The Two Deaths of Quincas Wateryell: um achado no acervo da BBM

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por Aline Kobori

A BBM possui um exemplar da edição estadunidense da novela de Jorge Amado A morte e a morte de Quincas Berro D’Água, traduzida como The Two Deaths of Quincas Wateryell e publicada em 1965 pela editora Alfred A. Knopf.

O livro The Two Deaths of Quincas Wateryell trata-se de uma raridade. O exemplar da BBM conta com uma dedicatória autógrafa da tradutora Barbara Shelby a Gilberto Freyre, datada de 1966, com a mensagem: “Para Gilberto Freyre, da ‘sua’ tradutora, com a melhor admiração. Barbara Shelby, São Paulo, 19/9/1966”. Tal peculiaridade posiciona o exemplar, junto a sua versão original em português, volume que foi impresso especialmente para Mindlin, como um objeto de estudo: o livro faz pensar sobre a internacionalização da literatura brasileira e as histórias contidas por trás deste processo.

Página de The Two Deaths of Quincas Wateryell com dedicatória de Barbara Shelby a Gilberto Freyre

O exemplar da Biblioteca Brasiliana

Jorge Amado. The Two Deaths of Quincas Wateryell. New York: Alfred A. Knopf, 1965. (Capa/Jaqueta)

A dedicatória da tradutora a Gilberto Freyre torna o exemplar de The Two Deaths of Quincas Wateryell presente na BBM uma obra rara. Além de tal marca, a edição de 1965 traz consigo alguns outros elementos. É um livro em bom estado, apenas com algumas marcas de uso, de capa dura, que possui estampa colorida, com padrões e tons vibrantes, e jaqueta com as principais informações: título, nome do autor, indicação de obras anteriores que popularizaram Amado no exterior, editora e ilustrações de Emil Antonucci (1929 – 2006), artista nova-iorquino que atuou amplamente na área editorial. A arte de Antonucci também é encontrada no interior do exemplar, com desenhos em pontilhismo entre alguns capítulos. No verso da jaqueta, ainda encontramos a seleção de dois comentários feitos por revistas estadunidenses com elogios à obra e à tradução. Também é notória a presença do ex-libris de José Mindlin na contracapa e de detalhes que revelam a época em que o exemplar circulava, como o valor sugerido de venda.

Jorge Amado. The Two Deaths of Quincas Wateryell. New York: Alfred A. Knopf, 1965. (Capa sem a jaqueta e contracapa)

Outro aspecto pertinente é a inclusão ou a exclusão de alguns elementos. Na dedicatória de Amado da versão estadunidense, encontramos somente “For LAÍS and RUI ANTUNES, in whose fraternal house in Pernambuco Quincas and his folk grew in the warmth of the friendship.” quando, no livro em português, há também homenagens para Zélia, sua esposa, e Carlos Pena Filho, poeta pernambucano morto em 1960. Entre os capítulos, há fragmentos de trechos do livro, na mesma fonte, porém em tamanho menor e caixa alta.

Jorge Amado. The Two Deaths of Quincas Wateryell. New York: Alfred A. Knopf, 1965. (Trecho do livro e detalhe de ilustração de Emil Antonucci)

Barbara Shelby no Brasil

A tradutora – Barbara Shelby Merello (1932 – 2014) – trabalhou para a Agência de Informação dos Estados Unidos (USIA) na área de intercâmbio cultural, o que possibilitou que viajasse a diversos países latino-americanos, como Brasil, Equador e Argentina. Em terras brasileiras, entrou em contato com diversos nomes e traduziu textos de Jorge Amado, Guimarães Rosa, Antonio Callado, Dom Helder Camara e Gilberto Freyre. Por Mother and Son (1967), tradução de Dona Sinhá e o Filho Padre (1964), foi finalista do National Book Award, um dos maiores prêmios literários dos Estados Unidos,  em 1968.

Barbara Shelby

Percebe-se, assim, que Barbara assumiu a missão de realizar e tentar traduzir marcas culturais singulares, tendo em vista o imaginário em torno de uma Bahia quase mística, para o público estadunidense. Logo no comentário de Virgilia Peterson ao The New York Times Book Review transcrito na sobrecapa, a crítica aponta que “It would be hard to find an English counterpart to ‘Candide’ in Voltaire’s time, and hard to find a writer in English today – at least since the death of James Thurber – with as gay an imagination and as fond a sense of the absurd as the Brazilian Jorge Amado.” (Seria difícil encontrar um homólogo inglês para “Cândido” na época de Voltaire, e difícil encontrar um escritor em inglês hoje – pelo menos desde a morte de James Thurber – com uma imaginação tão divertida e tão apaixonado pelo absurdo como o brasileiro Jorge Amado.).

Porém, durante a década de 1960, Barbara construiu uma íntima relação com o Brasil. Em entrevista para The Association for Diplomatic Studies and Training Foreign Affairs Oral History Project, realizada no ano 2000, a tradutora relata com preciosos detalhes sua passagem por Rio de Janeiro e São Paulo. O Brasil foi o primeiro país para o qual ela foi enviada e o Carnaval ganhou destaque em seu relato. A americana ressalta como sua passagem pela cidade foi divertida: desde morar em um tipo de construção proibido na época, casa com mais de quatro andares sem elevador, até os quatro dias regados a dança, lança perfume e elaboradas fantasias.

Após alguns anos, chegou em São Paulo. Embora à primeira vista a terra paulista,  o “motor do Brasil”, fosse mais industrial que o caloroso Rio de Janeiro, Barbara relata a efervescência cultural presente. Muitos artistas e imigrantes habitavam ou passavam pela Terra da Garoa, e sua primeira missão foi justamente ajudar, em meio à Guerra Fria, a participação estadunidense na Bienal de Arte de São Paulo, fundada por Cicillo Matarazzo, sobrinho de Francisco Matarazzo. Ainda, comenta sobre como a diplomacia estadunidense, na época, tinha recursos suficientes para trazer grandes atos internacionais, como o maestro húngaro Eugene Ormandy e a Orquestra de Filadélfia. Barbara, a partir de tais relatos, exalta a força cultural da cidade paulista.

No entanto, a passagem de Shelby pelo Brasil não rendeu somente elogios e memórias felizes. Questões como machismo e racismo não passaram despercebidas. Ela recorda o discurso contraditório de um Brasil “não tão racista”, mas que proibia a estadia do célebre musicista Louis Armstrong em um hotel por causa da cor de sua pele. Ainda, embora admire como povos de regiões tão distantes e distintas se unam como brasileiros, Barbara diz se incomodar com a postura exageradamente bem-humorada, tranquila.

O título e as escolhas de tradução

Assim, com uma imagem de Barbara Shelby mais estabelecida, torna-se mais tangível refletir sobre algumas de suas escolhas de tradução, uma vez que “tradutores são visíveis, admitam eles ou não, reconheçam-no os leitores ou não. O tradutor é uma presença em um texto que não pode ser ignorada… a marca visível de cada tradutor está presente no texto” (apud BASSNETT, 1994, p. 15). O título da obra, elemento essencial de captação da atenção do leitor, orientação do caminho de leitura e demonstração sintética do conteúdo (RIBEIRO; CÂMARA, 2020), já mobiliza interesse por alguns aspectos: a decisão de compactar “A morte e a morte” em “The two deaths” e, a mais peculiar, a tradução literal de “Berro D’Água”.

Quando essa edição americana foi lançada pela Alfred A. Knopf, em 1965, Barbara já estava no Brasil há alguns anos, mas ainda no início de seu trabalho como tradutora do português para o inglês. Valéria Cristiane Validório, em trabalho investigativo de tradutores de Jorge Amado, comenta Tent of Miracles (1971) e The Americas (1979), em relação a Tenda dos Milagres (1969) e Tieta do Agreste (1977), analisando as escolhas referentes aos marcadores culturais. Embora se trate de títulos posteriores, ainda é pertinente pensar na colocação de Validório:

E, se levarmos em consideração que lidamos com a questão cultural de modo direto, não apenas por se tratar de quatro traduções literárias, mas, principalmente, por lidarmos com a tradução de vocábulos que refletem o cunho regionalista, retratando uma porção cultural e geograficamente rica, variada e importante da cultura brasileira, perceberemos que o trabalho do tradutor torna-se ainda mais evidente, ao optar por soluções e determinar o modo como todo esse repertório cultural do universo de partida será traduzido na cultura de chegada, fator de suma importância para determinar como a cultura brasileira será recebida e apreendida na cultura receptora das traduções. (pg. 143)

Tornar “Berro D’Água” em “Wateryell”, assim, parece uma decisão importante para a compreensão de quem é Quincas, ou Joaquim, este personagem ilustre. Tal como no português, cria-se um nome próprio incomum, mas que já revela o tom bem-humorado e indica um aspecto essencial e marcante da narrativa.

Por outro lado, a escolha de evitar a repetição da palavra “morte”, a qual confere um certo apelo poético e desperta uma certa curiosidade no potencial leitor, e substituir por “two deaths” explicitou um aspecto relevante da obra: a dualidade de Quincas, ora Berro D’Água, ora Joaquim Soares da Cunha. Em trabalhos estadunidenses, isto é bem visível. Malcolm Silverman, professor e crítico literário, em 1978, publicou um artigo sobre a versão em inglês de Shelby de nome Duality in Jorge Amado’s “The Two Deaths of Quincas Wateryell”. No entanto, é em resenha de Richard Reichard, publicada na revista The North American Review em 1966, um ano após o lançamento, que tal duplicidade se estabelece na recepção. O texto, intitulado Two Brazils, em elogio à literatura brasileira, destaca como duas realidades distintas coexistem em um único Brasil, e isso não poderia ser mais “Brasil”: “The Two Deaths is as Brazilian as inflation, a coffee surplus, or the unending vain attempt to open the interior.” (The Two Deaths é tão brasileiro quanto a inflação, um excedente de café ou a vã tentativa sem fim de abrir o interior.).

Jorge Amado. A morte e a morte de Quincas Berro d’Água. Rio de Janeiro:
Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil, 1962. (Primeira edição em livro da novela)

Barbara Shelby Merello aparece como uma figura, embora pouco conhecida, notável por seu mergulho na cultura e na literatura brasileira. Esta cara participação na tradução de grandes autores, de fato, contribuiu para o movimento de exportação de nossos livros, criando uma recepção crítica e um imaginário acerca do Brasil no exterior. The Two Deaths of Quincas Wateryell, desta maneira, é uma das inúmeras disponíveis para consulta gratuita na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin e se estabelece como uma obra rara, que permite contar ao leitor diversas outras histórias.

Literatura brasileira em tradução na BBM

Este texto é resultado das pesquisas feitas para o projeto “Literatura brasileira em tradução na BBM”, que consiste no levantamento, estudo e difusão de informações sobre obras da literatura brasileira em tradução pertencentes ao acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. O recenseamento e a posterior seleção dos títulos permitirá conhecer: a extensão e a importância dos livros traduzidos em quatro domínios linguísticos: inglês, espanhol, francês e alemão; a recorrência, nesse conjunto, de obras de determinados períodos, autores e gêneros literários; o percurso dos livros até sua chegada e inclusão na coleção por meio do exame de marcas autógrafas e paratextos. O projeto é coordenado por Hélio de Seixas Guimarães.

Bibliografia

AMADO, Jorge. The two deaths of Quincas Wateryell [A morte e a morte de Quincas Berro D’Água]. Tradução de Barbara Shelby. Nova Iorque: Alfred A. Knopf, 1965.

MERELLO, Barbara Shelby. Interview with Barbara Shelby Merello. Entrevista concedida a Lewis Hoffacker. The Foreign Affairs Oral History Collection of the Association for Diplomatic Studies and Training, 2000.

REICHARD, Richard. Two Brazils. In: The North American Review. Cedar Falls: Universidade do Norte de Iowa, 1966. Vol. 251, No. 1 , pp. 36-37.

RIBEIRO, Catarina Borges de Oliveira; CAMARA, Tania Maria Nunes de Lima. Título… Eita escolha difícil! In: Simpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa, 7., 2019, Pernambuco.

SILVERMAN, Malcolm. Duality in Jorge Amado’s “The Two Deaths of Quincas Wateryell”. In: Studies in Short Fiction. Newberry: 1978. Vol. 15, Ed. 2.

VALIDÓRIO, Valéria Cristiane. Investigando o uso de marcadores culturais presentes em quatro obras amadeanas, traduzidas para o inglês. Tese (Doutorado em Estudos Linguísticos) – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista. São José do Rio Preto, p. 143. 2008.

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Aline Kobori é graduanda em Letras pela FFLCH-USP e bolsista do projeto “Literatura brasileira em tradução na BBM”, coordenado por Hélio de Seixas Guimarães (PUB-2022-2023).

Curadoria

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