Isabel Lady Burton, uma viajante oitocentista

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por Patricia Freire do Nascimento

Isabel Lady Burton foi uma viajante, exploradora, tradutora e escritora inglesa que viveu no século XIX. Marginalmente conhecida por ser esposa do diplomata, explorador e escritor Richard Burton, ao longo de sua própria vida, Isabel também viajou por diversas partes do mundo e escreveu sobre elas. Nascida em 1831 na tradicional família católica Arundell de Wardour, uma das mais antigas e renomadas da Inglaterra, Isabel foi a princípio educada em casa e aos dez anos foi estudar no Convento dos Cânones do Santo Sepulcro, onde permaneceu até os dezesseis anos. Desde essa idade, a autora relatou seu interesse pelos ciganos, pelas tribos árabes dos beduínos, por tudo o que era considerado oriental e místico, em especial pela “vida selvagem e sem lei”

Lady Burton também se mostrou muito ativa na escrita, produção e publicação de livros, sempre auxiliando na publicação dos escritos de seu marido. Por si própria, em 1886, por exemplo, publicou a primeira tradução de Iracema para a língua inglesa e, mais tarde, em 1893, também publicou uma biografia sobre o marido, The life of capitain Sir Richard F. Burton (A vida do capitão Sir Richard F. Burton).

A biografia de Isabel Burton, por sua vez, foi publicada em 1897 em Londres. Embora tenha iniciado os escritos, Lady Burton adoeceu à época em que começou a trabalhar em sua autobiografia. A continuidade da montagem da obra após a morte de Isabel, que aconteceu em 1895, foi proposta por sua irmã ao escritor e amigo da autora William Henry Wilkins. Para compor a história da vida da autora foram usados, principalmente, cartas e os diários de Isabel Burton.

De forma geral, o principal flanco da obra se dá sobre as viagens e a vida fora da Inglaterra. Sem traços fortes de saudosismo da terra natal, as documentações deixadas por Lady Burton cumpriram o papel de relatar a vida da autora quase inteiramente em primeira pessoa. Além de sua experiência no Brasil, há a descrição de sua vida nos demais lugares em que morou e das viagens que fez. A obra final, intitulada The romance of Isabel Lady Burton: the story of her life told in part by herself and in part by W.H. Wilkins (O romance de Isabel Lady Burton: a história de sua vida contada em parte por ela mesma e em parte por W.H. Wilkins), foi lançada dois volumes (volume I e volume II). Até o momento não há tradução da obra para português e os exemplares disponíveis na BBM são em língua inglesa.

Um encontro com o destino 

Aos 19 anos de idade, Isabel mudou-se com a família para Boulogne, na França. Foi lá que a autora relatou ter “encontrado seu destino”, pois no mesmo ano em que a família Arundell se instalou em território francês, Richard Burton, o futuro marido de Isabel, também chegou à Comuna de Boulogne. Ainda que tenham se conhecido e desfrutado de boa amizade, Isabel e Richard só viriam a se tornar oficialmente um casal anos mais tarde, depois de vários encontros e desencontros. Enquanto Richard saiu em expedição à África, Isabel viajou pela Europa, tendo inclusive considerado se tornar freira após um retiro no Convento de Norwich. Richard retornou à Inglaterra em 1859, porém, a união dele com Isabel enfrentou obstáculos.

Em primeiro lugar, era publicamente conhecido que Richard, naquela época, era agnóstico e os Arundel eram uma família tradicionalmente católica. A oposição à união dos dois, nesse sentido, se deu principalmente através da mãe de Isabel, que também considerou Richard um pretendente de baixo nível para a filha. Isabel adoeceu severamente após ter seu casamento com Richard negado por sua família mas, ainda assim, confrontou a todos que se opuseram e envolveu membros da igreja católica que asseguraram seu exercício religioso dentro do casamento, possibilitando que se casasse com Richard Burton em janeiro de 1861.

Em sua biografia é apontado que, diferentemente das narrativas românticas, a história de Isabel não terminou em seu casamento, mas sim começou com ele. O casal Burton morou no Brasil, na Síria e no antigo Império Austro-Hungaro, além de, por conta do espírito aventureiro de ambos, viajarem por vários países e regiões, sobre os quais produziram diversos relatos. É importante mencionar a influência exercida pelo renome da família de Isabel, que foi de grande importância para a carreira diplomática de Richard Burton, pois foi através dele que Isabel, com grande empenho, conseguiu cargos para o marido nos consulados para os quais foi convocado.

Isabel: uma vilã na história de Richard Burton

Isabel Burton, ao longo do tempo, ganhou grande antipatia de muitos que conheceram a história de seu marido. Como mencionado anteriormente, ela vinha de um meio tradicionalmente católico, tendo inclusive pensado em seguir uma vida religiosa dentro do convento. Em contraste com esse caráter de Isabel, Richard não seguia assiduamente preceitos religiosos, tendo demonstrado bastante liberdade para abordar temas que iam além dos limites morais da tradicional sociedade inglesa de que provinha a sua esposa.

Uma das principais polêmicas que giram em torno desse aspecto do casal, e é considerada um grande crime contra o legado de Richard Burton, foi o fato de após a morte dele, em 1890, Isabel ter queimado boa parte de suas anotações pessoais, documentações, trabalhos, relatos e livros ainda não publicados. Mesmo enquanto Richard era vivo, Isabel sempre interferiu em – e por vezes censurou – alguns conteúdos de suas obras, delimitando-as dentro dos parâmetros aceitáveis dos bons costumes e dos preceitos católicos em que acreditava. Essas atitudes levaram a uma forte descredibilização da biografia que Isabel escreveu sobre o marido, sendo portanto muito contestada por estudiosos e posteriores biógrafos de Richard.

Há de se levar em conta que Richard Burton foi uma figura bastante complexa, rodeado de especulações acerca de sua sexualidade e alvo de muitas críticas sobre as temáticas, abordagens e o tom de suas obras. Na biografia de Isabel foi alegado que ela teria tomado tais atitudes por temer pela reputação do marido. Nesse sentido, Lady Burton também foi bastante criticada por ter conduzido todos os ritos fúnebres de Richard dentro dos moldes católicos, o que gerou grande controvérsias e revoltou amigos mais próximos do viajante à época de sua morte.

Terras e entranhas brasileiras

Isabel conseguiu que Richard fosse escalado para trabalhar no consulado de Santos, no Brasil, em 1865. Ela chegou em terras brasileiras pouco depois do marido e os dois se instalaram por semanas no Rio de Janeiro, sendo muito bem recebidos pela sociedade europeia da capital. Depois das boas vindas, o casal partiu para Santos, que é descrita por Lady Burton como um “manguezal” e “insalubre”. Foi decidido, portanto, que Isabel residiria durante a maior parte do tempo em São Paulo, devido a questões de saúde. A viagem do casal do litoral até o topo da serra se deu no período anterior à finalização da construção da estrada de ferro que ligava São Paulo a Santos. Assim, o percurso percorrido foi feito com bondes, com o auxílio de mulas e cavalos e, também, a pé.

Nos meses seguintes, até 1867, Isabel viveu entre São Paulo e Santos, além de fazer viagens ocasionais ao Rio de Janeiro. Sua vida em São Paulo, de forma geral, foi descrita como feliz no período, apesar dos inconvenientes relacionados ao clima tropical, aos insetos e vermes e à falta de uma “sociedade agradável”. Nas palavras de Isabel em uma carta para a mãe:

São Paulo é uma cidade bonita, branca e dispersa no alto de uma colina e descendo para um planalto alto, bem arborizado e irrigado, com morros ao longe. (..) É um clima bom, muito quente das nove às quatro da tarde, mas bastante fresco nas outras horas. Não há baratas, pulgas, insetos e moscas da areia, mas apenas mosquitos e bichos-de-pé. No interior há cobras, macacos, onças e gatos selvagens, escorpiões-centopeias e aranhas, mas não na cidade. Claro que é enfadonha para quem tem tempo para ser enfadonho, e muito cara. Para quem se lança na sociedade brasileira é um lugar rápido e imoral, sem nada chique ou com estilo. Está cheio de estudantes e ninguém é religioso ou honesto em questões financeiras; e eu nunca me surpreenderia se chovesse fogo sobre ela, como em uma cidade do Antigo Testamento, por falta de um brasileiro justo. (BURTON, Vol. I, pg. 252-253)
 

Em junho de 1867, Richard e Isabel partiram do Rio de Janeiro para uma expedição rumo a Minas Gerais e à Bahia. Pretendiam descer o Rio São Francisco, o “Mississipi brasileiro”, e visitar as quedas Paulo Afonso, o “Niágara brasileiro”. Ao longo do percurso que fizeram, Isabel descreveu várias cidades como Petrópolis, Juiz de Fora, Barbacena e São João d’El Rei, onde participaram da celebração e da procissão de Corpus Christi. Vilas menores também foram descritas, como Lagoa Dourada, onde Isabel e sua comitiva foram recebidos por engenheiros ingleses que trabalhavam na construção de ferrovias. Junto deles, Lady Burton chegou a protagonizar a cerimônia de inauguração de um trecho da ferrovia que passaria a atender a mineração na região. Além das cidades e vilas, paisagens naturais como a baía de Guanabara e a serra da Mantiqueira também foram registradas por Isabel ao longo de sua expedição.

Analisando as principais experiências vividas pela viajante no Brasil, os relatos acerca das minas da região do quadrilátero ferrífero mineiro tiveram atenção especial. Dentre elas, pode-se mencionar o complexo de minas Morro Velho, que era administrado pela companhia inglesa Saint John del Rey Minning desde 1834 e correspondeu ao investimento inglês mais lucrativo do século XIX na América Latina. Foi na Casa Grande do complexo que o casal assistiu à reunião de centenas de escravos. A Mina da Passagem, em Mariana, também impressionou Isabel, que, descrevendo o interior dela, a comparou ao inferno de Dante:

Cada um, com uma lanterna e uma vara, desceu um túnel íngreme, escuro e escorregadio de quarenta e cinco braças de profundidade – as cavernas grandes e abobadadas e, em alguns lugares, sustentadas por vigas e gotejando água. Os mineiros eram todos escravos negros. Eles estavam entoando uma música selvagem em coro, no ritmo das batidas do martelo. Eles trabalham com um pé-de-cabra de ferro chamado broca e um martelo, e cada um perfura quatro palmas por dia. Se fizerem seis, são pagos pelos dois. Eles estavam escorrendo de suor, mas ainda pareciam muito felizes. A mina estava iluminada com uma tocha para nós. Descemos então trinta e duas braças mais fundo, vendo todas as diferentes aberturas e canais. Para inexperientes como eu, parecia provável que as cavernas de pedra, aparentemente sustentadas por nada, iriam cair. Levei junto de mim o negro Chico [criado de Isabel]. Ele mostrou grandes sintomas de medo e alegou “Parece O inferno!” Fiquei bastante impressionada com a justiça da observação. A escuridão, a profundidade das cavernas, o brilho das tochas iluminando as figuras negras que zumbiam contra a parede, o calor e a falta de ar, os cheiros horríveis, o canto selvagem, me lembraram Dante. Será que ele tirou alguns de seus infernos de uma mina? (BURTON, V. I, p. 303,304)
Reunião de escravos em Morro Velho

Pouco antes de partirem para a segunda metade da viagem, quando desceriam de canoa o rio São Francisco, Isabel sofreu uma queda e feriu o tornozelo. Isso a impediu de seguir a jornada e, portanto, permaneceu em Morro Velho até se recuperar e conseguir regressar ao Rio e a São Paulo. Ao retornar, passou a maior parte do tempo no Rio de Janeiro, de onde não teve notícias do marido por meses e acabou por planejar uma viagem à Bahia para procurá-lo. Contudo, antes da partida, Richard chegou ao Rio e apresentou um quadro de saúde muito fragilizado, ficando doente na cama por semanas. Foi então que ele abandonou seu posto no consulado e o casal decidiu deixar o Brasil. Richard Burton ainda fez uma viagem pelo sul do continente e pela costa do pacífico, enquanto Isabel voltou a Londres para trabalhar na publicação de alguns livros e para tentar conseguir junto ao Foreign Office um novo cargo para o marido.

Nessa viagem feita ao sul em 1868, Richard produziu uma narrativa acerca de um momento histórico importante em que o Brasil se encontrava: o do conflito contra o Paraguai. A narrativa foi feita sob o formato epistolar a um destinatário anônimo, e mais tarde, em 1870 foi publicada em Londres. No livro Letters from the battle-field of Paraguay (Cartas do campo de batalha do Paraguai) são reunidas 27 cartas escritas entre agosto de 1868 e abril de 1869, sendo que nessa época Richard visitou os campos de batalha por duas vezes.

Os escritos de Isabel Burton sobre o Brasil e sobre suas viagens pelo interior são, de forma geral, cercados de características próprias da época: a aristocracia, os escravos e os criados negros, as construções  de ferrovias inglesas, regiões de plantações de café e cana-de-açúcar, além de resquicios do ciclo do ouro na região de Minas Gerais. Além disso, detalhes pontuais do contexto histórico brasileiro permeiam os capítulos. Numa das passagens, por exemplo, Barbacena foi descrita como um lugar “morto-vivo”, tendo em vista que todos os homens jovens haviam partido para a guerra no sul.

Por outro lado, seguindo os alinhamentos e crenças de Isabel, há também espaço para exaltação do Império, normalização da escravidão e recorrente percepção de afastamento da civilização e da falta de expectativa quanto ao progresso do país. O Rio de Janeiro, nesse sentido, foi classificado pela autora como uma “semi-civilização” e, à medida que se avança pelo interior do país, é relatado o abandono quase completo dela. Essa visão de abandono da civilização condiz com o tom predominante nos relatos de viagem oitocentistas de, em geral, trazer consigo a ideia de superioridade da civilização do branco europeu. Dessa forma, pode-se também subentender uma visão negativa sobre o Novo Mundo, carregada de preconceitos e, em especial, racismo.

Referências

BURTON, Isabel Lady; WILKINS, William Henry. The romance of Isabel Lady Burton : the story of her life told in part by herself and in part by W.H. Wilkins. Londres: Hutchinson, 1897.

FIGUEIRA, Leonildo José. Richard Francis Burton no Brasil: um olhar para a guerra do Paraguai a partir de cartas dos campos de batalha (1865-1869). 2016. Dissertação (Mestrado em História, Cultura e Identidades) – Universidade Estadual de Ponta Grossa, 2016.

LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. Mulheres viajantes no século XIX. Cadernos pagu, v. 15, p. 129-143, 2000.

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Patricia Freire do Nascimento é graduanda em Relações Internacionais pelo IRI-USP e bolsista da BBM pelo Programa Unificado de Bolsas (PUB-2020-2021).

Curadoria

2 Comments

  1. Existem erros nas datas referidas no texto. Acredito que seriam erros de digitação confundindo o século XIX e o século XX.

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