Cora, a filha de Ágar, uma Drama Abolicionista no Brasil do Século XIX

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por Lucas Fernandes

A partir dos anos de 1870 crescem os movimentos abolicionistas no Brasil. Nesse contexto, a peça Cora, a filha de Ágar, se vale do teatro para participar das discussões trazidas por esses movimentos.

Teatro e abolição

Cora, a filha de Ágar (1884), é um drama abolicionista em quatro atos escrito por José de Cavalcanti Ribeiro da Silva. O pouco que se sabe sobre o autor é que ele publicou mais de uma dezena de obras literárias, com destaque para as peças teatrais, tais como O Velho Casamenteiro (comédia), O Interesse do Tutor (comédia), O Plebeu (drama) e Os escravocratas, outro drama abolicionista. Cora, a filha de Ágar foi apresentada pela primeira vez pela Sociedade Distração Dramática Familiar em 20 de setembro de 1884, no Recife. O primeiro ato transcorre no Pará, e do segundo até o quarto em Pernambuco. No enredo temos Cora, uma escravizada miscigenada e de pele clara que é assediada por seu senhor, o tenente Coronel Andrada. Pedro, o feitor da fazenda e “pai protetor” de Cora, foge com ela para Pernambuco, evitando que ela seja abusada pelo seu senhor. Cora se apaixona por Carlos, um tenente da marinha que a salva de um afogamento durante a fuga para Pernambuco. Apesar de apaixonada por Carlos (e correspondida em seu amor), a protagonista teme revelar seu sentimento por conta da sua condição de escravizada. Ela crê que sua relação ocasionaria a ruína de sua própria vida e a de seu amado. Ao fim da peça, Cora descobre ser filha do Coronel Andrada, cujos abusos ela perdoa – para além do assédio, Andrada matou a mãe de Cora e, se não fosse por sua avó, Cora também teria sido morta  – e Andrada, por sua vez, concede alforria a ela e aos seus escravizados. 

Capa de Cora, a Filha de Agar

A peça situa-se num período em que o fim da escravidão vinha ganhando cada vez mais adesão por parte das elites intelectuais e econômicas brasileiras. Entre 1878 e 1885 houve aproximadamente 227 sociedades abolicionistas no Brasil. Esses grupos pró-abolição fomentaram conferências e comícios, distribuíram panfletos, publicaram artigos em jornais e ajudaram a organizar rotas de fugas para pessoas escravizadas, incentivando-as a escaparam do cativeiro e as abrigando. 

Desse modo, peças com temáticas como Cora, a filha de Agar, encontram amparo em duas forças: nas associações abolicionistas e no teatro como disseminador de ideias políticas, de maneira semelhante ao que ocorria nas representações da Grécia Antiga, nas quais as peças tinham a função de juntar a população a fim de exibir no palco questões pertinentes à sociedade. O teatro como ato político é assim definido pelo dramaturgo e teórico do teatro Denis Guénoun em seu livro A exibição das palavras: uma ideia (política) do teatro

O teatro é, portanto, uma atividade intrinsecamente política. Não em razão do que aí é mostrado ou debatido – embora tudo esteja ligado – mas, de maneira mais originária, antes de qualquer conteúdo, pelo fato, pela natureza da reunião que o estabelece. O que é político, no princípio do teatro, não é o representado, mas a representação: sua existência, sua constituição,”física”, por assim dizer, como assembléia, reunião pública, ajuntamento. O objeto da assembléia não é indiferente: mas o político está em obra antes da colocação de qualquer objeto, pelo fato de os indivíduos se terem reunido, se terem aproximado publicamente, abertamente, e porque sua confluência é uma questão política – questão de circulação, fiscalização, propaganda ou manutenção da ordem.

Ou seja, para além do conteúdo de determinada dramaturgia, o fato das pessoas estarem reunidas no “lugar de onde se vê” é um fator que configura o teatro como sendo político em sua essência. Por outro lado, o que será discutido nessa reunião não é algo indiferente. Sobre o que será trazido para análise no palco, na introdução de sua peça, Ribeiro da Silva diz:

Agora duas linhas explicativas. Preciso dizer aos que lerem este drama o como e o por que escrevi-o. O Cora, A FILHA DE AGAR, não é um trabalho completo; é simplesmente, despretensiosamente, a manifestação de uma ideia. Nasceu ao influxo dessa agitação nervosa que ora convulsiona todas as cabeças que pensam, desta efervescência abolicionista que se agita em minha província, efervescência que há de em pouco explodir numa sublime apoteose de bênçãos sobre a última cabeça do último cativo brasileiro.

O teatro Santa Isabel, em Recife, em 1867

Cora, a filha de Agar foi um ato intrinsecamente político que levou ao palco discussões sobre a abolição no Brasil, em relação à qual o dramaturgo Ribeiro da Silva se posicionou. Apesar das fragilidades desse posicionamento – como o problema da representatividade negra, por exemplo – essa dramaturgia é um convite para ampliarmos nosso repertório sobre escritos contra o regime escravocrata que circulavam no Brasil do século XIX.

Representatividade preta marginalizada

Na peça, os estudantes de direito Arthur de Souza e Júlio de Lemos são personagens que representam parte da elite brasileira que defendia o fim do sistema escravocrata no país. Ambos parecem funcionar como porta-vozes do autor sobre a abolição no Brasil: 

Arthur (como trazendo a conversação de longe) – No entretanto é justo confessar que a escravidão é um prego atado à roda do carro do progresso do Brasil. Afianço-lhes que se o governo de há muito tivesse tomado medidas no sentido de extinguir para  sempre e de uma só vez deste solo ubérrimo e fértil o trabalho escravo, outras seriam as vantagens que teríamos a enumerar em relação ao nosso adiantamento material e outros seriam ainda os benefícios dispensados ao nosso estado moral.

J. de Lemos – É uma verdade inconcussa. Não sei como se admitir esta coligação: – ser-se brasileiro e escravagista.

Arthur – É uma tendência que nos foi legada, dizem eles, mas uma tendência criminosa e desumana e um legado vergonhoso e ignóbil. 

Nota-se na passagem que o discurso pró-abolição é dado por homens brancos e está atrelado não a uma preocupação com a população preta, mas sim com “um prego atado à roda do carro do progresso no Brasil”, como coloca Arthur de Souza. Vale lembrar que houve muita pressão política e econômica por parte de países europeus para o fim da escravidão no Brasil, principalmente pela Inglaterra, que buscava ampliar os mercados para seus produtos industrializados, precisando para isso de uma classe trabalhadora livre e assalariada, com relativo poder de compra. 

Ecoando A Escrava Isaura (1875), de Bernardo Guimarães, Cora, a protagonista da trama, é uma escravizada branca, o que anula uma representatividade preta direta na peça. Já no início nos deparamos com falas que exaltam a beleza branca de Cora, caso desta do Coronel Andrada: 

Andrada – Ora, a propósito de negros, vou mostrar ao Capitão Paulo e ao compadre Cândido, uma jóia que me veio às mãos há 2 meses. Uma mulata peça que é tão branca como qualquer um de nós, e que … olá ! Ahi é que está a maravilha; toca piano melhor que a filha do Juiz de Direito cá da comarca.

Próximo ao final da peça, Damião, outro escravizado do coronel Andrada, distingue-a dos demais cativos, também exaltando o fato dela ser branca:

Damião   Deve ser aqui! . . .  Aquele home da beira do rio me disse: A casa tem dois pés de pau no terreiro. Ah! Como estão escondidos! Coitadinha de Cora! Tão branca, tão alva, tão boa e cativa como a gente! (…)

Assim, ser “branca como qualquer de nós”, e “tão branca, tão alva, tão boa”, fazem com que Cora tenha outra posição e tratativa numa sociedade escravocrata. Não carregando traços de uma pessoa negra em sua aparência, tampouco em seu discurso e atitudes – uma vez que ela lê e toca piano de forma exemplar,  atividades pouco prováveis para pessoas escravizadas da época – seria possível dizer que havia um esforço para promover uma identificação da plateia branca com a personagem, tornando mais palatável o discurso abolicionista? Sobre isso, o historiador canadense Hendrik Kraay coloca que: 

A maioria dos personagens escravizados brancos na literatura brasileira eram mulheres, igual a maioria dos escravizados brancos libertos por transeuntes. Aqueles que escreveram sobre escravizados brancos viram atributos da beleza euro-americana nas mulheres brancas escravizadas, incluindo cabelos longos e lisos, traços finos e pele branca, as mesmas coisas enfatizadas por [Bernardo] Guimarães sobre Isaura e que tantos outros autores sublinharam em suas personagens.

Aparentemente, assim como a identificação de certos transeuntes com pessoas de pele clara e escravizadas os levavam a comprar sua alforria, talvez a peça despertasse o mesmo sentimento de identificação no público ao ver uma escravizada branca no palco. Desse modo, a peça de Ribeiro da Silva não propõe rupturas mais combativas em relação à escravidão, pois, por um lado, são homens brancos da elite (os dois estudantes de direito citados acima) os porta-vozes pelo fim do regime escravocrata e, por outro lado, Cora é uma escravizada branca, ou seja, não representa as pessoas escravizadas no Brasil, que eram pretas. O autor sequer menciona movimentos pretos em prol do abolicionismo, como o realizado por Luiz Gama na imprensa de São Paulo em 1864, ou sobre a Associação Central Abolicionista, agremiação política que reuniu personalidades do Império brasileiro, como José do Patrocínio, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e André Rebouças, criada em 1880. Acima de tudo, Ribeiro da Silva não coloca em cena uma mulher preta, apaziguando qualquer desconforto que essa atitude poderia causar. 

Pretos em cena

Podemos pensar que uma atriz preta em cena no Brasil de 1884 seria um anacronismo, já que para o contexto do teatro do Segundo Império uma protagonista preta seria impensável. Um marco da representatividade preta no teatro brasileiro viria com o trabalho de Abdias do Nascimento, fundador do Teatro Experimental do Negro (TEN), que clamou por uma representatividade legítima da pessoa preta em 1940. Explicando o motivo do TEN estrear uma peça do dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill, O Imperador Jones, em 1945, Abdias comenta que:

O repertório (nacional) existente era terrivelmente fraco – poucas peças inferiores nas quais apareciam o negro como um elemento cômico, uma figura pitoresca, ou um material de pano de fundo… nem mesmo um único script que refletia a dramática situação do afrodescendente… o TEN não era uma catarse que poderia ser expressada ou aparecer através do riso, uma vez que o problema era infinitamente mais trágico: o esmagamento da cultura negra pela cultura branca. Sem outra possibilidade, O Imperador Jones foi uma solução natural.

Já a peça Orfeu da Conceição, escrita por Vinicius de Moraes, foi apresentada em 1956 no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, e é considerada uma revolução e um marco para a época, visto que é situada nos morros cariocas e teve no elenco somente pessoas pretas. Por outro lado, uma adaptação televisiva, feita pela Globo em 1969, de A Cabana de Pai Tómas, romance publicado em 1852 por Harriet Beecher Stowe, que retrata a escravidão nos EUA tirou de cena o protagonismo negro: o papel principal foi interpretado pelo ator branco Sérgio Cardoso, que pintava seu corpo de preto – o famigerado blackface – e até colocava rolhas no nariz para supostamente se assemelhar a uma pessoa preta. E isso ocorre apesar de Abdias do Nascimento e Vinicius de Moraes já terem feito um movimento de representatividade, como vimos acima. E o que dizer da novela “Segundo Sol”, de 2018 na TV Globo, ser ambientada na Bahia mas tendo seu elenco majoritariamente branco? A emissora recebeu duras críticas por essa atitude. Ou seja, a representatividade negra nos palcos e nas telas é um processo em construção ainda nos dias de hoje. 

Ruth de Souza e Sérgio Cardoso na novela “A Cabana do Pai Tomás”

Retornando à peça de Ribeiro da Silva, Cora, a Filha de Ágar não trata a questão da população negra de forma mais abrangente. Ela não leva em conta o esforço dessa população pelo fim da escravidão e carece de representatividade negra em seu enredo. Assim,  a peça pretende romper com o sistema escravocrata dando apenas a visão da camada privilegiada da população brasileira. Como sabemos, a escravidão deixou enraizado fortes preconceitos e desigualdades no país, já que podemos identificar a não representatividade preta e um racismo estrutural mesmo no Brasil do século XXI. Para tanto, conhecer o que nos foi legado sobre esse assunto em épocas passadas, como é o caso da peça de Ribeiro da Silva, pode contribuir para elucidar elementos racistas que há séculos estão em funcionamento na sociedade brasileira.

Rerefências

CARMO, Jeferson Gonçalo do. Ao teatropoistodos os abolicionistas” : o teatro abolicionista e movimento antiescravista em Recife entre 1880 e 1886.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2020.

GUÉNOUN, Denis. A Exibição das Palavras: uma ideia (política) do teatro. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, 2003.

KRAAY, Hendrik. Bystander interventions and literary portrayals: white slaves in Brazil, 1850s–1880sSlavery & Abolition, v. 41 n. 3, p. 599-622, 2020.

SILVA, José Cavalcanti Ribeiro da. Córa, A Filha de Agár. Recife: Editora A Fabrica Apollo, 1884.

TURNER, Doris J. Black Theater in a “Racial Democracy”: the case of the Brazilian Black Experimental Theater, CLA Journal, v. 30, n. 1, p. 30-45, 1986.

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Lucas Fernandes é graduando em Letras pela FFLCH-USP e bolsista da BBM pelo Programa Unificado de Bolsas (PUB-2021-2022).

Curadoria

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