por João Cardoso
Embora muitas vezes fantasiosa, a descrição que o padre Cristóbal de Acuña elaborou sobre o Rio Amazonas contém informações preciosas sobre o passado da ocupação humana na região
Em 1641, o padre jesuíta espanhol Cristóbal de Acuña publicou Nuevo Descubrimiento Del Gran Río de Las Amazonas (Novo Descobrimento do Grande Rio das Amazonas). Dois anos antes da publicação desse livro, Acuña tomou parte numa expedição que percorreu todo o curso do Rio Amazonas, de seus formadores na Cordilheira dos Andes até sua foz, no Atlântico. O Novo Descobrimento descreve para a Coroa espanhola a imensidade das águas, o clima, as plantas e os animais, os povos e as riquezas da Bacia Amazônica.
A expedição de 1639 não foi a primeira realizada por europeus na Amazônia. Cerca de cem anos antes, entre 1541 e 1542, o explorador espanhol Francisco de Orellana liderou a primeira expedição europeia que percorreu o Rio Amazonas e alguns de seus afluentes, dos Andes ao Atlântico. Gaspar de Carvajal, um missionário dominicano espanhol, acompanhou a expedição e, como Acuña, também escreveu um relato sobre a viagem. Contudo, seus escritos permaneceram ocultos por séculos e só foram publicados em meados do século XIX. Em 1637, o português Pedro Teixeira comandou uma expedição que fez o percurso oposto ao de Orellana, isto é, ele subiu o Amazonas de sua foz até chegar em Quito. Quando chegou nessa cidade, em 1638, o Vice-Rei espanhol decidiu que Teixeira devia fazer o caminho de volta até Belém. Cristóbal de Acuña integrou a comitiva dessa viagem, também liderada pelo militar português.
Inferno ou paraíso verde?
Ao longo dos séculos, houve uma multiplicidade de entendimentos sobre a Amazônia, elaborados por exploradores, missionários, administradores coloniais, cientistas, escritores, empreendedores, autoridades governamentais etc. Simplificando bastante esse quadro geral muito variado, os entendimentos distribuem-se dentro de dois polos opostos: a Amazônia como paraíso promissor e como inferno irremediável. O Novo Descobrimento sem dúvida aproxima-se do primeiro polo. Assim, a primeira apresentação que Acuña faz do Amazonas já dá a dimensão de sua magnificência:
É o formoso Rio das Amazonas, que percorre e banha as mais ricas, férteis e povoadas terras de todo o Império do Peru o que de hoje em diante podemos, sem usar hipérboles, qualificar como o maior e mais célebre do Orbe. […] no Amazonas desaguam inumeráveis rios, há areias de ouro e rega terras que atesouram em si infinitas riquezas.
(Novo Descobrimento, cap. XVIII)
Comparado aos rios Ganges, Eufrates e Nilo, o Amazonas sempre leva vantagem: “só lhe falta, para vencê-los em felicidade, ter sua origem no Paraíso”. Na sequência do relato de Acuña, a grandeza da região é detalhada. Os frutos e raízes, peixes e caças são abundantes, variados, saborosos e nutritivos. O clima é aprazível, as plantas medicinais podem curar muitas doenças, a madeira, o cacau, o tabaco, a cana de açúcar e, principalmente, o ouro prometem riquezas capazes de fazer a fortuna não de um, mas de muitos reinos.
Evidentemente, é preciso ter em conta que o padre Cristóbal de Acuña buscava apresentar ao rei espanhol uma região largamente desconhecida e inexplorada pelo colonialismo europeu. Um dos seus principais objetivos, portanto, era estimular que a Coroa espanhola (em 1639 as monarquias portuguesa e espanhola ainda estavam reunidas naquilo que ficou conhecido como União Ibérica) tomasse posse efetiva do vasto território e para isso convinha exaltar as riquezas que a Amazônia tinha a oferecer. Quase quatrocentos anos depois, a Amazônia e sua população nativa ainda é assombrada pela promessa de riquezas ilimitadas – minério, madeira, terra para ser desmatada e ocupada por pasto ou monoculturas, rios para produzir energia elétrica. Contudo, o acúmulo e a ampliação dessas ações predatórias já têm surtido efeitos devastadores: de incêndios cada vez mais frequentes à falta de peixes ou à sua contaminação por metais pesados (efeito da mineração), que provocam fome e adoecimento às populações nativas e ribeirinhas.
Muita gente, de diferentes nações
No Novo Descobrimento, a variedade e abundância não dizem respeito apenas às riquezas naturais, mas também às populações indígenas da Amazônia. Durante muito tempo, dominaram concepções de que os fatores ecológicos da região amazônica limitavam o desenvolvimento de grandes contingentes populacionais. O destino inescapável das populações nativas da Amazônia estava, assim, naturalmente traçado: não poderia haver senão grupos relativamente pequenos, esparsamente distribuídos pelo território, que enfrentavam o risco constante de padecer com a falta de recursos. Ora, Acuña apresenta um cenário bastante diferente:
Todo este novo mundo (chamemo-lo assim) é habitado de bárbaros de distintas províncias e Nações […]. Passam de cento e cinquenta, todas de línguas diferentes, tão dilatadas e povoadas de moradores como as que vimos por todo este caminho, como depois diremos.
São tão seguidas estas Nações, que dos últimos povoados de umas, em muitas delas, se ouvem lavrar os paus nas outras, sem que tamanha vizinhança os obrigue a fazer as pazes, conservando perpetuamente contínuas guerras, em que cada dia se matam e se cativam inúmeras almas; desaguadeiro ordinário de tanta multidão, sem o qual já não caberiam naquela terra.
(Novo Descobrimento, cap. XXXVI)
Embora muitas vezes as hipérboles do padre espanhol sejam apenas fruto de sua fantasia, as referências à existência no passado de grandes contingentes populacionais ao longo do Rio Amazonas têm sido corroboradas por pesquisas arqueológicas mais recentes. Ou seja, as novas descobertas feitas por arqueólogas e arqueólogos do presente ecoam passagens do Novo Descobrimento de Acuña: os povos nativos amazônicos souberam tirar partido da abundância da região e a fizeram ainda mais fértil, sem que isso significasse sua destruição.
Sugestões de leitura
- Carvajal, Gaspar de; Acuña, Cristobal; Rojas, Alonso de. Descobrimentos do Rio das Amazonas. São Paulo: Ed. Nacional, 1941. A publicação reúne os relatos sobre a Amazônia dos séculos XVI e XVII escritos por três religiosos espanhóis. Carvajal e Acuña acompanharam, respectivamente, as expedições de Francisco de Orellana e de Pedro Teixeira. O jesuíta Alonso de Rojas escreveu sobre o Rio Amazonas sem ter tido experiência direta na região.
- Martins. Maria Cristina Bohn. Descobrir e redescobrir o grande rio das Amazonas: As relaciones de Carvajal (1542), Alonso de Rojas SJ (1639) e Christóbal de Acuña SJ (1641). Revista de História, n. 156, p. 31-57, 2007. Neste artigo, a historiadora analisa as obras dos três religiosos espanhóis reunidas em Descobrimentos do Rio das Amazonas.
- Neves, Eduardo Goés. Sob os tempos do equinócio: Oito mil anos de história na Amazônia central. São Paulo: Ubu, 2022. O arqueólogo apresenta uma instigante síntese sobre os milhares de anos de ocupação humana na Amazônia central, de 10 mil anos atrás até os primeiros momentos da colonização europeia.
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João Cardoso é curador do acervo BBM