Desde o início da Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII, a distribuição dos habitantes no campo e na cidade tem passado por transformações dramáticas em todo o mundo. Em países da Europa – como Reino Unido, Alemanha e Bélgica – e nos EUA, onde os processos da Revolução Industrial se consolidaram primeiro, o desenvolvimento de grandes fábricas e de meios de transporte mais eficientes promoveu um rápido crescimento das cidades devido à demanda crescente de mão de obra. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento de tecnologias ligadas à produção agrícola (uso de fertilizantes e mecanização do plantio e colheita, por exemplo) tornou possível produzir mais com menos pessoas trabalhando no campo.
No Brasil, o processo de urbanização caminhou lentamente até meados do século XX, quando grandes indústrias começaram a surgir na Região Sudeste e houve significativa modernização das atividades agrícolas. Em 1872, por exemplo, apenas 6% dos brasileiros viviam em cidades. A partir dos anos 1940, esse percentual passou a crescer mais rapidamente. A população urbana do Brasil era de 36% nos anos 1950 e, quarenta anos depois, na década de 1990, era de 74%. Mais recentemente, os dados estatísticos de 2015 informaram que 84% dos brasileiros viviam em cidades.
O crescimento acelerado das cidades brasileiras propiciou a melhoria de vida para muitos cidadãos que viviam em más condições nas áreas rurais em função das secas prolongadas, do trabalho precarizado nos grandes latifúndios, da falta de recursos aos pequenos produtores, entre outros fatores. Contudo, a maioria das cidades cresceu desordenadamente, produzindo pequenos bolsões de riqueza em meio a grandes bolsões de pobreza. Nas periferias dos grandes centros urbanos, a vida de muitos brasileiros continuou tão ou ainda mais dura do que no campo. Desemprego ou empregos precários, violência, falta de acesso a recursos básicos como saúde, educação e saneamento, são alguns dos muitos problemas que ainda são enfrentados.
Há muito tempo a literatura tem dado espaço aos problemas e assuntos relacionados ao campo e à cidade. Selecionamos, então, dez obras da literatura brasileira dos séculos XIX e XX que lidam diretamente com o tema. Começando pelos livros relacionados ao campo, O quinze (1930), de Raquel de Queiroz, e Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos, representam a luta de camponeses do semiárido nordestino para escapar da seca e da exploração dos latifundiários. Já o romance Canaã (1902), de Graça Aranha, procura tratar da imigração europeia ao contar a história de dois imigrantes alemães que se estabelecem como agricultores no interior do Espírito Santo. Por último, Ponciá Vicêncio (2003), de Conceição Evaristo, e Torto Arado (2019), de Itamar Vieira Junior, são dois romances contemporâneos que debatem a permanência da escravidão ao trazer à tona como as relações no campo ainda são afetadas pela desigualdade social e pelo preconceito racial.
Por outro lado, temos obras que versam mais especificamente sobre as grandes cidades. O Rio de Janeiro é o espaço de Memórias de um sargento de milícias (1854), de Manuel Antônio de Almeida, que inaugura o romance urbano brasileiro; de A alma encantadora das ruas (1908), de João do Rio, que faz um retrato da Belle Époque carioca e lança olhares aos marginalizados; e também de Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915), de Lima Barreto. Neste, por sua vez, o protagonista perfaz o caminho da cidade para o campo. Completam a lista Quarto de Despejo (1960), de Carolina Maria de Jesus, e Capão Pecado (2000), de Ferréz, dois livros cujos protagonistas enfrentam a fome, a violência e o racismo na periferia de São Paulo, problemas que ainda persistem na periferia desta e de tantas outras cidades brasileiras.
Memórias de um Sargento de Milícias (1854)
de Manuel Antônio de Almeida
Manuel Antônio de Almeida. Memórias de um Sargento de Milícias. Rio de Janeiro: Oficcinas da Livraria Moderna Domingos de Magalhães, 1854.
Manuel Antônio de Almeida nasceu no Rio de Janeiro em novembro de 1831 e faleceu com apenas 30 anos, em novembro de 1861, em um naufrágio na cidade de Macaé. Manuel enfrentou inúmeras dificuldades financeiras desde a infância, ficando órfão de pai com 10 anos de idade e perdendo sua mãe 10 anos depois. Em 1855, graduou-se em Medicina pela Faculdade de Medicina da Corte, mas não chegou a exercer a profissão, dedicando-se então ao jornalismo para resolver adversidades financeiras. Como redator do jornal Correio Mercantil, entre 1852 e 1853, publicou em folhetins Memórias de um Sargento de Milícias, sob o pseudônimo “Um brasileiro”. Manuel foi professor do Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, e em 1858 foi nomeado administrador da Tipografia Nacional. Também foi patrono da 28ª cadeira da Academia Brasileira de Letras.
Memórias de um Sargento de Milícias (1854) é o único romance escrito pelo autor e tornou-se um grande sucesso da literatura brasileira décadas após sua publicação. Considerado o primeiro romance urbano brasileiro, Memórias de um Sargento de Milícias retrata o cotidiano das camadas mais pobres da sociedade carioca no século XIX. Servindo-se da sátira, o autor narra, com uma linguagem coloquial, as infelizes histórias de Leonardo, um garoto abandonado pelos pais que tenta sobreviver às difíceis condições que lhe foram impostas. É notável que o romance de Manuel tenha fugido dos padrões românticos vigentes em sua época, tornando-se uma importante representação dos costumes sociais urbanos do Rio de Janeiro do começo do século XIX. O anti-herói e protagonista Leonardo rompe com a tradição do herói romântico e apresenta uma nova criação de personagens, com características e personalidades que antecipam as propostas do realismo.
Veja na BBM Digital:
Edição do romance ilustrada pelo artista Francisco Acquarone (1941)
Canaã (1902)
de Graça Aranha
Graça Aranha. Canaã. Rio de Janeiro: H. Garnier Livreiro-Editor, 1902
Nascido em São Luís (MA) em 1868, José Pereira da Graça Aranha, mais conhecido como Graça Aranha, foi um romancista e diplomata brasileiro. Formou-se em Direito, em 1886, e cumpriu sua magistratura no Espírito Santo, em 1890, período em que se baseou para escrever Canaã (1902). Graça Aranha foi uma figura de destaque na inauguração do modernismo no país, fato que pode ser notado no seu texto A estética da vida, que antecedeu a Semana de 22. Mesmo tendo sido um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras (ABL), saiu da instituição em 1924 devido à recusa dos acadêmicos em adotar o programa moderno proposto por ele. O autor de Canaã também notabilizou-se por obras como Malazarte (1911) e A viagem maravilhosa (1929), seu último romance. Faleceu no Rio de Janeiro em 1931.
Os imigrantes alemães Milkau e Lentz são os protagonistas de Canaã, romance publicado em 1902 que teve grande sucesso editorial. Na história, eles se conhecem por conta de sua imigração para o Brasil e se estabelecem em Porto do Cachoeiro (ES). Enquanto Milkau é um idealista, Lentz é determinista. Esse confronto de ideias que estavam em voga no começo do século XX dá um tom ensaístico a uma narrativa dotada de vários símbolos, a começar pelo seu título de inspiração bíblica. Vale notar que no romance, assim como em seu contemporâneo Os sertões (1902), de Euclides da Cunha, os problemas brasileiros – a imigração, o racismo e a questão agrária, por exemplo – são trazidos para o centro da discussão. Ressalta-se que, assim como ocorreu há alguns anos com obras de Lima Barreto e Euclides da Cunha, Canaã e outros livros de Graça Aranha merecem um movimento de resgate que resulte em mais leituras e debates críticos.
Veja na BBM Digital:
1a edição do romance (1902): https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/3927
A alma encantadora das ruas (1908)
de João do Rio
João do Rio. A alma encantadora das ruas. Paris: H. Garnier, 1908 (1ª edição)
João do Rio, um dos pseudônimos do escritor e jornalista Paulo Barreto, nasceu em 1881 no Rio de Janeiro (RJ). No início de sua carreira, colaborou em periódicos como O Paiz e O Correio Mercantil e, em 1903, começou a escrever na Gazeta de Notícias, onde adotou o pseudônimo João do Rio e se envolveu com a crônica social. As reportagens escritas sobre o Rio de Janeiro na Gazeta de Notícias entre janeiro e março de 1904 foram reunidas em As religiões no Rio, lançado no mesmo ano. Embora seja mais reconhecido como jornalista e cronista, João do Rio também foi tradutor e dramaturgo, sendo um de seus textos dramáticos mais conhecidos A Bela Madame Vargas (1912). Foi eleito, em 1910, para uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1921.
O livro A alma encantadora das ruas (1908) é uma coletânea de crônicas, publicadas na imprensa entre 1904 e 1907, em que o autor assume a posição de flâneur, indivíduo que vagueia pelas ruas da metrópole vislumbrando a diversidade de rostos, ocupações e posições sociais. Mais do que isso, João do Rio buscou o que havia de mais exótico nas ruas, como os “Músicos ambulantes”, os “Velhos cocheiros” e “As mulheres detentas”, títulos de algumas crônicas do livro que denotam a predileção do autor. Com uma escrita que vagueia entre o jornalismo e a literatura, o vagar pela rua é matéria para descrições precisas e líricas do espaço urbano. A rua, para João do Rio, não é somente o espaço físico e geográfico, mas um ser, possuidor de alma, vivo e pulsante. A alma encantadora das ruas serve como documento importante da formação urbana carioca; não obstante, também é um convite a um passeio pelas ruas da Belle Époque carioca, levando o leitor aos cantos mais ocultos e marginais da metrópole.
Triste fim de Policarpo Quaresma (1915)
de Lima Barreto
Lima Barreto. Triste fim de Policarpo Quaresma. Rio de Janeiro: Typ. “Revista dos Tribunaes”, 1915
Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro, em 1881. Foi jornalista, funcionário público e escritor. Escreveu para periódicos como Correio da Manhã, Gazeta da Tarde e Jornal do Comércio. Em 1907, fundou a revista Floreal, a qual publicou crítica e literatura, além de ter servido como veículo folhetinesco para as Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909), primeiro romance do autor. Triste fim de Policarpo Quaresma (1915) também seguiu o mesmo percurso, lançado em forma de folhetim durante o ano de 1911, e publicado como livro em 1915. Algumas outras obras relevantes do autor são Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919), Os Bruzundangas (1923) e Clara dos Anjos (1948), esta última lançada postumamente.
Triste fim de Policarpo Quaresma (1915) é a obra mais celebrada de Lima Barreto. Nela, o autor desenvolve com profundidade o tema da idealização nacional. Policarpo, protagonista do romance, é um defensor do Brasil em seus variados âmbitos, como a terra, seu povo e seus costumes. Mas o confronto dele e de seu ideal com a burocracia estatal, a classe política e a sociedade resulta na percepção da ingenuidade de sua visão acerca do país. O livro traz uma concepção cética e pessimista do Brasil, corroborada em outros personagens da narrativa, como Ricardo Coração dos Outros, um artista pouco reconhecido pela crítica e pelos círculos sociais, e Olga, a afilhada de Policarpo que se casa menos pela realização do amor que pela obrigação social. Ainda há espaço para que o narrador teça comentários críticos e mordazes sobre o positivismo, o sincretismo religioso, a transformação urbana da cidade do Rio de Janeiro e sobre a problemática racial pós-abolição da escravidão. Por fim, como é afirmado pelo crítico literário Alfredo Bosi, a grandeza de Triste fim de Policarpo Quaresma está no personagem principal, que não é construído como um tipo imóvel, e no desencontro entre o que o crítico nomeia como “um” ideal e “o real”.
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O quinze (1930)
de Rachel de Queiroz
Rachel de Queiroz. O quinze. Fortaleza: Urania, 1930
Rachel de Queiroz nasceu em Fortaleza (CE) em 1910. Em 1917, ela partiu para o Rio de Janeiro com a família, que fugia das consequências sociais e econômicas que a terrível seca de 1915 provocou em certas regiões do Nordeste brasileiro. Ela retornou, contudo, a Fortaleza em 1919, onde se formou no curso normal. Iniciou sua carreira aos 17 anos nos jornais locais. Em 1930, com 20 anos, publicou seu primeiro romance, O Quinze, que atraiu os olhares de grandes críticos do Rio de Janeiro e São Paulo. A partir de então, Raquel estabeleceu-se como uma das principais figuras do meio literário e intelectual brasileiro. Dedicou-se também à crônica, à dramaturgia, à literatura infantil e à tradução de obras literárias. De sua grande produção, destacam-se os romances As Três Marias (1939), Dôra, Doralina (1975), Memorial de Maria Moura (1992) e a antologia de crônicas 100 Crônicas Escolhidas (1958). Tachada de esquerdista no início da carreira, ela mudou seu posicionamento político ao longo do tempo e foi apoiadora da ditadura militar instalada no Brasil a partir de 1964. Em 1977, ela foi a primeira mulher eleita para a Academia Brasileira de Letras (ABL). Ao longo de suas sete décadas de produção, ela recebeu inúmeros prêmios e homenagens, sendo um dos mais importantes o Prêmio Camões, em 1993.
O Quinze (1930) é uma das principais obras que formam um conjunto de produções literárias conhecidas como Romance de 30 (por terem sido publicadas ao longo da década de 1930) ou Romance regionalista (em razão da temática regional, que representava espaços e personagens que estavam fora dos grandes centros urbanos do Sudeste). O título do romance faz referência ao ano de 1915, que assolou parte do Nordeste, sobretudo o estado do Ceará. A história é contada pelo ponto de vista de Conceição, jovem professora de Fortaleza que vai passar férias na fazenda da família, em Quixadá, interior do estado. Na fazenda, a professora testemunha o avanço da seca e suas consequências sobre a população local, que vive da pecuária e agricultura. A narrativa passa então a acompanhar o vaqueiro Chico Bento e sua família, que, sem ter como sobreviver por conta da falta de chuva, resolvem migrar a pé de Quixadá para Fortaleza. No caminho, a família enfrenta o calor, a seca, a fome e a morte. Chegando ao litoral, a família de Chico Bento é colocada num “Curral do governo”, campo de concentração criado pelas autoridades locais para impedir que a população do interior, miserável e faminta, alcançasse Fortaleza. Narrado segundo as convenções do romance realista, O Quinze representa a luta das populações do interior do Nordeste por uma vida mais digna: açoitados pela seca e pela miséria social no campo, os sertanejos encontraram outras formas de violência e miséria na cidade. No fim das contas, quem deveria lutar pela garantia de melhores condições de vida dessa população acaba sendo responsável por torná-la ainda mais precária.
Vidas secas (1938)
de Graciliano Ramos
Graciliano Ramos. Vidas secas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938
Graciliano Ramos nasceu em Alagoas em 1892. Foi romancista, contista, cronista, jornalista e político, além de um dos maiores nomes da prosa modernista brasileira. Desde jovem contribuiu para jornais, tendo em 1914 se mudado para o Rio de Janeiro para trabalhar como revisor. Anos depois retornou a Alagoas e, em 1928, tornou-se prefeito da cidade Palmeira dos Índios, no interior do estado. Renunciou ao mandato em 1930, e tornou-se diretor da Imprensa Oficial em Maceió. Nessa década também foi diretor da Instrução Pública de Alagoas e redator do Jornal de Alagoas. Foi preso em 1936, acusado de associação ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), e cumpriu pena até 1937. A estreia do autor na literatura aconteceu em 1933 com a publicação de Caetés, seu primeiro romance. A escrita de Graciliano Ramos revela tanto aspectos psicológicos de suas personagens quanto abordagens político-sociais, na medida em que sua obra instiga uma leitura crítica sobre os rumos da sociedade moderna, em especial sob a perspectiva do regionalismo nordestino. Entre seus romances publicados, encontram-se as obras São Bernardo (1934), Angústia (1936) e Vidas Secas (1938).
Vidas Secas, livro considerado por parte da crítica literária como a obra prima do autor, retrata as carências e dificuldades enfrentadas nas regiões menos desenvolvidas do Nordeste brasileiro. Seguindo a trajetória de uma família de retirantes, a narrativa de Graciliano Ramos aborda não apenas as problemáticas da região em questão, mas também se aprofunda nas dinâmicas da vida das personagens, tratando das relações entre os homens, da política e da natureza em meio à seca na região. Ao fechar sua narrativa ao redor do núcleo familiar, o autor também explora os dramas individuais, conferindo à pessoa sertaneja uma caracterização distinta no meio literário brasileiro.
Quarto de despejo (1960)
de Carolina Maria de Jesus
Carolina Maria de Jesus. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1960
Carolina Maria de Jesus foi uma das primeiras escritoras negras do país, além de sambista e poeta. Publicou seu primeiro e mais famoso livro “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada” em 1960, que já foi traduzido para 14 idiomas. Nascida em Sacramento (MG) em 1914, migrou para São Paulo em 1937, onde morou na Favela do Canindé, às margens do rio Tietê. Criou seus três filhos catando papel e ferros nas ruas e no lixão. Publicou um disco de samba e outros três livros em vida, teve obras póstumas e há ainda muitos cadernos de poesia e romances que nunca foram publicados. Suas condições de vida melhoraram a ponto de se mudar para um sítio no interior, onde morreu em 1977, ainda pobre e sem o devido reconhecimento literário. Em tempos recentes, têm surgido cada vez mais estudos e eventos dedicados a conhecer e difundir sua obra e acervo.
Quarto de despejo era o seu diário que contava, com uma escrita sucinta, vívida e direta, o seu cotidiano à margem da metrópole paulista. Nele, a favela é o “quarto de despejo” onde o indesejável é atirado para o esquecimento de quem está na sala de estar. Sua importância vai além da literatura: ao descrever os personagens e as relações na favela e fora dela, Carolina também pensou sobre o Brasil e as relações de poder na sociedade, lidando com temas que são relevantes até hoje. A desigualdade social é traçada em várias instâncias no livro a partir de sua experiência e de anedotas: ela escreve sobre a pobreza, a fome, a repressão estatal, o descaso e o desamparo institucional, a violência doméstica, o racismo, entre outros temas. Essas questões provocam uma indignação que perpassa o livro e, por mais que se repitam as injustiças, elas não são vistas como normais ou naturais. A fome, por exemplo, é quase uma personagem: persistente e desesperadora. Sua repetição na narrativa traz o desenvolvimento da personagem, vai crescendo e acrescentando seu peso, tornando-se tão presente e concreta que até ganha cor: é amarela. Em vários momentos há relatos sobre a situação da mulher pobre e/ou negra e casos de violência doméstica, ora reproduzindo preconceitos, ora sendo veementemente contra a forma como as mulheres são tratadas. Ao ser criticada por criar os filhos sozinha, ela sempre tem uma resposta loquaz, dizendo que preferiu não se casar a se sujeitar à violência doméstica que ela já tinha sofrido e que ainda via acontecer com tanta frequência.
Capão Pecado (2000)
de Ferréz
Ferréz. Capão Pecado. São Paulo: Labortexto Editorial, 2000 (1ª edição)
Natural do Capão Redondo, distrito da Zona Sul de São Paulo, Ferréz (Reginaldo Ferreira da Silva) foi vendedor ambulante, balconista e chapeiro de lanchonete até tornar-se um dos principais nomes da literatura brasileira do século XXI. Um dos expoentes do que ele nomeia de “literatura marginal”, sua obra trata da vida e da luta dos habitantes das regiões periféricas de São Paulo, particularmente de seu bairro de origem. Influenciado pelo hip-hop e pela língua pulsante e criativa das regiões marginalizadas, Ferréz estreou na literatura em 1997 com a coletânea de poemas Fortaleza da Desilusão, mas foi com seu romance Capão Pecado, de 2000, que ele inseriu seu nome na literatura brasileira contemporânea. Mirando principalmente o público das periferias, o escritor do Capão vem produzindo uma obra variada, que passa por contos breves (como Ninguém é inocente em São Paulo, de 2006, e Os ricos também morrem, de 2015), pela literatura infantil (Amanhecer Esmeralda, 2005) e por um disco de rap (Determinação, 2000). Ferréz trabalha com e pela população do Capão Redondo, onde desenvolve projetos educativos e culturais por meio da ONG Interferência, que ele criou em 2009.
Desde sua publicação em 2000, feita de forma independente, Capão Pecado já vendeu mais de cem mil cópias. Inicialmente popular na periferia que ele representa, o romance difundiu-se pelo Brasil e mundo afora, tendo sido publicado na Alemanha, Espanha, Estados Unidos, França e outros países. O jovem Rael, personagem principal do livro, vive uma vida de pobreza no Capão Redondo, onde a violência impera. Decidido a levar uma vida honesta, apesar do mar de injustiças em que vive, Rael vê-se obrigado a fazer uma escolha decisiva em sua vida quando se apaixona por Paula. Pela trama amorosa principal passa uma grande diversidade de personagens marginalizados, que lutam à sua maneira em um mundo violento, pobre e desigual, que é a dura realidade de todas as periferias urbanas do Brasil. Com sua linguagem inspirada na fala dos periféricos, Capão do Pecado, ao ganhar espaço no cenário cultural brasileiro, dá voz aos que lutam por uma vida mais justa e digna em espaços historicamente abandonados pelo Estado.
Ponciá Vicêncio (2003)
de Conceição Evaristo
Conceição Evaristo. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2003
Maria da Conceição Evaristo de Brito é romancista, contista, poeta e educadora. Nascida em 1946 em uma comunidade de Belo Horizonte, Conceição trabalhou como empregada doméstica até 1971, ano em que concluiu seus estudos secundários no Instituto de Educação de Minas Gerais. Mudou-se para a cidade do Rio de Janeiro em 1973, onde formou-se em Letras pela UFRJ. Em 1996, defendeu na PUC-RJ sua dissertação Literatura Negra: uma poética da nossa afro-brasilidade; e, em 2011, sua tese de doutoramento Poemas Malungos – Cânticos Irmãos na UFF. Engajou-se na defesa de uma literatura afrobrasileira desde a década de 1980, tendo publicado em diversas revistas nacionais e internacionais, com destaque para a série Cadernos Negros, do Grupo Quilombhoje, na qual fez sua estreia literária.
Ponciá Vicêncio é o primeiro romance da autora, tendo sido publicado em 2003. O livro leva o nome da protagonista, uma mulher negra, cuja vida é contada desde a sua infância. A menina Ponciá nasce em uma zona rural do interior do Brasil, onde vivem descendentes de escravizados, como seu pai e irmão, que trabalham na lavoura da família Vicêncio. O romance mostra a relação desigual entre brancos e negros sobretudo a partir da propriedade das terras e da precarização do trabalho. A figura do avô de Ponciá, que fora escravo, é um elemento desse quadro colonial, demonstrando a violência do sistema que o levou à loucura e a atrocidades contra a família e contra si mesmo. Ponciá já adulta vai para a cidade grande, onde se torna empregada doméstica, seguida depois pelo irmão – que sonhava ser um soldado; porém, por não saber ler torna-se faxineiro de uma delegacia. A tensão da trama está no desencontro entre a mãe e os filhos, com seus conflitos afetivos particulares, que depois se reencontram e efetuam o retorno à Vila Vicêncio, ressignificando suas jornadas e honrando a herança de seus ancestrais.
Torto Arado (2019)
de Itamar Vieira Junior
Itamar Vieira Junior. Torto Arado. São Paulo: Todavia, 2019
Itamar Vieira Junior nasceu em Salvador em 1979. É escritor, pesquisador e funcionário público do INCRA. Formou-se em geografia pela UFBA, sendo um dos selecionados para a bolsa Milton Santos, programa de fomento à pesquisa destinado a jovens estudantes negros de baixa renda. Pela mesma universidade concluiu seu mestrado e doutorado em Estudos Étnicos e Africanos, com pesquisa realizada na Chapada Diamantina (BA). Dessa experiência em meio às comunidades quilombolas, ele retirou a inspiração para compor seu livro Torto Arado (2019), que fora publicado primeiramente em Portugal, em 2018, pela Editora Leya. Nesse mesmo ano, o livro recebeu o Prêmio Leya, premiação atribuída a um romance inédito ainda não galardoado e escrito em português. Em 2019, o livro é lançado no Brasil pela Editora Todavia e, em 2020, recebe os prêmios Oceanos e Jabuti. Itamar também é autor dos livros de contos A Oração do Carrasco (2017), pela Editora Mondrongo, e Doramar ou a Odisseia: Histórias (2021), pela mesma editora de seu romance.
A narrativa de Torto Arado é protagonizada pelas irmãs Belonisia e Bibiana, filhas de Zeca Chapéu Grande e Salustiana Nicolau – trabalhadores de uma grande fazenda pertencente à família Peixoto, e também lideranças religiosas de sua comunidade. Na primeira parte do livro, “Fio de Corte”, narrada por Bibiana, os leitores acompanham as irmãs em sua infância, quando vivem uma experiência traumática que definirá suas vidas, fazendo com que uma esteja indissociavelmente atrelada à outra. A segunda parte, “Torto Arado”, narrada por Belonisia, e a terceira, “Rio de Sangue”, narrada por Santa Rita Pescadeira, retratam a tomada de consciência de seu direito à terra e a subsequente revolução. Torto Arado é uma narrativa sobre as permanências, as lutas e lutos de uma comunidade quilombola do “Brasil profundo”, onde sua população não apenas sofre os legados históricos da escravização, mas também as insuficiências do Estado brasileiro, que ignora as injustiças enraizadas no passado do país. Essa consideração sobre o livro é percebida, por exemplo, quando o tempo da narrativa não é explicitado, revelando assim que os efeitos da escravidão não foram efetivamente superados pela sociedade brasileira. No entanto, o livro é ainda sobre a força da solidariedade que une a comunidade quilombola de Água Negra em defesa de seus direitos à terra, e tem como mote a sororidade que une as duas irmãs.