por Patricia Freire do Nascimento
No acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin está disponível parte do trabalho produzido por Júlia Lopes de Almeida, escritora de peso no meio literário e jornalístico brasileiro do fim do século XIX e início do XX. Infelizmente, nos dias atuais a autora se mostra pouco lembrada ou lida; contudo, aos poucos ela vem sendo retomada por estudos e paulatinamente volta a ser reconhecida por seu trabalho e relevância no período em que viveu. Tendo isso em vista, abaixo encontram-se compiladas as obras da autora disponíveis na BBM digital:
1889 – Memórias de Martha
O primeiro romance da autora foi escrito no formato de memórias contadas em uma narradora mulher, algo fora do padrão das publicações da época. A protagonista a que essas memórias se referem é Martha, menina órfã de pai que foi criada pela mãe num cortiço no Rio de Janeiro. A ambientação da melancólica história em meio ao cortiço – assim como na obra representante do naturalismo brasileiro, O Cortiço, publicado um ano depois por Aluísio Azevedo – traz à tona denúncias à pobreza e à miséria vividas naquele espaço, expondo as exorbitantes diferenças sociais vigentes no período.
É através dos estudos que Martha consegue deixar essa realidade para trás. Formada, a protagonista constrói carreira e a independência financeira de que dispõe a permite tomar decisões atípicas para mulheres dessa época. Esse aspecto da obra revela uma importante bandeira defendida por Júlia Lopes: a da educação como base da independência feminina em termos financeiros e, consequentemente, não submissão imposta pelos modelos patriarcais.
1892 – A Família Medeiros
Esse romance se passa no interior de São Paulo no contexto imediatamente anterior à abolição da escravatura. Importante frisar que esse momento de mudança da estrutura do país levou a recorrentes confrontos entre valores antigos e modernos. Na história houve, portanto, espaço para contraposições entre cidade e campo, progresso e atraso, trabalho escravo e trabalho livre.
A rica família Medeiros, pertencente à elite cafeicultora paulista, é o núcleo da narrativa. Eva, personagem sobrinha do Comendador Medeiros, chefe da família, vai morar com o tio e sua família após a morte do pai. Otávio, seu primo recém chegado da Europa, se apaixona por Eva, mas segredos obscuros marcam o passado da órfã.
É em meio a mistérios envolvendo as personagens e situações – além das violências do período histórico em que a narrativa se passa -, que a personagem de Eva ganha destaque. A partir da acentuação das situações representativas da dicotomia entre o discurso conservador e o discurso de modernização e em meio à abordagem crítica sobre as relações familiares e sobre valores sociais de forma mais ampla, a protagonista se destaca ao corresponder aos ideais libertários da própria autora, como sua rejeição ao sistema escravocrata e à submissão feminina.
1902 – A Falência
Considerada a obra-prima da autora, em A Falência são narrados de forma crítica acontecimentos acerca de uma família da alta sociedade carioca. A esposa e protagonista, Camila, é infiel ao marido, Francisco Theodoro, um rico homem do ramo cafeeiro. Ele, sem desconfiar de nada, segue expandindo seus negócios até que uma reviravolta leva a família, que até então era vista com ares de perfeita, a se redefinir em várias vertentes.
O exemplar disponível na BBM Digital é da primeira edição da obra e conta com uma dedicatória da escritora. Em outro texto deste blog sobre a autora encontra-se uma apresentação mais completa desse romance: Júlia Lopes de Almeida, uma ilustre mortal.
1903 – Ânsia Eterna
Essa publicação tem estilo diferente do que a escritora vinha apresentando até então. Trata-se de uma coletânea de contos com uma abordagem mais voltada à literatura fantástica.
1908 – A Intrusa
Argemiro, um rico advogado viúvo, contrata uma governanta sob a regra de não se conhecerem, pois havia feito a promessa de não se casar novamente após a morte da esposa. Contudo, aos poucos a jovem Alice, contratada para o cargo de cuidar da casa e da filha de Argemiro, passa a conquistar a todos, inclusive o advogado. A obra aborda questões como o apego a entes que já partiram e independência financeira feminina.
1910 – Eles e Elas
Os textos dessa coletânea foram publicados inicialmente no jornal O País, sob os títulos de Reflexões de uma esposa, Reflexões de um marido e Reflexões de uma viúva. São diálogos, monólogos, reflexões e narrações muito semelhantes a crônicas e giram em torno da temática do casamento e de gênero. Escritos em primeira pessoa, alterna-se a voz dos narradores entre feminina e masculina.
O exemplar que faz parte do acervo da BBM conta com autógrafo da autora.
1911 – Cruel Amor
Romance também publicado anteriormente, em 1908, em formato de folhetim. A história se passa no Rio de Janeiro, em Copacabana, em meio ao cotidiano de uma comunidade de pescadores. Tendo como pano de fundo a urbanização da cidade e a valorização imobiliária que varreu grande parte das moradias populares no início do século XX, a autora aborda temáticas como a vida das crianças pobres em situação vulnerável.
1913 – Correio da Roça
Trata-se de um romance epistolar, composto por uma série de cartas trocadas entre diversas personagens. O núcleo da história se dá sobre Maria, recém viúva, e suas jovens filhas mulheres, crescidas no meio urbano e educadas para viver nele. Com a morte do chefe de família, grande parte do patrimônio da família é perdido para credores e as mulheres são levadas a viver numa fazenda, um dos poucos bens que restou. A adaptação das mulheres à nova vida se mostra extremamente difícil, mas com ajuda de uma amiga que acaba de retornar da Europa, com quem Maria troca cartas, a visão sobre o próprio país e o ambiente em que as mulheres se encontram se modifica. O livro dá início a uma auto-proposta da autora para maior abordagem da natureza e do campo.
1914 – A Silveirinha
O romance se passa em Petrópolis, refúgio da elite carioca durante a quente temporada de verão do Rio de Janeiro. Em meio à ambientação da sociedade burguesa da época, caracterizada por hipocrisias e futilidades, a recém casada protagonista, Silveirinha, tenta converter seu marido ateu ao catolicismo. A narrativa abre espaço à crítica às hipocrisias sociais e religiosas que rondavam tal estrato social, gerando reação negativa da Igreja Católica à época contra Júlia Lopes.
1916 – A Árvore
Escrito em colaboração com o filho da autora, Afonso Lopes de Almeida, este livro segue a proposta iniciada por Júlia em Correio da Roça. Composto por contos, ensaios e poemas, o livro traz a importância das árvores como resguardo da natureza e da vida em geral.
1917- Era uma vez…
Em formato de conto de fadas, a história do livro em questão se direciona à princesa Edelbrides, menina que tinha todas suas vontades atendidas por todos, pois era órfã de mãe desde bebê. Um dia, durante um passeio, ela escuta três cegos conversando sobre seu comportamento egoísta. Inconformada com o julgamento dos cegos, ela os manda em missões impossíveis, sob pena de execução em caso de insucesso. Os relatos dos cegos ao retornarem de suas missões surpreendem a jovem princesa, trazendo à tona lições de moral.
1917 – Teatro – Quem não perdoa, Doidos de amor, Nos jardins de Saul
Volume que reúne três textos teatrais da autora: Quem não perdoa, encenado em 1917 no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, Doidos de amor e Nos jardins de Saul, peça de um ato com temática bíblica, sobre a busca de uma princesa por suas filha e de uma pastora por sua mãe.
1920 – Jornadas no meu país
Com ilustrações do filho caçula da autora, Albano Lopes de Almeida, o livro é um relato de uma longa viagem que a escritora fez ao sul do Brasil entre abril e agosto de 1918.
1922 – A isca
Composto por quatro novelas: A Isca, O Homem que Olha pra Dentro, Laço Azul e O Dedo do Velho. As quatro novelas contam com finais inesperados, decorrentes das escolhas e expectativas narradas. As duas primeiras novelas tem uma abordagem sobre as relações em meio à sociedade, os amores e as enganações. O Laço Azul, por sua vez, acompanha a história de um homem, Raul, que se apaixona por duas irmãs mas não tem conhecimento de que são gêmeas. Por fim, O Dedo do Velho traz um tom sobrenatural a uma história em que em paixões proibidas, vingança e assombrações são exploradas pela autora.
1923 – Oração a Santa Dorotea
Livro contendo a conferência proferida pela autora nas palestras promovidas pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Recorrendo à Santa Doroteia, popularmente tida como padroeira das flores e que intitula o discurso, Júlia Lopes defende a necessidade de um projeto de urbanização em que conste a integração entre o homem e a natureza através do cultivo de jardins. A obra evidencia uma abordagem recorrente da autora, destacando sua preocupação com a relação entre a sociedade e o meio ambiente e sua afinidade com questões ambientais.
1925 – Maternidade
Obra pacifista publicada no Jornal do Comércio entre 1924 e 1925. Nos textos são feitas reflexões centradas na temática da Primeira Guerra Mundial, articulando outros temas como por exemplo, as diferentes posições de homens e mulheres em relação ao conflito.
Patricia Freire do Nascimento é graduanda em Relações Internacionais pelo IRI-USP
Maravilhosa iniciativa de tornar público algumas das obras dessa escritora brasileira à frente de seu tempo.