Monique Le Moing, tradutora de Lima Barreto para o francês

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por Juliana Barbosa Manso

Lima Barreto nunca saiu do Brasil. Entretanto, suas obras puderam circular na França devido à escritora e pesquisadora Monique Le Moing, que tinha amizade com Guita e José Mindlin. Na BBM, podemos encontrar seis livros do autor que foram traduzidos por Le Moing para o idioma francês na década de 90.

Quem é Monique Le Moing ?

Tendo como base uma rara entrevista que a escritora concedeu ao jornalista Edir Meirelles, sabemos que Le Moing, de família tunisiana, estudou letras e morou no Brasil com sua família devido à profissão do marido, engenheiro agrônomo, que trabalhou para a empresa estatal SUDENE, em Recife. Durante dois anos, Le Moing fez amizade com nomes ímpares da literatura brasileira, tais como Ariano Suassuna e Gilberto Freyre. Após esse período, seu marido foi chamado novamente à Tunísia e, para não perder o contato com o Brasil, a escritora decidiu se aproximar da embaixada brasileira naquele país. Foi então que conheceu a diplomata Sonia Doyle, filha do advogado e bibliófilo Plínio Doyle. Devido a esse encontro, Sonia mencionou ao pai o grande interesse de Le Moing pelo Brasil. Plínio Doyle, então, se encarregou de enviar à escritora clássicos da literatura brasileira via correios. A amizade entre Le Moing e Doyle se estendeu, e ano após ano, durante quinze anos, a escritora visitava o Brasil integrando os “Sabadoyle”, salões literários realizados na casa do bibliófilo com a presença de importantes escritores brasileiros. Provavelmente, foi via contatos estabelecidos no “Sabadoyle” que Le Moing conheceu Guita e José Mindlin.

Após mudar-se com a família para Paris, Monique Le Moing se matriculou nas aulas de português oferecidas pela universidade Sorbonne e encontrou o professor, ensaísta e poeta Silviano Santiago, que lecionava literatura. A partir desse momento, motivada pelas aulas de Silviano Santiago, Le Moing se aproximou das obras de Lima Barreto ansiando conhecê-lo melhor por meio da tradução de suas obras.

Apesar de sua pesquisa de mestrado ter sido sobre Machado de Assis, Le Moing, na época, via a necessidade de traduzir Lima Barreto para o idioma francês devido à relação intensa do escritor carioca com os ideais revolucionários franceses. Nos anos 90, como a França festejava o bicentenário da Revolução Francesa, Le Moing acreditava ser um bom momento para inserir os livros de Lima Barreto na cultura francesa. Nessa época, suas traduções fizeram sucesso entre professores e intelectuais, mas não obteve o mesmo êxito com o grande público.

Os romances: editora l’Harmattan

Souvenirs d’un gratte papier

Em 1989, Monique Le Moing, em um trabalho em conjunto com Marie-Pierre Mazéas, publicou o livro Souvenirs d’un gratte papier, tradução do título em português Recordações do escrivão Isaías Caminha, por meio da editora L’Harmattan. O texto contou com o financiamento do Centro Nacional das Letras, instituição pública presente nos anos 70 e 80 com o intuito de estimular a edição, a divulgação, o interesse cultural e a tradução de manifestações literárias em território francês. As primeiras e as últimas vinte páginas da mesma edição, da qual há um exemplar na BBM, estão digitalizadas pela própria editora e podem ser consultadas gratuitamente neste link:  http://liseuse.harmattan.fr/2-7384-0515-0. O exemplar que pode ser consultado no acervo da BBM não possui marcas de uso.

Essa foi a primeira e única tradução que o livro recebeu para o idioma francês. A escolha de Le Moing para o título é bastante particular, visto que “gratte-papier”, em francês, é uma expressão pejorativa e irônica para designar um funcionário modesto de escritório que apenas escreve, sem ter muitos outros atributos.

Por falar em escolha de tradução, a edição dispõe de um glossário com a definição em francês de treze nomes ligados à cultura brasileira.

O volume de 1985 faz parte da coleção de Harmattan chamada L’autre Amérique. O livro possui uma outra edição publicada pela mesma editora e que pode ser comprada em diversos e-commerces europeus.

Sous la bannière étoilée de la Croix du Sud

O clássico Triste fim de Policarpo Quaresma também foi traduzido por Le Moing. Sob o título Sous la bannière étoilée de la Croix du Sud (Sob a bandeira estrelada do Cruzeiro do Sul), mais uma vez em colaboração com Marie-Pierre Mazéas, o livro foi publicado em 1992 já fazendo parte da coleção L’Autre Amérique, também financiado pelo Centro Nacional das Letras. A mesma edição presente na BBM também pode ser consultada no site da Harmattan: http://liseuse.harmattan.fr/2-7384-1166-5.

O exemplar que se encontra na BBM possui uma dedicatória escrita em Paris em 21 de março de 1992 pela própria Monique Le Moing, na qual diz “Les idéologies sont mortes… Vive l’idéal. Bien affectueusement.” (As ideologias estão mortas… Viva o ideal. Afetuosamente.), seguida da assinatura da autora.

O livro também possui um glossário com 21 entradas diferentes sobre a cultura brasileira, sobretudo para os nomes indígenas. Nota-se que as definições são sucintas, geralmente mencionando outro aspecto da própria cultura brasileira, pressupondo que o leitor já o conheça. Por exemplo, para Ubirajara existe apenas a definição “tribo tupi”. Isso sugere que Le Moing preconizava um público que possuísse conhecimento, ainda que básico, sobre a história do Brasil.

Vie et mort de Gonzaga de Sá

Outro romance traduzido por Le Moing foi Vie et mort de Gonzaga de Sá, tradução quase literal do título Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. A edição é de 1994 e possui as mesmas configurações dos dois livros já citados e também está disponível no site da Harmattan: http://liseuse.harmattan.fr/2-7384-2455-4

O exemplar da BBM também foi oferecido por Le Moing para José e Guita Mindlin em 20 de maio de 1994 com a seguinte dedicatória: “Avec beaucoup de retard… mais non moins d’amitié, enfin la troisième traduction du cher Lima Barreto ! Je vous l’envoie à [  ] deux, José et Guita, [  ] de toute mon affection.” (Com muito atraso… mas não menos amizade, enfim a terceira tradução do caro Lima Barreto! Eu a envio a [  ] dois, José e Guita, [ ] com todo meu afeto.)

Além disso, a tradução é dedicada à memória de Chico Barbosa, o historiador e jornalista brasileiro Francisco de Assis Barbosa, membro da Academia Brasileira de Letras. Chico Barbosa escreveu a biografia do autor carioca em seu livro A vida de Lima Barreto, publicado em 1952. O historiador morreu em 1991, no período em que Le Moing publicava suas traduções.

Os contos: coleção Pour une fontaine de feu

Uma década depois da primeira tradução, a autora publicou uma pequena coleção de três volumes chamada Pour une fontaine de feu (para uma fonte de fogo, em tradução livre), com a tradução de onze contos. Essa coleção contava com 130 exemplares, dos quais o número 38 faz parte do acervo da BBM. O exemplar de La Nouvelle Californie et trois autres contes possui uma dedicatória endereçada a José e Guita Mindlin,  “avec toute mon amitié” (com toda minha amizade), escrita em 10 de dezembro de 1999. Hoje, os livros dessa coleção não são mais comercializados. 

Em La nouvelle Californie et trois autres contes a autora apresenta quatro contos, em ordem Son excellence, Un spécialiste, La Nouvelle Californie e L’homme qui parlait javanais (Sua excelência; Um especialista; A Nova Califórnia e O Homem que sabia javanês).

Le Moing escolheu traduzir os títulos de maneira fiel ao texto em português, com exceção de L’homme qui parlait javanais. O conto O homem que sabia javanês, que veio a público pela primeira vez em 1911, ganhou sua primeira tradução para o francês na revista ELLE em 1950, com nome do tradutor não identificado, já com certo problema na escolha de seu título, L’homme qui savait javanais. Por outra perspectiva, Le Moing escolheu o verbo “falar” em vez de “saber” para sua tradução, o que caracterizaria uma possível interpretação diferente do texto por parte da autora.

Três coletâneas de contos de Lima Barreto publicadas em 1998

Outras traduções de Le Moing do mesmo conto foram publicadas anos depois sob o mesmo título na revista portuguesa Sigila, em 2010, e em uma outra edição do livro, agora com seis contos, publicada em 2012 pela Éditions Chandeigne.

Já no outro exemplar da coleção, Un Amer Tourment et trois autres contes, podemos encontrar os contos Lívia, Un Amer Tourment (Mágoa que rala), L’un et l’autre (Um e outro) e Adelia.

O título para o conto Mágoa que rala também possui particularidades. Traduzir “mágoa” para “tourment” pode configurar uma sutil mudança de sentido. Segundo o dicionário Priberam, “mágoa” é definida como “tristeza; desgosto; dor de alma; amargura”. Por outro lado, em francês,tourment” é definido pelo Larousse como “Vive douleur physique; Vive souffrance morale” (Vívida dor física; vívido sofrimento moral). Portanto, a palavra em português pertence ao campo semântico do ressentimento, enquanto no francês, vê-se o sofrimento. Nesse sentido, Le Moing apresenta no prefácio do volume o caráter pessimista do autor cuja obra debruça-se sobre a crueldade dos seres diante de seus similares. Assim, o que na língua do autor, o português brasileiro, pode ser entendido como um rancor proveniente de um descontentamento, em francês aparece como um sofrimento.

Completando a trilogia, o terceiro volume Le fils de Gabriela et deux autres contes reúne os textos Miss Edith et son oncle, Cló e Le fils de Gabriela.

Essa coleção presente na BBM possui colagens impressas em preto e branco com os títulos dos contos que nomeiam os volumes, mas, infelizmente, não há menção ao (à) autor(a) delas.                                                                                                                      

E a contribuição de Le Moing para a veiculação da literatura brasileira na França continuou na década seguinte. Após se dedicar às obras do autor carioca, a escritora se debruçou sobre a tradução de outros autores brasileiros de diferentes áreas, como ciência política e antropologia, e também escreveu a biografia de Pedro Nava sob o título A solidão povoada, de 1996. Hoje em dia, não há mais menção de novos livros de Le Moing e suas últimas publicações foram lançadas entre 2002 e 2008.

Por fim, fica o convite para que o leitor faça uma visita gratuita ao acervo da BBM e consulte os livros inéditos da coleção de tradução que conta um pouco da amizade entre Guita e José Mindlin com Monique Le Moing e sua importância para a internacionalização das obras de Lima Barreto.

Literatura brasileira em tradução na BBM

Este texto é resultado das pesquisas feitas para o projeto “Literatura brasileira em tradução na BBM”, que consiste no levantamento, estudo e difusão de informações sobre obras da literatura brasileira em tradução pertencentes ao acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. O recenseamento e a posterior seleção dos títulos permitirá conhecer: a extensão e a importância dos livros traduzidos em quatro domínios linguísticos: inglês, espanhol, francês e alemão; a recorrência, nesse conjunto, de obras de determinados períodos, autores e gêneros literários; o percurso dos livros até sua chegada e inclusão na coleção por meio do exame de marcas autógrafas e paratextos. O projeto é coordenado por Hélio de Seixas Guimarães.

Bibliografia e sites consultados

BARBOSA, Francisco de Assis. A Vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1952.

BARRETO, Lima. La Nouvelle Californie et trois autres contes. Tradução de MOING, Monique Le. Cherves : Rafael de Surtis, 1998.

BARRETO, Lima.  Un amer tourment: et trois autres contes. Tradução de MOING, Monique Le. Paris : Rafael de Surtis, 1998.

BARRETO, Lima. Le fils de Gabriela et deux autres contes. Tradução de MOING, Monique Le. Paris : Rafael de Surtis, 1998.

BARRETO, Lima. Vie et mort de Gonzaga de Sa. Tradução de MOING, Monique Le; MAZEAS, Marie-Pierre. Paris : Harmattan, 1994.

BARRETO, Lima. Sous la banniere etoile de la Croix du Sud. Tradução de MOING, Monique Le; MAZEAS, Marie-Pierre. Paris : Harmattan, 1992.

BARRETO, Lima. Souvenirs d’un gratte-papier. Tradução de MOING, Monique Le; MAZEAS, Marie-Pierre. Paris : Harmattan, 1984.

MEIRELLES, Edir. Entrevistando Monique Le Moing. EDIR MEIRELLES – escritor, 15 Maio 2012. Disponível em: https://edirmeirellesescritor.wordpress.com/entrvistas/. Acesso em: 14/12/2022

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Juliana Barbosa Manso  é graduanda em Letras pela FFLCH-USP e bolsista do projeto “Literatura brasileira em tradução na BBM”, coordenado por Hélio de Seixas Guimarães (PUB-2022-2023).

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