Hans Staden. Warhaftige Historia und Beschreibung (…), 1557. Geralmente traduzido em português por Duas viagens ao Brasil.
Em 1547, Hans Staden (1525 c. – 1576) partiu de sua terra natal, Hesse, no centro da Alemanha, com o objetivo de visitar a Índia, mas acabou indo para a América do Sul. Após viagem comercial de poucos meses para a costa nordeste do continente, o alemão integrou uma expedição espanhola com destino à região do Rio da Prata. Uma série de naufrágios, contudo, o levou à Capitania de São Vicente, onde serviu num forte em Bertioga até ser capturado por índios tupinambá, que o mantiveram nove meses em cativeiro, sob ameaça de ser morto e comido em um ritual antropofágico. Staden conseguiu, entretanto, ser resgatado por uma nau francesa e retornou à Alemanha em 1555, onde viveu o resto de seus dias.
Dois anos depois de seu retorno a Hesse, o viajante alemão publicou um livro, fartamente ilustrado, que conta as aventuras de suas duas viagens ao Novo Mundo. Apesar de Staden ser um típico representante da violenta expansão colonial europeia e estar envolto por preconceitos culturais e religiosos de seu tempo sobre as populações nativas do continente, essa obra é um dos testemunhos mais importantes sobre os povos tupi da costa sul-americana. O livro também pode ser lido como uma empolgante narrativa de aventura. Embora forçada, a convivência de Staden entre os Tupinambá não só o permitiu observar de muito perto o modo de vida de seus captores, mas também o fez partilhar de muitas de suas práticas. Muito da riqueza do livro se deve a essa situação singular do mercenário alemão.
Links BBM:
Tradução para o português a partir da versão original em alemão
Tradução para o português a partir da versão modernizada do alemão
História de uma viagem feita à terra do Brasil
por Jean de Léry
Jean de Léry. Histoire d’vn voyage faict en la terre du Bresil, 1578. Geralmente traduzido em português por História de uma viagem feita à terra do Brasil
Jean de Léry (1536-1613) nasceu na França em uma família modesta. Aprendeu o ofício de sapateiro e ainda jovem converteu-se ao calvinismo, o que o fez se deslocar até Genebra, na Suíça, em 1552, para encontrar João Calvino. Cinco anos depois, em 1557, Calvino enviou Léry e mais treze calvinistas para a França Antártica, colônia francesa que havia se instalado na Baía de Guanabara em 1555. Foi o próprio Nicolas de Villegagnon, comandante da colônia, quem escreveu a Calvino solicitando a ida de missionários protestantes à jovem colônia. Logo após a chegada do grupo, contudo, Villegagnon, que oscilava entre o catolicismo e o protestantismo, passou a perseguir o grupo calvinista, que a um certo momento se refugiou entre os Tupinambá. Léry conviveu cerca de dois meses entre estes e no início de 1558 conseguiu partir de volta à Europa. A França Antártica ruiria pouco depois, em 1560. Formado ministro calvinista em Genebra, em 1572 Léry e outros protestantes foram cercados durante mais de seis meses por católicos na cidade francesa de Sancerre, onde muitos calvinistas morreram de fome. Léry, contudo, sobreviveu ao cerco e escreveu um livro sobre o evento (História memorável do cerco de Sancerre, 1574). Ele prosseguiu sua atividade religiosa e morreu de peste em 1613.
Embora tenha retornado do Brasil em 1558, Jean de Léry publicou seu relato sobre suas experiências, História de uma viagem feita à terra do Brasil, apenas em 1578. Em certa medida, o relato do viajante calvinista se contrapõe às obras do missionário católico André Thevet, que também esteve na França Antártica e publicou suas experiências em dois livros: Singularidades da França Antártica (1557) e Cosmografia universal (1575). O livro de Léry é notável sobretudo pela descrição que é feita da sociedade e cultura tupinambá, mas também pela descrição da flora e fauna do Novo Mundo. Para fazer seus leitores europeus conhecerem um mundo estranho, Léry se vale da analogia, pela qual ele compara os costumes tupinambá aos costumes europeus, as frutas e animais da América às frutas e animais da Europa etc. Na maioria das vezes, as analogias rebaixam os Tupinambá, que são vistos como selvagens pagãos. Mas em certos momentos, Léry não esconde sua admiração por uma cultura muito diferente da sua, que ele não deixa de exaltar e elogiar. A narrativa de Léry parece ter influenciado o filósofo Michel de Montaigne a escrever seu famoso ensaio “Dos canibais” (1580). Já no século XX, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss saudaria a História de uma viagem feita à terra do Brasil como uma das primeiras grandes etnografias sobre os povos indígenas das Américas.
O selvagem
por Couto de Magalhães
Couto Magalhães. O Selvagem. Rio de Janeiro, 1876
José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898) nasceu em Diamantina, Minas Gerais. Era filho de uma abastada família de comerciantes de pedras preciosas. Teve formação militar no Rio de Janeiro e em Londres, além de ter obtido diploma de direito em São Paulo. Couto de Magalhães foi uma importante figura política no Segundo Reinado. Ao longo da década de 1860, governou sucessivamente as províncias de Goiás, Pará, Mato Grosso e, já nos anos 1870, São Paulo. Também teve participação destacada na Guerra do Paraguai (1864-1870). Em 1868, Magalhães fundou a Empresa de navegação a vapor do Rio Araguaia. Mais tarde, em 1875, obteve do Império a concessão para explorar a linha de ferro Minas and Rio Railway. Seus longos anos vivendo nas províncias do centro-oeste e norte do Brasil atenderam a seu interesse pelo estudo dos povos e culturas indígenas, embora seu objetivo principal fosse “civilizá-los”, ou “integrá-los” à sociedade branca. Entre os livros que publicou, destacam-se Viagem ao rio Araguaia (1863), O selvagem (1876) e Ensaios de antropologia (1894).
O selvagem (1876) é certamente o livro mais célebre de Couto de Magalhães. Enquanto a literatura indianista criava uma imagem de um índio idealizado, que muitas vezes sacrificava a própria vida para salvar os brancos e sua civilização, o livro de Couto de Magalhães mostra a face política do Império em relação aos povos originários que viviam no Brasil. O selvagem, aliás, foi uma encomenda do imperador D. Pedro II. O livro é dividido em duas partes. A primeira é um curso de língua tupi viva ou nheengatu e a segunda trata de “origens, costumes e região selvagem.” O objetivo do livro, contudo, não era propriamente conhecer outra sociedade e cultura, mas acabar com ela, “integrando-a” à civilização branca. As intenções do livro de Couto de Magalhães aparecem já na capa do livro. Entre elas estão: “conquistar duas terças partes do nosso território” e “adquirir mais de um milhão de braços aclimados e utilissimos”. Ou seja, enquanto ocupam uma terra cobiçada pelos brancos, o índio é inimigo. Mas pode se tornar aliado ao se transformar em mão de obra barata e abundante para finalidades que nada tinham a ver com seus valores culturais. Quase 150 anos depois, os índios que vivem no Brasil ainda precisam enfrentar esse tipo de política, que quer invadir as terras que eles ocupam há milhares de anos e transformá-los em “cidadãos” brasileiros; na verdade, em vítimas potenciais de todo o tipo de violência: cultural, política, econômica, etc. O selvagem permite, assim, tanto compreender como os povos indígenas eram vistos pela classe dirigente do Segundo Império quanto perceber correlações entre o passado e o presente da questão indígena no Brasil.
Fantástico este projeto, parabéns aos idealizadores e organizadores.