200 livros: O Brasil no Teatro (séculos XIX e XX)

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Para pensar as manifestações teatrais no Brasil e suas origens, é preciso primeiro pensar sobre o que compreendemos como teatro brasileiro: se incluímos os espetáculos amadores e isolados, de fim religioso ou comemorativo, como por exemplo os da Companhia de Jesus no séc. XVI, ou se abarcamos apenas e a partir daquele teatro estável, com textos, autore/as, atrizes, atores, equipes e palcos brasileiros, e uma certa continuidade estética de projeto de representar histórias do país; neste caso, o teatro brasileiro só terá começado no pós-Independência, na terceira década do séc. XIX (FARIA, 2012). É, portanto, sem desconsiderar esta discussão, que este post toma como ponto de partida de seu recorte principalmente os textos deste segundo momento até o século subsequente, a fim de divulgar como algumas dramaturgas e dramaturgos brasileiros pensaram a (des)construção do país em seus textos. Assim, considera-se aqui o teatro enquanto texto encenado e/ou publicado no suporte do livro.     

Martins Pena, patrono da cadeira n. 29 da ABL, desponta nos anos 1830 inaugurando a comédia de costumes no país com elementos da cultura nacional e tipos da sociedade brasileira. A comédia O juiz de paz da roça (1838), sua peça de estreia, permite notar com humor as características da gente da roça do Brasil oitocentista e da vida cotidiana do corrupto juiz de paz no local. Mais tarde, no mesmo gênero teatral e ironizando as instituições políticas brasileiras, Como se fazia um deputado (1882), de França Júnior, retrata os debates político-partidários do interior da Província do Rio de Janeiro no final do século XIX e expõe o revezamento oligárquico nos processos eleitorais permeados por fraudes e aliciamentos dos eleitores. 

Destaca-se também a produção de duas mulheres de teatro neste século: Maria Ribeiro (1829-1880) e Josefina Álvares de Azevedo (1851-1913). A primeira foi uma tradutora e dramaturga de mais de 20 peças autorais, das quais somente 4 se preservaram após o incêndio no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro. Tendo sido a primeira mulher a dedicar-se totalmente à dramaturgia e a ter uma peça autoral encenada no país, Ribeiro também contribuiu para o debate abolicionista com o seu drama Cancros sociais (1866), denunciando a escravidão como a grande doença do país. Josefina, por sua vez, proprietária e redatora do jornal A Família – veículo relevante para a divulgação de ideias feministas no Brasil -, estreou com a peça O voto feminino (1890), que discutia a polêmica sobre o sufrágio feminino, enfatizando a questão pela perspectiva das próprias mulheres. A peça mantém sua atualidade hoje, sendo a baixa participação das mulheres na vida pública e política ainda uma problemática emergente, alvo de medidas governamentais.

No começo do século XX, o teatro brasileiro assumiu um caráter majoritariamente comercial, de modo que pouco importava o texto da peça em cartaz, desde que o elenco fosse célebre. Mesmo o modernismo dos anos 1920 não fez grandes contribuições para a dramaturgia do país. E ainda que Oswald de Andrade tenha escrito o seu Rei da Vela em 1937, o texto também não encontrou terreno fértil para ganhar uma montagem.

Foi só no começo dos 1940, ou simbolicamente a partir da estreia de Vestido de Noiva (1943), de Nelson Rodrigues, dirigida por Zbigniew Ziembinski, que a dramaturgia moderna começou a ganhar forma no Brasil, coincidindo com o surgimento de importantes grupos e companhias como o Teatro Brasileiro de Comédia, o Grupo de Teatro Experimental, o Teatro Experimental do Negro, além de, nos anos 1950, o Teatro Oficina – que em 1967 finalmente faria sua encenação antológica de Rei da Vela de Oswald -, e o Teatro Arena.

Augusto Boal, que esteve à frente deste último, acreditava que todo teatro era necessariamente político (BOAL, 1991). E, de fato, essa pareceu ser a tônica que movia os autores e os grupos nessas décadas. Foi o próprio Arena que encenou pela primeira vez Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, em 1958, introduzindo a temática da luta de classes, com destaque para a luta do operariado.

 Em 1960, o Teatro Brasileiro de Comédia montaria, também pela primeira vez, O pagador de promessas, de Dias Gomes, levando aos palcos o drama sertanejo de Zé-do-Burro e de uma Salvador em processo de modernização. Mas, mesmo antes disso, no Recife de 1955, o público já conhecia a proposta de Ariano Suassuna de articular as culturas popular e erudita com o seu Auto da Compadecida.

Apesar disso, as novas temáticas dos grupos e dos autores nem sempre coincidiam com o gosto do público. O próprio Nelson Rodrigues chegaria a ser vaiado e acusado das mais diversas apologias por conta de seus textos polêmicos. Em O Beijo no Asfalto (1960), o autor chega a tocar no assunto ao retratar o escândalo cínico gerado por um beijo entre dois homens. Vários grupos, como o Oficina de Zé Celso, passaram anos combatendo o conservadorismo brasileiro. Mesmo conservadorismo que culminou, enfim, nas censuras pela ditadura militar que vitimou em alto grau o teatro do país, proibindo toda a obra de autores como Plínio Marcos, que manteve íntegros seus textos sobre figuras marginais, como a peça Navalha na carne (1967), protagonizada por uma prostituta, um cafetão e um homossexual.

Portanto, observar o Brasil pelo prisma do teatro é ver de perto as questões emergentes do presente de cada época, suas tensões políticas e sociais, e as permanências históricas. 

O juiz de paz da roça (1838)

De Martins Pena


Pena, Luis Carlos Martins. O juiz de paz da roça: comedia em um ato. Rio de Janeiro: Livraria de Cruz Coutinho. 1871.

Ediçãodisponível na BBM: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4054

Luís Carlos Martins Pena (1815-1848) nasceu em 5 de novembro de 1815 na cidade do Rio de Janeiro, onde viveu e fez sua fama como teatrólogo, ficando para a história como o fundador da comédia de costumes brasileira. Atuou como folhetinista em crítica teatral no Jornal do Comércio entre 1846 e 1847. O autor, que faleceu com apenas 33 anos, escreveu cerca de 30 peças de 1838 a 1846, cujo caráter cômico teve boa recepção na segunda metade do século XIX. Seus personagens foram marcadamente tipos da sociedade brasileira, forjada em um retrato realista, com a presença da gente da roça e do povo comum das cidades (funcionários, malandros, juízes, matutos, estrangeiros, falsos intelectuais, etc.).

Peça de estreia de Martins Pena e já considerada a peça-mater da comédia de costumes nacional, O juiz de paz da roça, comédia em um ato, foi representada pela primeira vez no Teatro de São Pedro, em 4 de outubro de 1838, pela companhia teatral de João Caetano. O enredo explora as características da gente da roça do Brasil oitocentista, tendo como centro uma família da roça e o cotidiano de um juiz de paz no local. O efeito cômico da peça vem da oposição entre a inocência das pessoas e a corrupção do juiz, que se vale de artimanhas e de seu poder de autoridade para lidar com os casos apresentados a ele. 

Cancros Sociais (1866)

De Maria Ribeiro

RIBEIRO, Maria. Cancros Sociais, drama original em 5 actos. Rio de Janeiro: Laemmert, 1866.

Maria Angélica Ribeiro (1829-1880) nasceu na Vila de Parati, atual Angra dos Reis. Destacou-se por ter sido não a primeira teatróloga brasileira, mas a primeira mulher a dedicar-se totalmente à função e a ter uma peça autoral encenada no país. Estreou no teatro em 1855 com a peça Guite ou a feiticeira dos desfiladeiros negros, momento em que sofria pela morte do filho, chegando a escrever então 23 peças, tendo sido encenadas 4 destas, algumas mais de uma vez, além de ter traduzido textos teatrais. Ribeiro teve boa recepção pelo público e pela crítica, inclusive de Machado de Assis. Explorou temas sociais emergentes, como a escravidão negra e a condição desigual da mulher. Sua obra original foi quase totalmente perdida no incêndio que ocorreu no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, restando apenas quatro: Cancros sociais (1866), Um dia na opulência (1877), A ressurreição do primo Basílio (1878) e Opinião pública (1879) .

Cancros sociais (1866), drama em 5 atos, foi encenada pela primeira vez em 1865 no consagrado Teatro Ginásio Dramático do Rio de Janeiro. A peça tem caráter abolicionista, evocando a exploração sexual de mulheres negras e mestiças pelo homem branco como fator desencadeador da intriga, e as consequências marcantes disso no seio familiar em um país escravista. A trama gira em torno de Marta, uma escrava “parda clara”, que se torna mãe de um menino branco, e tem seu filho tomado e vendido. Eugênio, o filho já adulto, cresceu como órfão desconhecendo sua ascendência africana. Para comemorar o aniversário de 15 anos de sua filha, ele decide comprar uma escrava para alforriá-la. Entretanto, ao perceber que comprara a própria mãe, ele teme a assumir como tal e acabar perdendo seu patrimônio. Por assumir então um comportamento suspeito, a esposa desconfia de que a escrava se tratava de uma antiga amante sua. Marta vê-se logo numa situação em que é obrigada a se afastar do filho para evitar a ruína de seu casamento.

Como se fazia um deputado (1882)

De França Júnior

França Júnior. Como se fazia um deputado. Comedia original de costumes em 3 actos. Musica de Carlos Cavalier. Rio de Janeiro: Gazetinha, 1882. 

Joaquim José da França Júnior (1838-1890), mais conhecido como França Júnior, foi jornalista e teatrólogo. Nasceu no Rio de Janeiro e foi bacharel em Letras pelo Colégio Pedro II, e em Direito pelo Largo São Francisco, em São Paulo. França Júnior foi promotor público no Rio de Janeiro, secretário do governo da Província da Bahia e também atuou como jornalista, com a publicação de folhetins em jornais como O País, O globo ilustrado e Correio Mercantil. Suas obras de teatro seguem uma tradição cômica, com peças com linguagem coloquial, frases curtas e ambiguidades. 

Em Como se fazia um deputado, peça de 1881, França Júnior ambienta seus personagens nos debates político-partidários no interior da Província do Rio de Janeiro do final do século XIX. Retrata os processos eleitorais permeados por fraudes e aliciamentos dos eleitores. Seguindo o perfil de suas obras teatrais, faz desta uma comédia de costumes, discutindo o revezamento dos partidos liberal e conservador no poder, um revezamento de grupos oligárquicos, reforçando ao máximo de que “nada mais conversador de que um liberal no poder”. Nas palavras do personagem Limoeiro: “é verdade, não o nego; mudei de ideias por altas conveniências sociais. Olhe, meu amigo, se o virar casaca fosse crime, as cadeias do Brasil seriam pequenas para conter os inúmeros criminosos, que por aí andam”. Uma peça sobre o Brasil de outrora que ecoa no Brasil de hoje.

O voto feminino (1890)

De Josefina Álvares de Azevedo

AZEVEDO, Josephina Alvares de. O voto feminino. In: ___. A mulher moderna: trabalhos de propaganda. Rio de Janeiro: Montenegro, 1891. p. 31-73.

Josefina Álvares de Azevedo, nascida em Itaboraí (RJ)* em 5 de maio de 1851, foi uma jornalista, escritora e precursora do feminismo brasileiro. Muda-se para São Paulo em 1877, onde funda, em 1888, o periódico A Família que discutia importantes questões sobre a educação feminina e sua participação na vida pública. O jornal, transferido para o Rio de Janeiro no ano seguinte, foi publicado até 1898. Em 1890, escreveu o artigo sufragista “O Direito ao Voto” e a comédia O Voto Femino, montada no Rio de Janeiro durante as discussões da Constituinte de 1891.

A peça O Voto Feminino (1890), depois de sua estreia ser um sucesso no palco do Teatro Recreio Dramático, um dos mais populares do Rio de Janeiro na época, veio a público também em notas de rodapé no jornal A Família e em forma de livro. Bem como o periódico, a intenção da comédia era dar voz às mulheres no cenário político brasileiro, sobretudo na questão do direito ao voto. No enredo, um casal que recebe a filha e o genro para um jantar esperam pelo resultado de uma consulta submetida a um Ministro a respeito da decretação da lei do voto feminino. No texto, as personagens argumentam que não era apenas o direito de votar que as mulheres buscam, mas também o direito de serem votadas; e ainda, se as mulheres tinham aptidão para adquirir títulos científicos, por que não o teriam para cargos públicos? E se poderiam obtê-los, também seria legítima a possibilidade de se candidatarem.

* Segundo Dicionário Bibliográfico Brasileiro de Augusto Blake, o qual também informa que Josefina seria irmã do escritor romântico Álvares de Azevedo por parte de pai. Há fontes que informam que a autora se declarava natural de Recife (PE) e prima de Azevedo. Também há incertezas sobre sua vida pessoal e o ano de sua morte. 

O Rei da Vela (1937)

De Oswald de Andrade

ANDRADE, Oswald de. O Rei da Vela in Teatro: A Morte – O Rei da Vela. São Paulo: José Olympio, 1937.

Oswald de Andrade (1890 – 1954) foi um romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta e jornalista paulista. Dedicado à atividade da escrita desde a juventude, Oswald é um dos principais expoentes do modernismo brasileiro e foi o articulador da Semana de Arte Moderna de 1922. São de sua autoria os principais manifestos dessa fase: “Manifesto da Poesia do Pau Brasil” (1924) e “Manifesto Antropófago” (1928), ambos, em suma, pregando a descolonização do Brasil por meio da arte e do levante popular. O seu primeiro livro de poesia, Pau Brasil (1925), foi considerado por Paulo Prado como o “primeiro esforço organizado para a libertação do verso brasileiro”. E, se já havia alguma veia revolucionária na sua obra até então, foi sob a influência da crise de 1929 que se dedicou mais intensamente à causa proletária, chegando a considerar no prefácio de Serafim Ponte Grande (1933) que mesmo o movimento do Pau Brasil havia sido parte de uma “operação imperialista”. É com tom semelhante que, em 1937, publicou a peça O Rei da Vela.

O Rei da Vela é uma peça em três atos que, por meio da paródia, expõe as relações subservientes e oportunistas da burguesia brasileira das décadas de 1920 e 1930. A peça conta a história do agiota burguês Abelardo I, que enriquece às custas de pobres enjaulados no seu escritório e que pretende ascender com um contrato matrimonial que estabelece com Heloísa de Lesbos, membra da aristocracia agrícola que, por seu lado, planeja salvar sua família da falência. A relação do casal acontece sob a influência de Mr. Jones, um americano com quem Abelardo I faz negócios e que acaba desenvolvendo intimidades com Heloísa. Apesar de publicada em 1937, a peça só viria a ser realizada nos palcos em 1967, com direção de Zé Celso, marcando a volta do Teatro Oficina.  Para o diretor, na época, “o humor grotesco, o sentido da paródia, o uso de formas feitas” faziam do texto uma colagem do Brasil de 30, que permanecia ainda mais violenta trinta anos depois, pois acrescia “a denúncia da permanência e da velhice destes mesmos e eternos personagens”. A peça foi remontada pela companhia em 2018.

Auto da Compadecida (1955)

De Ariano Suassuna

SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. 1ª Ed. Recife: Agir, 1955.

Ariano Suassuna (João Pessoa – PB, 1927) foi um dramaturgo, romancista, ensaísta, poeta, professor e advogado brasileiro. Nascido filho do então presidente do estado da Paraíba, João Suassuna, que foi assassinado no Rio de Janeiro por motivos políticos em decorrência do Golpe de 1930, Ariano declarou na sua posse na Academia Brasileira de Letras, em 1990, que passou a vida tentando protestar contra a morte do pai através do que fazia e escrevia. Foi idealizador do Movimento Armorial, iniciativa artística que pretendia criar uma arte erudita a partir de elementos da cultura popular do Nordeste brasileiro, sendo um contundente defensor da cultura da sua região. É autor de vasta obra, em que se destacam o Auto da Compadecida (1955) e O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta (1971).

Auto da Compadecida (1955) é uma peça teatral em forma de auto, em três atos, do gênero comédia dramática. O drama acontece na região do Nordeste, com elementos da tradição da literatura de cordel, da qual Suassuna pegou emprestado João Grilo, personagem folclórico tanto no Brasil quanto em Portugal, que é um pobre aproveitador que vive causando confusões. A peça tem ainda traços do barroco católico brasileiro e marcas orais na sua composição. Além disso, é apresentada pelo O Palhaço e é escrita em estilo pantomímico, o que ressalta o corpo e o gestual dos atores nas suas representações e criações de sentido, sendo dessa forma de fácil assimilação para o público. No enredo, João Grilo e seu amigo Chicó sobrevivem dando golpes em moradores do seu vilarejo, nas entidades religiosas e mesmo no temido cangaceiro Severino. No fim, todos eles prestam contas diante de Jesus, do Diabo e de Nossa Senhora. A primeira representação da peça aconteceu em 1956, em Recife (PE), com direção de Clênio Wanderley. Sua versão mais popular é a adaptação televisiva de 1999, dirigida por Guel Arraes.

Eles não usam black-tie (1958)

De Gianfrancesco Guarnieri

GUARNIERI, Gianfrancesco. Eles não usam black-tie. Civilização Brasileira, São Paulo, 1978*.

*Edição publicada em livro mais antiga encontrada desde a encenação da peça.  

Gianfrancesco Guarnieri (1934 – 2006) foi um ator, diretor, dramaturgo e poeta ítalo-brasileiro. Nascido em Milão, seus pais se mudaram para o Brasil apenas dois anos depois de seu nascimento. Muito próximo dos movimentos estudantis, Guarnieri começou sua jornada no teatro amador em São Paulo e criou, em conjunto com amigos, o Teatro Paulista do Estudante em 1955. Já no ano seguinte, a companhia criada juntou-se ao Teatro de Arena, que foi fundado por José Renato. Além da sua extensa e celebrada carreira como dramaturgo no teatro, Guarnieri também foi bem-sucedido na televisão e no cinema, sendo nos anos 1970 e 1980 um dos atores mais famosos do Brasil, atuando em várias novelas populares, como Mulheres de Areia (1973-74) e Cambalacho (1986). 

Eles não usam black-tie foi a peça de estreia de Guarnieri, encenada pela primeira vez em 1958 pelo Teatro de Arena. Dirigida por José Renato, o elenco contou à época com muitos dos grandes talentos que começavam a despontar no teatro brasileiro. A história da peça passa-se em uma favela dos anos 1950 e a narrativa tem como maior foco a greve de operários, adotada como pano de fundo para reflexões sobre a fragilidade e os conflitos humanos. A peça apresenta muitos aspectos da realidade brasileira de então, que ainda perduram, como o conflito de classes e a introdução de uma temática urbana ao teatro brasileiro, assim como os espaços de participação política e o autoritarismo dentro das fábricas. Não sendo apenas uma peça que marcou uma era no teatro brasileiro, Eles não usam Black-tie retrata a realidade de um momento histórico brasileiro, que depois de alguns anos, durante a ditadura militar, se mostraria cada vez mais intenso. 

O Beijo no asfalto (1960)

De Nelson Rodrigues

RODRIGUES, Nelson. O Beijo no asfalto. J Ozon Editor, Rio de Janeiro, 1960.

Nelson Rodrigues, nascido em Recife (PE) em 1912, foi um escritor, jornalista, teatrólogo e cronista de costumes e de futebol brasileiro, considerado muitas vezes como o mais influente dramaturgo do Brasil. Mudou-se em 1916 para o Rio de Janeiro, onde, quando mais velho, trabalhou para o jornal de seu pai A Manhã. Sua primeira peça, A mulher sem pecado (1941), que já trazia uma evidente carga psicológica, lhe conferiu os primeiros sinais de prestígio dentro do cenário teatral. Mas é Vestido de noiva (1943), com sua ação dividida entre os planos da memória, da alucinação e da realidade, que consagra o autor como um dos expoentes do teatro moderno no país. Ao longo de quase quarenta anos, Nelson Rodrigues escreveu 17 peças que viriam a ser divididas pela crítica em “peças psicológicas”, “peças míticas” e “tragédias cariocas”. 

O Beijo no asfalto (1960) é uma das peças de Nelson Rodrigues a integrar o conjunto das “tragédias cariocas”. Escrita a pedido de Fernanda Montenegro, foi encenada pela primeira vez pelo então grupo da atriz, o Teatro dos Sete, em 1961, com direção de Fernando Torres. Na peça, o protagonista Arandir, um bom cidadão casado e honesto, cede a um rapaz desconhecido que acabara de ser atropelado o seu último desejo: um beijo. A cena do beijo repercute na mídia e desencadeia uma série de eventos em efeito dominó, levando à criminalização do ato e até mesmo provocar a família e amigos próximos de Arandir a extravasarem seus desejos, ódios e ressentimentos, chegando a mentir deliberadamente sobre o homem, até que a situação atinge seu ápice em um evento trágico. Em O Beijo no asfalto, Nelson Rodrigues trabalha com maestria a articulação, já nos 1960, entre mídia e justiça brasileiras na criação arbitrária de narrativas e sua adesão popular.

O Pagador de Promessas (1960)

De Dias Gomes

GOMES, Dias. O Pagador de Promessas. Editora Agir, Rio de Janeiro, 1961.

Alfredo de Freitas Dias Gomes, mais conhecido como Dias Gomes, nasceu em Salvador (BA) em 1922. Foi romancista, contista, dramaturgo e roteirista de cinema, rádio e televisão, além de membro da Academia Brasileira de Letras. Escreveu sua primeira peça, A Comédia dos Moralistas (1937), aos quinze anos, e foi premiado pelo Serviço Nacional do Teatro (SNT). Nos anos 1940 começa a trabalhar com teatro profissional e depois com rádio, mas seu vínculo com o movimento comunista lhe faz ser perseguido e o autor passa a trabalhar como anônimo. O seu retorno se dá em 1960, com a primeira encenação da peça O Pagador de Promessas, publicada em livro no ano subsequente. Sua adaptação cinematográfica de 1962, dirigida e roteirizada por Anselmo Duarte, recebeu a Palma de Ouro do Festival de Cannes, sendo ainda o único filme brasileiro a ser galardoado com tal premiação.

O drama encena a vida de Zé do Burro, um sertanejo que mora com sua esposa e burro no interior da Bahia. No trabalho diário da fazenda, o burro de Zé do Burro acaba se machucando. Por não haver igrejas nas cercanias de sua propriedade, ele faz uma promessa no terreiro de candomblé local à Iansã, de que além de dividir suas terras entre os necessitados, ele também carregaria uma cruz de madeira “tão pesada quanto aquela que Jesus carregou”, até a Igreja de Santa Bárbara de Salvador, depositando-a em frente ao altar da santa. Acompanhado pela esposa, Rosa, Zé do Burro começa sua jornada. Chegando em frente às escadarias da igreja de Santa Bárbara, o padre, ao perceber os laivos de sincretismo na fala do romeiro, impede que ele cumpra plenamente sua promessa. A peça aborda  temas centrais para se compreender o Brasil, tais como a necessidade da reforma agrária e o sensacionalismo da mídia nacional, bem como a questão do preconceito com o sincretismo religioso, que embora seja tão característico da cultura brasileira, está sempre em processo de opressão pela força dogmática do catolicismo.

Navalha na Carne (1968)

De Plínio Marcos

MARCOS, Plínio. A Navalha na Carne. Editora Senzala, São Paulo, 1968.*

*A peça foi proibida em 1968. Como forma alternativa de divulgação, o elenco original organizou uma encenação fotográfica que, junto com o texto, foi transformada na sua primeira edição em livro pela editora Senzala.

Plínio Marcos, nascido em Santos (SP) em 1935, foi escritor, ator, dramaturgo, diretor e jornalista. De família modesta, envolveu-se com diferentes ocupações até ter contato com o mundo do circo aos 17 anos, e mais tarde, aos 21, por influência da escritora e jornalista Pagu (Patrícia Galvão), com o teatro amador de Santos, dirigindo a montagem de seu primeiro texto, Barrela, em 1959. Em 1960, Plínio foi a São Paulo onde trabalhou como camelô, depois como ator em diferentes trabalhos, e “faz-tudo” em companhias de teatro como o Arena e a companhia de Cacilda Becker, grupos estes que durante o regime militar se mobilizaram contra a censura do seu segundo texto, A Navalha na Carne, que pôde enfim ser montado em 1967. De caráter insubmisso, durante toda a ditadura Plínio se recusou a negociar com a censura e teve toda a sua obra proibida.

A Navalha na Carne chegou a ser montada duas vezes em 1967, uma em São Paulo, com direção de Jairo Arco e Flexa, e outra, que repercutiu ainda mais, no Rio de Janeiro, com direção de Fauzi Arap. Em seguida, voltou a ser censurada, podendo ser reencenada apenas 13 anos depois. A peça se passa em um quarto de bordel onde a prostituta Neusa Sueli, o cafetão Vado e o empregado homossexual do estabelecimento Veludo, encarnam a existência desumanizada dos marginalizados em um retrato naturalista do submundo brasileiro. Embora pertençam ao mesmo estrato social, as três personagens se dedicam a uma contínua disputa de domínio do outro, ora cada um por si, ora em provisórias alianças de dois contra um, recorrendo à força física, à chantagens por autopiedade, à sedução e humilhação. A união das três personagens contra o regime que as oprime nunca é cogitada. 

Curadoria

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