Na marginália da Paulicéia: o personagem-autor Juó Bananère

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por Ingrid Benicio

Da imagem à fala reconhecida

Nascido nos periódicos e por eles consagrado, Juó Bananère vem ao mundo através da caricatura de Voltolino, pseudônimo do desenhista Lemmo Lemmi (1884-1926), na décima edição da revista O Pirralho, publicada em 1909. Mas será somente em 1919, quando Alexandre Ribeiro Marcondes Machado se apropria da figura já conhecida pelo público, que o personagem fincará seu vocabulário macarrônico no imaginário paulistano. 

Caricatura de Juó Bananère por Voltolino

Alexandre, contrastando com seu Bananère poeta, barbiere e giurnaliste foi, na verdade, um engenheiro brasileiro nascido na cidade de Pindamonhangaba, em 1892. Membro discreto da São Paulo dos anos 20, ele ainda é considerado pela crítica como uma figura enigmática, que permite entrever pouco da vida e, principalmente, dos posicionamentos por trás da irreverente voz ítalo-brasileira de Juó.

Todavia, apesar das carências em torno da biografia de Alexandre, muito se encontra quando buscamos as produções assinadas com o pseudônimo Juó Bananère.  Observando os diversos eixos da metrópole em formação, o barbeiro imigrante vai satirizar políticos, autores consagrados, discursos, hábitos e todo o cotidiano prosaico dos marginalizados em uma cidade que só fazia crescer.

Na città di Zan Baolo: cenários e escritos

Escrevendo até o ano de sua morte, em 1933, Bananère vai delinear, seja em forma de artigos, crônicas, peças de teatro ou poesia, as trivialidades e grandiosidades de São Paulo. Ele nos dá, assim, um vislumbre do amadurecimento progressivo da cidade e, ainda, de um ficcionista singular da produção brasileira, que transitou entre inúmeros jornais, revistas e livros, mas que, equivocadamente, segue ocupando um lugar menor no panorama literário brasileiro.

Uma de suas mais notórias e memoráveis composições é La Divina Increnca, livro publicado por Juó em 1915. Nesse conjunto de 23 poemas, conhecemos, uma vez mais, o Bananère imigrante, observador e parte do cenário paulistano a ser parodiado. Buscando sempre desestabilizar seu leitor ao reajustar o lugar das referências sacralizadas e escrevendo sob um registro linguístico diferente do popularizado pela elite da época, ele rebaixará nomes ilustres e ajustará a ótica de suas poesias para as ruas de São Paulo, mostrando sua prosódia, hábitos e conflitos.

Folha de rosto do livro La Divina Increnca (edição de 1924)Acervo BBM Digital

Tal ideia fica exposta no título da obra, que realoca um dos maiores livros da literatura italiana – A Divina Comédia – de Dante Alighieri, no cotidiano caótico da metrópole e na disposição de alguns de seus poemas-sátiras. Como exemplo, temos o “Cirgolo viziozo”, dedicado “prú Maxado di Assizi”, um imortal da literatura brasileira, “Uvi strella”, que zomba da pompa parnasiana do “Ouvir estrelas”, de Olavo Bilac:

Che scuita strella. né meia strella!

Vucê stá maluco! e o io ti diró intanto,

Chi p’ra iscuitalas moltas veiz livanto,

I vô dá una spiada na gianella.


I passo as notte acunversáno c’oella,

Inguanto che as otra lá d’un canto

Stó mi spiano. I o sol come un briglianto

Naçe. Oglio p ru céu : — Cadê strella!? (…)

(Uvi strella

e, ainda “O Gorvo“, a paródia feita ao “O corvo”, de Edgar Allan Poe

(…)

Un brutto gorvo chi entrô,

I mesimo na gabeza mi assentô!

I disposa di pensá un pochigno

Mi dissi di vagarigno:

.

— Come vá, so giurnaliste?

Vucê apparece chi stá triste?!

— Non signore, sô dottore…

Io sto c un medo do signore!

.

(…)

Vendosi adiscobrido, o rapaize,

Abatê as aza, avuô, i disse: nunga maise!

(O Gorvo)

Passeando por bairros como Brás, Bom-Retiro e Belenzinho, Bananère faz uso da estrutura da língua italiana para registrar a fala paulista, criando seu próprio idioma, que por vezes é paulista-caipira ou ítalo-paulista-caipira, mas sempre destoa daquele usado no ambiente acadêmico. Exibindo nossos tão caros diminutivos em seus “Versignos”, Bananère aponta a frequente “cortesia” brasileira em momentos de crise, nossa gramática já transformada pelo uso popular que dá preferência ao “Mi dá un cigarro!?” em vez de “dê-me um cigarro”, como será retomado pelo poema de Oswald de Andrade e revela, por fim, os dias lírico-prosaicos de uma São Paulo tangível, que é cantada, celebrada e criticada através das redondilhas populares do giurnaliste.

Técnica (notam-se no excerto as rimas, oitavas, dísticos e refrão estruturadas pelo autor),  humor, crítica e cotidiano no poema “Disgamba Valua’”, do livro Galabáro  – Acervo BBM Digital

Essa postura crítica combinada à sátira ficará ainda mais evidente em Galabáro – libro di saniamento suciali, publicado em parceria com Antônio Paes, pseudônimo de Moacir Piza,  em 1917. Buscando expor a repreensível postura de aproximação do cônego e deputado federal Valois de Castro em relação aos alemães durante a Primeira Guerra Mundial, ambos autores espelham a realidade econômica e cultural da cidade, sua violência, seus preconceitos e, claro, suas linguagens. 

Fazendo uso de registros e gêneros múltiplos, Bananère irá demonstrar, na primeira parte do livro, o conhecimento da literatura canônica, de suas canções, ritmos e estilos, partindo assim do elevado, privilegiado pelo público, para centralizar e decifrar o corriqueiro, mas não menos rico, divertido e contraditório dia a dia de São Paulo. Anotando expressões habituais como “Juó Ninguê” e “Non metta maise u bideglio”, denotando formas ainda usadas como “Ia ino” ou exprimindo a reelaboração dos plurais, que até hoje caracteriza a fala paulista como em “era uns troxa!”, o autor nos transporta à realidade linguística e literária da marginália de uma cidade que está em vias de se transformar no palco da Semana de Arte Moderna.

Galabáro – Acervo BBM Digital

Logo no texto de abertura do livro (ver imagem acima), verificamos já as marcas dessa observação atenta e, em particular, de heterogeneidade linguística explorada por Bananère ao longo do seu “Calabar”. 

Tamanha diversidade fica exposta através do registro da prosódia ítalo-caipira ao acrescentar “a” ou “in” antes de algumas palavras (como em “alembró”, “arifirido”, “adondi”, “adicrarasse”, “inzima” e “inpubricó”);  da adaptação de um falante de italiano aos “ãos” tão brasileiros (“Zan”, “purçó”, “Intó”, “allemó”,) e da sinalização de falas que ainda podem ser ouvidas no interior e nos centros de São Paulo (“dispoza” no lugar de depois, a ausência de concordância em “era uns”, “as coisa”, “aus beggio e aus abbraccio”, a gíria paulistana “morra”/moral, etc.). A partir delas, distinguimos a essência do popular e a fluidez de sua produção por vias que excedem o academicismo rígido, mas que sugerem, de modo furtivo, grande estudo e construção estética por parte do artista.

João Ninguém ou “Imortalle”: (a falta de) um lugar para Juó na arte brasileira

Juó apresenta uma produção diferenciada das tendências parnasianas e simbolistas cultuadas no início do século XX. A uma linguagem nova, híbrida, crítica e popular que, apesar dos temas aparentemente banais, sinaliza um grande labor estilístico para com a palavra, associam-se o estilo humorístico e a sátira que o eternizaram. Por conta da sua rebeldia e jocosidade, não é de se surpreender que o escritor costume ser recordado, então, como um dos artistas menores que ensejam o espírito renovador do movimento de 22. 

Contudo, quando observada de perto, sua extensa obra propõe aos leitores e críticos uma reconfiguração do seu estatuto literário ou da ausência dele. Alguns estudos contemporâneos sobre o autor apontam o caráter anárquico e ambíguo de Bananère (CAIUYBI, 2010, p.9; SALIBA, 1997, p.117) ressaltando que, se num primeiro momento ele se parece se assemelhar à libertação formal idealizada pelos jovens modernistas, quando relidos de modo mais detido, seus textos terminam por não aderir completamente aos manifestos e propostas dessa e das gerações que a seguiram.

Tematizando os infortúnios daqueles que foram postos de lado pela alta classe e exigindo um verdadeiro jogo mental e linguístico com seu leitor, que precisa fundir idiomas, referências, gêneros, realidades e versões de uma mesma cidade, Juó Bananère se coloca diante de nós como um autor difuso, dúbio, versátil e, no entanto, único.

Provocação de Bananère aos autores canônicos em La Divina Increnca (edição de 1915)Acervo BBM Digital

Sua heterogeneidade e irreverência lhe deram a liberdade de acolher diversas matrizes sem se filiar a nenhuma delas. Sua comicidade, que o aproxima da massa e que o colocou no lugar também de escritor marginalizado, é revestida da compenetração necessária a um autor que precisou equilibrar cânone e contemporaneidade, a fim de reorganizar a percepção e leitura do mundo de seus interlocutores. Seu olhar de imigrante, que pressupõe a racionalização formal de um engenheiro brasileiro, traz o retrato da coexistência de contrários, que se entrelaçam num todo conhecido, diverso e não menos problemático.

E uma vez que ele aparenta a autonomia de ser vários, de barbeiro a jornalista, e de ser reconhecível como o singular Juó Bananère, não seria o poeta e sua produção exímios reflexos da metrópole caótica, desigual, inédita e indefinida que foi e ainda é a nossa São Paulo?

Acolhendo novas formas, incorporando diversos registros, comentando o ontem e o agora, o elevado e o baixo, personagem e autor nos levam a conhecer uma nova maneira de produzir literatura, que parece dissonante, mas está profundamente conectada ao modo de ser paulistano. Ambos buscam serem livres, pluriformes, arcaicos, modernos, estrangeiros, nacionais, independentes, mas partes de um todo. Criando, por fim, uma sinfonia de discursos que expressa tanto a integração de opostos, quanto a segregação, artística e social, impostas pela Paulicéia desvairada.

Referências

ANTUNES, Benedito. “Juó Bananére, um escritor íntalo-brasiliano”. Letras de hoje. Porto Alegre, v. 56, n. 1, p. 29-40, jan.-abr. 2021.

CAIUYBI, Alita Tortello. “U gaso du poeta, barbiere e giurnaliste Juó Bananère“. Estação Literária, vol. 5, p. 1-12, 2010.

SALIBA, Elias Thomé. “Juó Bananère, o raté do modernismo paulista?” In: Revista de História n. 137, p. 113-122, 1997.

SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metropole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

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Ingrid Benicio é graduanda em Letras pela FFLCH-USP e bolsista da BBM pelo Programa Unificado de Bolsas (PUB-2021-2022).

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