“O relógio de ouro”: Três versões de um conto de Machado de Assis

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por Ingrid Benicio

Dos jornais ao domínio público, a escrita de Machado de Assis passou por modificações premeditadas e imprevistas pelo autor ao longo dos anos. É o caso do conto “O relógio de ouro”, que circula em três edições substancialmente diferentes, proporcionando ao leitor interpretações dissonantes tanto da ficção quanto da figura do escritor.

“A arte de narrar se baseia na leitura equivocada dos sinais. (…) é a arte da percepção errada e da distorção”, diz o autor argentino Ricardo Piglia em seu Formas breves. E para atestar tal afirmação, quem melhor que os leitores e, principalmente, os personagens de Machado de Assis? 

Incontáveis vezes vimos e veremos os mais diferentes intérpretes saírem em defesa ou acusação do casal protagonista de Dom Casmurro e, se Bentinho o faz pela escrita, muitos outros o farão por mesmas ou diferentes vias. Da inquestionável traição feminina lida nas resenhas do livro no século XIX; passando pela focalização do ciúme masculino, defendida pela crítica estadunidense Helen Caldwell em 1960, à alternativa de uma provável homossexualidade de Bento Santiago comentada em nossos tempos, grande parte pelo público mais jovem, todos somos alvos das várias possibilidades, incertezas e interpretações sugeridas por este e pelos demais textos machadianos.

Deles, lembremos ainda da ironia, do humor, das referências subvertidas, dos capítulos curtos e, claro, dos narradores que expõem, comentam e criticam suas narrativas,  convocando o leitor a participar ativamente do processo de significação do texto literário. Por conseguinte, pensar no Bruxo do Cosme Velho na atualidade é logo associá-lo a alguns recursos estéticos, temas e personagens que o consagraram. 

Mas, no que diz respeito ao criador do defunto autor mais querido da literatura brasileira, somos novamente surpreendidos por seus aspectos menos conhecidos.

Figura 1 – Folha de rosto da primeira edição de Dom Casmurro
Acervo BBM Digital

Além de romancista e funcionário público, Machado de Assis foi contista, poeta, cronista, dramaturgo, crítico literário, tradutor e um dos membros fundadores da Academia Brasileira de Letras. Seus escritos, que começaram a ser veiculados na imprensa nos periódicos na década de 1850, quando ele tinha pouco menos que 16 anos, se estenderam até a sua morte, em 1908.

Autor de um corpus vastíssimo, que circulou nos mais diversos formatos, gêneros e momentos da história brasileira, Machado apresenta ainda inúmeras assinaturas e pseudônimos que reorganizam o processo de escrita e recepção de seus textos. Por conta dessa amplitude, tanto a produção quanto a figura do escritor podem apresentar nuances que trazem novos contextos e desalinham, mais uma vez, as certezas dos leitores.

E como de costume, várias dessas questões que rondam vida e obra do são encenadas e discutidas dentro da sua ficção. É o que vemos, por exemplo, no conto “O relógio de ouro”, parte do livro Histórias da meia-noite, publicado por Machado em 1873.

Um bruxo autor: as versões deixadas por Machado

Assim como as demais histórias que compõem a reunião, “O relógio de ouro” foi publicado originalmente no periódico Jornal das Famílias, entre abril e setembro também de 1873, assinado com o pseudônimo “Job”. Com a proximidade entre as datas da versão do folhetim e da publicação em formato de livro, feita em novembro daquele ano, o leitor moderno pode esperar, apesar da assinatura diferenciada, que os dois textos não apresentem diferenças expressivas em suas redações ou, seguindo um engano comum, supor que ambas são iguais. 

Todavia, ao tratarmos de um escritor que era também um atento editor de seus textos, tomamos conhecimento dos enlaces e divergências entre o Machado dos jornais, que poderia surgir para o público com os mais diferentes nomes e encaminhamentos narrativos; e o Machado dos livros, já reconhecível no passado e consagrado no presente.

Partindo da história em questão, temos, nas duas versões, praticamente a mesma sinopse. O conto tem um início quase fabular, focalizando no objeto que dá título ao texto. Logo nos parágrafos iniciais, descobrimos que o tal relógio de ouro foi encontrado por Luís Negreiros, protagonista da narrativa, nos aposentos que ele divide com a esposa Clarinha. Mas, como diz o narrador, uma vez que o objeto não “(…) era dele, nem podia ser de sua mulher”, ele se tornará um corpo estranho entre o casal, motivando crises e confrontos que se darão ao longo do conto. 

Quando questionada pelo marido a respeito da procedência do relógio, Clarinha nega qualquer relação com o objeto, despertando o ciúmes e a desconfiança de Luís que, em seu descontrole, se esquece também que fará aniversário no dia seguinte. Com associações precipitadas, lemos o julgamento da esposa por parte do protagonista e, em contrapartida, a contínua resiliência de Clarinha, que se mantém firme em suas negativas até mesmo quando o marido considera que o relógio possa ser um presente surpresa de aniversário providenciado por ela. No encaminhamento para a conclusão do conto, no qual o casal tem seu embate final, ocorre a revelação de Clarinha: ao ser ameaçada de morte por Luís, que suspeita de uma traição, ela conta que o relógio havia sido enviado por uma mulher ao marido e entrega a ele o bilhete que acompanhava o objeto. 

Figura 3 – Fac-símile da página final do conto no Jornal das Famílias. Nela, temos o bilhete de Zeferina, que confirma a procedência do presente deixado para o protagonista, e o encerramento do caso pelo narrador após a resolução do conflito –
Hemeroteca digital, Biblioteca Nacional

Enquanto no Jornal das Famílias contamos com um desfecho em que narrador busca demonstrar a pacificação do lar após a descoberta do marido; no conto de Histórias da meia-noite, os leitores são deixados num momento de suspensão, prontos para conjecturar e compreender ao seu modo as atitudes dos personagens ao longo da narrativa. 

Essa diferença na estrutura, como demonstraram as pesquisadoras Silvana Azevedo e Flávia Catita, se deve muito ao perfil do periódico em questão. Buscando contribuir na formação de seu público-alvo, em grande parte formado por mulheres, o Jornal das Famílias apresentava um programa editorial composto de artigos que “mais importarem ao país, à economia doméstica, à instrução moral e recreativa, à higiene, numa palavra, ao recreio e utilidade das famílias”. Por conseguinte, quando publicado no jornal, Machado se adapta ao suporte, realçando características que podem aproximar leitores e leitoras de seus personagens.

Como exemplo, nessa primeira versão do conto, além de uma conclusão aparentemente apaziguadora e de cunho moralizante, percebemos a ideia de um protagonista interessado nas “charadas nos almanaques ou nos jornais de moda”, informação retirada da primeira edição em livro e que o conecta com os leitores deste que é um periódico muito dedicado ao vestuário. Ademais, observam-se ainda adições e a divisão de muitos parágrafos, responsáveis por transformar o ritmo de leitura do texto e pelo ganho financeiro do autor, que recebia por linha publicada.

O principal acréscimo se dá ao final do conto, quando Luís Negreiros, tomado de ciúmes, vai até Clarinha e a ameaça com uma arma de fogo: “Uma nuvem passou pelos olhos de Luís Negreiros. Dentro de alguns segundos tinha Clarinha diante de si o revólver que o marido lhe apontava ao peito.”. Se a cena do jornal se mostra mais melodramática ao leitor moderno, é verdade também que expressa ainda mais violência quando ligada à frase que a sucederá na primeira edição do livro: “— Responde, demônio, ou morres!”.


Figura 4 – Fac-símile da edição de abril de 1873  do Jornal das FamíliasHemeroteca digital, Biblioteca Nacional

Examinando a versão em livro, assinada por Machado e consequentemente assim fixada para a posteridade, observamos um desfecho mais aberto, entregue às observações imediatas do leitor, e uma composição mais tortuosa. Enquanto no Jornal o narrador direciona nosso olhar: 

Imagine o leitor o pasmo, a vergonha, o remorso de Luís Negreiros, admire a constância de Clarinha e a vingança que tomara, e de nenhum modo lastime a boa Zeferina, que foi totalmente esquecida, sendo perdoado Luís Negreiros, e tendo Meireles o gosto de jantar com a filha e o genro no dia seguinte.” (grifos nossos)

Em Histórias da meia-noite, apenas uma frase substitui a citação anterior: “Assim acabou a história do relógio de ouro”. 

A reescritura, como visto, apresenta o estilo equilibrado do Bruxo, mais límpido na superfície, mas que permite interpretações controversas e propõe uma articulação mais atenta das informações encobertas ao longo da narrativa. Aqui, nota-se a faceta do escritor editor de si mesmo que foi Machado de Assis: liberto das amarras dos periódicos, ele opta, então, pela redação de um texto que melhor se relaciona com as expectativas em torno de sua assinatura.

Logo, seja interligando ou separando as inserções e subtrações das duas versões de “O relógio de ouro”, somos levados a refletir a respeito de temáticas recorrentes da obra machadiana como a traição, o ciúme, o engano, a aparência e a responsabilidade de um(a) autor(a), neste caso daquela que presenteou Luiz; e delineamos um pouco do processo de edição e pseudonímia do escritor empírico. E se no jornal existem passagens mais caricatas que no livro, deixando o leitor mais amparado com suas interpretações, é certo que nas duas redações acompanhamos os pormenores do comportamento humano esboçados por Machado.

Nossas versões: edição, compartilhamento e interpretação

Para complementar ou, neste caso, complicar o processo interpretativo dos leitores contemporâneos, podemos encontrar livremente pela internet mais uma versão de “O relógio de ouro”. Ao contrário do que se espera, o arquivo do conto no portal Domínio Público, que diz tomar como referência a edição de Histórias da meia-noite da Coleção de obras ilustradas do autor, está repleto de erros ortográficos, ausências e alterações não programadas por Machado, alterando significativamente a impressão do público a respeito de seu texto.

Por exemplo, quando algumas linhas dos diálogos são suprimidas, o encaminhamento do texto se torna mais confuso para o intérprete, o levando a questionar a figura grandiosa do autor e a qualidade do texto. É o que vemos no excerto adiante, onde não aparece uma interrogação presente no Jornal e no livro:

“E acrescentou consigo:

— Estavam de arrufos… é o que há de ser.

[— Vamos justamente jantar, disse Luís Negreiros. Janta conosco?]

— Não vim cá para outra coisa, acudiu Meireles; janto cá hoje e amanhã também. Não me convidaste, mas é o mesmo.”

Para além dos deslizes que incomodam a leitura, a mais grave das faltas dessa edição é justamente o final que, quando colocado lado a lado com as versões já comentadas, empobrece a multiplicidade de sentidos pontuadas pelo narrador no desfecho do conto. Se desconfiamos da remetente “Zeferina” ou daquela “Yayá”, nada vemos de mal neste “Tia Iaiá” que encerra a versão disponível em domínio público.

Finalmente, se tratando de literatura, em que os equívocos compõem a interpretação, publicações que explorem o processo de escrita de Machado e, ainda assim, tragam um texto autêntico para os leitores, são essenciais. E, apesar do fácil acesso e da livre circulação online, são poucas as versões de seus textos que apresentam um trabalho de edição responsável, tão caro ao autor em vida.

Desse modo, ficam indicados para consulta gratuita o Acervo da BBM, que traz primeiras edições de inúmeras obras de Machado, permitindo ao leitor conhecer as edições fixadas em vida pelo autor; e o site machadodeassis.net, que fora um vasto acervo de textos do escritor revisados de maneira responsável, conta ainda com um mecanismo de busca que permite ao visitante relacionar melhor escritos e referências pontuadas ao longo das publicações do Bruxo .

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Azevedo, Silvia Maria. “Machado de Assis entre o jornal e o livro” in O eixo e a roda: v. 16, 2008. Belo Horizonte, p. 167-177.

Catita, Flávia Barretto Corrêa. “Reescrita do conto “O relógio de ouro”, de Machado de Assis na passagem do jornal para o livro” in Revista da ABRALIN, v.16, n.3, p. 101-117, jan./fev./mar./abr. 2017.

____________________. Por uma edição crítico-genética virtual do livro Histórias da meia-noite, de Machado de Assis; Orientador Hélio de Seixas Guimarães – São Paulo, 2014.

Piglia, Ricardo. Formas breves / tradução de José Marcos Mariani de Macedo. 1.ed. São Paulo : Companhia das Letras, 2004.

Santos, Fernando Borsato dos. As assinaturas de Machado de Assis: estudo sobre as figurações da autoria; orientador Hélio de Seixas Guimarães. – São Paulo, 2021. 209 f.

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Ingrid Benicio é graduanda em Letras pela FFLCH-USP e bolsista da BBM pelo Programa Unificado de Bolsas (PUB-2021-2022).

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