Teresa Margarida, a primeira romancista brasileira

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Por Gabrielle Gonçalves de Carvalho

“Leitor prudente, bem sei que dirás ser o melhor método não dar satisfações; mas tenho razão particular, que me obriga a dizer-te, que não culpes a confiança de que me revisto, para representar a figura dos doutos no teatro deste livro […].”

 

É com este aviso que se inicia Máximas de Virtude e Formosura ou As Aventuras de Diófanes, romance político, “feminista” e o primeiro da língua portuguesa escrito por uma mulher. Publicado em 1752 por Teresa Margarida Silva e Orta, sob o pseudônimo de Dorotéia Engrassia Tavareda Dalmira (um anagrama perfeito do seu próprio nome), o livro apresenta ideias que subvertiam os padrões absolutistas de Portugal do século XVIII num enredo cheio de imprevistos e reviravoltas.

Folha de rosto da edição de 1777

Filha de mãe brasileira e pai português, Teresa Margarida nasceu em São Paulo no ano de 1711. Porém, ainda muito jovem, muda-se para Portugal, onde mantém-se o resto de sua vida e onde também publica toda a sua obra, incluindo As Aventuras de Diófanes. É nesse momento então que se iniciam as discussões: até que ponto tal romance realmente pode ser considerado relevante para a cultura brasileira? Não apenas como o primeiro de autoria feminina em língua portuguesa, mas também como o defensor de ideais tão impopulares no momento de publicação, de que maneira ele diz respeito ao Brasil da época? Se nos atermos apenas à nacionalidade da escritora, é surpreendente pensar que o que seria o primeiro romance brasileiro carrega esse tipo de significação.

Em Portugal, a autora viveu uma vida que, assim como a sua história, foi cheia de aventuras: entrou para o convento por vontade do pai mas saiu de lá para casar-se com alguém de sua escolha – algo extremamente incomum para a época visto que a maioria dos casamentos eram arranjados. Depois da morte do pai e do marido, lutou pelo direito de acesso aos seus bens, chegando a dialogar por correspondência com figurões da época, como Marquês de Pombal, para não permitir que sua herança fosse parar nas mãos de qualquer homem da família. Além disso, foi presa sob a acusação de mentir à corte por defender o casamento de seu filho com uma nobre cuja família não aceitava a união.

“Nós não temos a profissão das ciências nem a obrigação de sermos sábias; mas também não fizemos voto de sermos ignorantes.” (As Aventuras de Diófanes, livro III, pag. 90)

 

De epopeia subversiva ao romance de valores

Todas essas atitudes demonstram no mínimo um questionamento, para não falar em não-aceitação, da condição submissa que era imposta às mulheres na época. Tal reflexão também pode ser vista em As Aventuras de Diófanes, no qual a autora narra as aventuras da família real de Tebas que, numa viagem para a cidade de Delfos, com o intuito de casar sua filha Hemirena com príncipe da cidade, Arnesto, tem sua embarcação atacada. Assim, rei, rainha e princesa são vendidos como escravos e obrigados a mudar de identidade para sobreviver e conseguir reencontrar novamente sua família.

A história foca principalmente a jornada de Hemirena, que muda sua identidade para Belino a fim de poder sobreviver: temos então um exemplo esquecido de donzela guerreira dentro da história literária. Enfrentando reviravoltas, perigos, lutas e paixões, por conta de seu disfarce, a personagem não é apenas a defesa da força e capacidade feminina, mas também uma crítica a um mundo estritamente masculino e hierárquico.

O desenrolar das histórias se dá num vai-e-vem de encontros e desencontros entre as personagens que, disfarçadas, não conseguem se reconhecer ou preferem não se identificar para manterem-se salvas – como é o caso de Hemirena/Belino, quando encontra sua mãe, Climinéia/Delmetra, numa caverna a caminho de Argos. Num intervalo de muitos anos de busca para a reunião de todos em suas condições iniciais de nobres – busca essa de que faz parte até mesmo o príncipe de Delfos, prometido de Hemirena -, eles conseguem se encontrar e o enredo termina com um final feliz.

Num romance didático e moralizante, típico do século XVIII, são nos diálogos que encontramos um discurso retórico que ilustra um pouco as opiniões da autora, fazendo jus ao primeiro título dado ao livro e apresentando aos leitores suas máximas de virtuosidade.

“São inumeráveis as heroínas que se tem visto tão inteligentes que umas têm parecido o milagre das artes e outras têm dado a entender que eles julgam ignorância o que são efeitos da modéstia.”  (As Aventuras de Diófanes, livro III, página 92)

 

Palavra como instrumento de defesa

 

São também nesses diálogos que Teresa Margarida defende suas ideias insubmissas: educação igualitária entre meninos e meninas; trabalho para mulheres, independente da classe social, numa crítica à ociosidade que lhes era imposta, principalmente às mulheres da corte; e ideais iluministas, que repercute o convívio da autora com seus defensores – entre eles seu irmão Matias Aires e o diplomata Alexandre Gusmão. O iluminismo representava nessa época um posicionamento contrário ao absolutismo praticado por Dom João V em Portugal.

Vale ressaltar que Teresa Margarida e sua obra, apesar de atípica, conseguiram destaque devido à condição social elevada da autora numa sociedade portuguesa altamente hierarquizada. Além disso, imagina-se que foi a passagem pelo convento que proporcionou seu contato com os estudos, pois naquele momento a carreira religiosa era praticamente o único meio das mulheres receberem algum tipo de instrução igual à recebida pelos homens. Não é à toa que a maior parte das poucas mulheres que escreviam e recebiam reconhecimento na época eram freiras.

Mesmo com esses privilégios e com um recebimento elogioso depois da publicação da primeira edição do livro –  a qual, apesar do pseudônimo, já se supunha que era de Teresa Margarida -, a sua condição feminina foi motivo para relativização da autoria de sua obra: a terceira edição teve, por exemplo, como autor Alexandre Gusmão. A questão é que estamos tratando aqui de uma sociedade que enclausurava suas mulheres com o respaldo da lei e as maltratavam de maneira totalmente impune. Logo, questionar a autoria de um livro por ter sido escrito por uma mulher apenas vem como consequência da noção inferiorizada que se tinha do sexo feminino.

É claro que entre os diálogos e as máximas defendidas ao longo da história é possível encontrar algumas noções que hoje em dia não dialogam com as que se acredita serem justas para uma sociedade igualitária e com liberdade para as mulheres. Mas o importante é tentar compreender o que foi o livro em sua época e o que ele significa para nós hoje, dentro de uma ideia de que toda obra precisa ter no mínimo duas leituras. A partir disso, reconhece-se que o feito de Teresa Margarida foi excepcional até mesmo na questão de gênero literário: naquela época era incomum que mulheres escrevessem em prosa, dedicando-se principalmente à poesia.

Assim, Teresa Margarida tomou a palavra e foi precursora. Na sua estréia teve um  momento de merecido reconhecimento que se estendeu até o século XIX. Depois disso, foi aos poucos sendo esquecida na história literária, mesmo com a reedição de sua obra no fim do século XX. A Academia Brasileira de Letras, apesar das discussões, a considera como a primeira romancista do país. Nesse sentido, pode-se dizer que, apesar de não ter vivido aqui, os questionamentos e reivindicações que traz em seu livro também se relacionavam muito com o Brasil do século XVIII e por isso, o romance não é totalmente alheio ao cenário nacional da época.

Mas, ainda com tal consideração, pouco se conhece ou se fala sobre sua figura, sua importância e também sobre seu papel como defensora do que chamamos de um pré-feminismo. Isso tudo nos leva a novas discussões, dessa vez acerca da situação feminina no universo das letras atualmente e, principalmente, acerca do reconhecimento de mulheres relevantes para a história literária que merecem ser lembradas. E por mais estranho que possa soar, é fato: Teresa Margarida foi primeira brasileira a escrever um romance.

“Não resplandece em todas a luz brilhante das ciências porque eles ocupam as aulas em que não teriam lugar se elas frequentassem, pois temos igualdade de almas e o mesmo direito aos conhecimentos necessários.”(As Aventuras de Diófanes, livro III, página 92)

 

Referências Bibliográficas

 

Araújo, Sofia de Melo. Aventuras de Diófanes de Teresa Margarida da Silva e Orta – Os ideias de Climenéia e Diófanes à luz dos tempos. Revista da Faculdade de Letras — Línguas e Literaturas, II Série, vol. XXIII, Porto, 2006 [2008], pp. 103-126.  http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/5640.pdf

Furquim, Tania Magali Ferreira. Aventuras Instrutivas: Teresa Margarida da Silva e Orta e o Romance Setecentista. Dissertação de Mestrado. Campinas
Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, Departamento de Teoria Literária, 2003 Disponível em 
http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270034/1/Furquim_TaniaMagaliFerreira_M.pdf 

Orta, Teresa Margarida da Silva e. Obra Reunida. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 1993.

Viralhele, Eva Loureiro . Fabricação de ideias e identidades na historiografia literária luso e brasileira: Começa a literatura brasileira com um romance, feminista e político escrito por uma mulher? VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiros de Ciências Sociais. Centro de Estudos Sociais, Faculdade de Economia, Universidade de Coimbra, 2004. Disponível em: https://www.ces.uc.pt/lab2004/pdfs/Eva_Loureiro_Vilarelhe.pdf

 

Gabrielle Gonçalves de Carvalho é graduanda em Letras (Postuguês/Italiano) pela FFLCH-USP.

Curadoria

One Comment

  1. Nesses tempos difíceis para o país, é necessário valorizar a divulgação de figuras importantes para a cultura brasileira, como foi Teresa Margarida, mas que são desconhecidas pela maioria de nós. Um belíssimo texto sobre mulheres e feminismo na literatura, escrito por uma mulher que está ocupando seu espaço no meio acadêmico! #leiamulheres

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