200 Livros: Questão racial

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Atualmente, os debates sobre questões étnico-raciais, raça e racialidade têm ganhado cada vez mais relevo e profundidade, tanto dentro como fora da academia. Pode-se dizer que essas discussões visam trazer à tona formas históricas de violência, opressão e invisibilização que não são reconhecidas e nem trabalhadas pelo conjunto da sociedade. Ao se pautar esse tema com seriedade, faz-se necessário um passo retrospectivo, que busca recontar a história da formação social do Brasil, para, a partir disso, conseguir explicar as origens, o desenvolvimento e os produtos de uma sociedade fundada na escravidão. Nesse processo vemos, de um lado, o embate entre uma narrativa oficial que mantém a imagem do negro e de sua cultura atreladas a posições subalternas, visto como elemento exótico ou incompatível com o projeto de nação, e, de outro lado, as formulações de pensadores negros/as que escancaram o racismo velado das instituições, denunciam a falácia do mito de democracia racial, expõem a ideologia da superioridade branca difundida no imaginário dos brasileiros, dão visibilidade às produções culturais e intelectuais da população negra e fazem o diagnóstico dessas feridas ainda abertas em nosso corpo social.

Violência policial, encarceramento em massa, falta de oportunidades no mercado de trabalho, desvalorização no mercado afetivo, marginalização social, simbólica, econômica e política; estes são alguns dos problemas enfrentados pela população negra no Brasil. Ao contrário do que muitos intérpretes do Brasil apontaram, a famigerada tese de que a miscigenação das três raças produziu um tipo de sociedade harmoniosa na qual a intensa mistura de várias matrizes étnicas e civilizatórias logrou a superação dos conflitos raciais, o que vemos cotidianamente é a reencenação de um espetáculo colonial, a atualização de uma estrutura de segregação sócio-espacial e a continuidade de políticas de morte dirigidas às populações não brancas.

Como um convite para que o leitor se inteire melhor das várias faces e complexidades do tema, selecionamos algumas obras de pensadores/as que acreditamos ter contribuído para o avanço na compreensão das questões raciais no Brasil. Abrimos a série com as Primeiras trovas burlescas de Getulino (1859), escrito pelo advogado e literato Luís Gama. Nesta obra são reunidos poemas satíricos do autor que, além de trazer como motivo de seus versos a crítica às elites monárquicas e políticas de seu tempo, expressa com muita lucidez sua identidade afrodescendente, trazendo para as páginas do livro toda a gama de injustiças e opressões praticadas contra os negros. Em Casa Grande e Senzala (1933), Gilberto Freyre lança um novo olhar sobre a história da colonização do Brasil, interpretando antropologicamente a constituição de nossa sociedade a partir das relações que foram tecidas no entorno da casa grande, este marco civilizacional arcaico e contraditório da política e da dinâmica social brasileira. 

Em  Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo (1945), título da dissertação de mestrado de Virgínia Bicudo, é feita uma análise de como uma certa consciência de cor é construída nos sujeitos negros e mestiços através das interações sociais. Aponta a autora que esta autoimagem pejorativa que as pessoas racializadas desenvolvem sobre si mesmas seria fruto das atitudes das pessoas brancas, que ao lê-las e tratá-las como inferiores acabariam produzindo nelas uma desvalorização de suas características afrodescendentes. O historiador e sociólogo Clóvis Moura traz em Rebeliões da senzala (1959) uma interpretação inovadora sobre a escravidão no Brasil. Se distanciando das análises tradicionais que apontavam a passividade e até a cooperação dos negros com a instituição escravocrata, Moura nos conta sobre a resistência organizada e combativa dos afrodescendentes através dos quilombos e das experiências de revolta. Em Genocídio do negro brasileiro (1978), o artista, dramaturgo e intelectual Abdias Nascimento desvela aquilo que chama de “mística racista”, uma construção ideológica das elites que visa ocultar o genocídio cultural, físico e material da população negra através de um discurso fictício que aponta a democracia racial como uma panaceia dos conflitos raciais no Brasil. 

Seguindo a seleção, o antropólogo congolês naturalizado brasileiro Kabengele Munanga contribui para o debate acerca da identidade brasileira com sua obra Negritude: usos e sentidos (1988). No livro, o autor busca refletir sobre como os fatores históricos, psicológicos, linguísticos, culturais, ideológicos e raciais influem na formação das identidades, trabalhando com a ideia da negritude como um sentimento identitário unificador para as pessoas negras. Em O Espetáculo das raças (1993), da antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz, vemos como foi a recepção e implementação das teorias raciais  de teor científico que desembarcaram no Brasil na segunda metade do século XIX. A pesquisa de Lília aponta as contradições e implicações dessas ideias em solo nacional, e expõe como o racismo científico se transformou em projeto de nação através das políticas de embranquecimento da população. Em Racismo estrutural (2019) o professor e advogado Silvio de Almeida argumenta como o racismo não é somente algo que se evidencia em atitudes pessoais isoladas, mas algo que faz parte da cultura das instituições sociais, políticas e econômicas brasileiras. Fechamos nossa lista com a historiadora Beatriz Nascimento e sua obra Uma história feita por mãos negras (2021). Este livro reúne diversos escritos de Beatriz redigidos a partir dos anos 1970 e trazem aspectos fundamentais de sua obra, tais como a questão da mulher negra no mercado de trabalho e no mercado afetivo, sua visão transatlântica da diáspora, seus estudos acerca dos quilombos como organizações territoriais e políticas paradigmáticas e sua defesa de uma história das pessoas negras feita e protagonizada por pessoas negras.

Primeiras trovas burlescas de Getulino (1859)

De Luís Gama

Gama, Luís. Primeiras trovas burlescas de Getulino. São Paulo: Typographia Dois de Dezembro de Antonio Louzada Antunes, 1859. 

Exemplar na BBM Digital: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4905

Luís Gama (1830-1882) nasceu em Salvador, filho de uma negra livre e um branco de ascendência portuguesa. Aos 10 anos, Gama foi feito escravo pelo seu próprio pai (cuja identidade o filho nunca revelou) para pagar uma dívida de jogo. Transferido para São Paulo, Gama se alfabetizou aos 17 anos, quando também conseguiu sua alforria, por meios ainda não totalmente esclarecidos. Em 1848, ele se alistou no exército e em 1856 assumiu o posto de escrivão da Secretaria de Polícia de São Paulo, no gabinete de um professor de Direito. Por essa época, Gama começou a estudar Direito por conta própria, uma vez que foi rejeitado seu ingresso na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Como rábula, isto é, advogado sem formação em Direito, Gama tomou parte em processos que alforriaram judicialmente centenas de escravizados. O jurista Silvio de Almeida afirma que Gama foi “o maior advogado da história do Brasil, por conta de sua trajetória, de seu brilhantismo. Era um sujeito que demonstrava capacidade e manejo da tecnicalidade do Direito que são impressionantes até hoje.” Além de seu ativismo jurídico, Gama teve atuação destacada no meio literário e jornalístico paulista. Foi um dos fundadores, por exemplo, das publicações satíricas Diabo Coxo (1864-1865) e Cabrião (1866-1867). 

As Primeiras trovas burlescas de Getulino, de 1859, são o único livro de Luís Gama publicado em vida. Como o título indica, trata-se de uma coletânea de poemas satíricos, que, com humor ferino, valoriza sua identidade negra, exalta a beleza dos afrodescendentes, crítica a classe política e a aristocracia de seu tempo e denuncia as injustiças contra as quais tanto lutou: 


Diz a todos que é doutor! 
Não tolero o magistrado, 
Que do brio descuidado, 
Vende a lei, trai a justiça, 
-Faz a todos injustiça- 
Com rigor deprime o pobre 
Presta abrigo ao rico, ao nobre, 
E só acha horrendo crime 
No mendigo que deprime.


(Quem sou eu – Primeiras trovas burlescas de Getulino)

Fato raro para o Brasil Imperial, as Primeiras trovas burlescas de Getulino colocaram na cena literária um negro autor. Como diz Ligia Fonseca Ferreira, Luís Gama “estava ciente de encarnar um contraexemplo das teorias pseudocientíficas de há muito disseminadas no Ocidente sobre as desigualdades raciais.”

Casa Grande e Senzala (1933)

De Gilberto Freyre

Gilberto Freyre. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro: Livraria Schmidt Editora, 1933.

Gilberto Freyre (1900-1987) é autor de uma vasta obra, que transita especialmente entre a sociologia, antropologia e história. Como caracteriza Antonio Candido, Freyre é um dos intérpretes do Brasil que marcou sua geração, formada entre as décadas de 1940 e 1950. Filho de uma família tradicional pernambucana, Gilberto Freyre estudou nos Estados Unidos, na Universidade de Columbia, local em que conheceu um dos pioneiros da antropologia moderna, Franz Boas. Na década de 1920, participou, com jovens intelectuais como Cícero Dias e José Lins do Rego, de um movimento preocupado em projetar o Nordeste no cenário cultural nacional. Os problemas nacionais formam os assuntos recorrente em seus estudos, como Nordeste (1937), Açúcar (1939) e Olinda (1939). Gilberto Freyre foi deputado federal por Pernambuco pela União Democrática Nacional, entre 1946 e 1951.

Sua obra prima, Casa Grande e Senzala (1933), revolucionou os estudos sobre a história do Brasil ao incorporar a antropologia cultural para compreender a formação da sociedade brasileira. Recuperando o processo de colonização portuguesa, o autor destaca o processo de miscigenação racional, entre os colonizadores brancos portugueses, os escravos africanos e as populações indígenas locais. Apesar de refutar as posições racistas comuns naquele contexto, que viam a miscigenação como elemento de inferiorização da formação nacional, a obra de Freyre foi significativamente criticada por defender a existência de uma democracia racial no país, relativizando o caráter violento da miscigenação. Outro tema central na obra é a organização da dinâmica colonial partindo da Casa Grande, o que explicaria a origem do patriarcalismo presente na estrutura político e social do país contemporâneo. Mais tarde, Freyre publicou Sobrados e Mucambos (1936) e Ordem e Progresso (1959) que dariam continuidade à sua interpretação sobre a formação social e política brasileira.

Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo (1945)

De Virgínia Bicudo

Virgínia Leone Bicudo. Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. São Paulo: Sociologia e Política, 2010.

Virgínia Leone Bicudo, filha de um descendente de escravizados e de uma imigrante italiana pobre, nasceu na cidade de São Paulo em 1910. Graduou-se em Ciências Sociais pela Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP) em 1938, sendo a única mulher entre os bacharéis. Bicudo passou a atuar como visitadora psiquiátrica no então fundado Serviço de Higiene Mental Escolar da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Também foi docente de Psicanálise e Higiene Mental na ELSP – instituição vinculada à USP. Ingressante da primeira turma de mestrado da ELSP, defendeu sua dissertação em 1945, sob a orientação do sociólogo Donald Pierson. Na década de 1950, ela contribuiu para os estudos raciais no Brasil promovidos pelo Projeto Unesco, resultando na pesquisa Atitudes de alunos dos grupos escolares em relação com a cor de seus colegas (1953). Dedicou-se à institucionalização da psicanálise em São Paulo e em Brasília por meio da Sociedade Brasileira de Psicanálise. Foi a primeira não médica a se tornar psicanalista no Brasil. Virgínia Bicudo faleceu aos 93 anos, em 2003.

O Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo, nome original da dissertação de mestrado de Virgínia Bicudo, foi pioneiro ao tratar da questão racial no Brasil na academia. Sob a ótica da psicanálise, o estudo efetua o reconhecimento de que o sentimento de inferioridade dos pretos e “mulatos” advém das atitudes dos brancos, que os colocavam em posição de subalternidade no quadro geral das relações raciais. Na aplicação do seu trabalho e na sua motivação, Virgínia emprega a expressão consciência de cor, que designa, segundo Tânia Almeida, “o grau de discernimento dos sujeitos em relação à participação de suas características afrodescendentes nas interações, circuitos sociais e conflitos psíquicos”. Bicudo entrevistou 31 pessoas em sua pesquisa, das quais 17 eram mulheres – a maioria eram mulheres negras e “mulatas” de classes sociais inferiores, ao passo que os homens se concentravam mais nas classes intermediárias. A autora produziu uma análise notável acerca da dinâmica matrimonial entre pessoas brancas e negras, observando o peso sociocultural e psíquico sobre essa relação. Apesar de não pretender uma produção interseccional à época, o trabalho de Virgínia ofereceu elementos significativos para o entendimento da tríade raça, gênero e classe. Destaca-se, principalmente, por inaugurar, ainda nos anos 1940, a compreensão sociológica da diferença de cor como uma das fundadoras da desigualdade social no Brasil e seus efeitos psicossociais. Apesar da circulação restrita de sua dissertação, ela se sobressalta como um fato marcante de seu tempo: publicada apenas 12 anos após a primeira obra de Gilberto Freyre, Casa-grande & senzala (1933) – que marcou a identidade nacional como uma harmonia positiva entre as “raças” -, Bicudo avança na contracorrente, rompendo com o mito da democracia racial.

Rebeliões da senzala (1959)

De Clóvis Moura

Clóvis Moura, Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas.  São Paulo: Zumbi Ltda, 1959.

Nascido em Amarante, no Piauí, Clóvis Moura (1925-2003) foi um sociólogo, historiador e jornalista que aliou o marxismo à reflexão sobre a questão negra no Brasil e à militância junto ao movimento negro brasileiro. Transferido para Salvador em 1942, Moura filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e, a partir de 1962, ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Paralelamente à sua militância partidária, Moura colaborou com o movimento negro, como a União de Negros Pela Igualdade (UNEGRO) e o Movimento Negro Unificado (MNU). À margem dos círculos acadêmicos, embora respeitado e requisitado por eles, Clóvis Moura constituiu uma sólida reflexão sobre as lutas sociais dos negros tanto no contexto escravocrata quanto no contexto do Brasil pós-abolição. Da sua produção, destacam-se Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas (1959), Argila da Memória (1962), O Negro: de Bom Escravo a Mau Cidadão? (1977). 

Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas marcam um ponto de ruptura na reflexão sobre a questão negra na história do Brasil. Em contraste com as teses de Gilberto Freyre de que o Brasil seria um exemplo de democracia racial e de que a contribuição negra para a sociedade brasileira teria sido sobretudo de ordem cultural, Moura revela que a rebeldia dos negros escravizados foi fundamental para o questionamento e enfrentamento da organização social e econômica escravista brasileira. Os quilombos e as guerrilhas seriam, nesse sentido, as unidades de resistência dos escravizados, que se notam em períodos diversos e de norte a sul do território do Brasil colonial e imperial. O pioneirismo de Rebeliões da senzala deve-se principalmente ao fato de a obra ser uma das primeiras a contestar a imagem da passividade negra ante à escravidão. Clóvis Moura mostra, ao contrário, que “as lutas dos escravos, ao invés de consolidar, enfraqueceram aquele regime de trabalho, fato que, aliado a outros fatores, levou o mesmo a ser substituído pelo trabalho livre”.

Genocídio do negro brasileiro (1978)

De Abdias Nascimento

Abdias do Nascimento. Genocídio do Negro Brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

Abdias do Nascimento nasceu em Franca, São Paulo, no ano de 1914. Homem de muitos talentos e caminhos, Abdias foi artista plástico, dramaturgo, ator, escritor, poeta, professor universitário e ativista pan-africanista. No início de sua carreira se formou em economia, mas logo enveredou para o teatro, para a militância política e para os movimentos de temáticas étnico-raciais. Sua militância contra o regime autoritário do Estado Novo lhe rendeu dois anos de prisão na Penitenciária do Carandiru, em São Paulo. Lá fundou o Teatro do Sentenciado, grupo que reunia detentos para formular espetáculos que tematizavam a questão do encarceramento e a do racismo. Em 1944, fundou o Teatro Experimental do Negro, com o intuito de introduzir pela primeira vez no teatro brasileiro a presença de atores negros através da afirmação da cultura negra e da experiência de vida dos negros no Brasil. Com o golpe militar de 64, Abdias foi forçado a sair do país, passando seus treze anos de exílio entre os EUA e a Nigéria, locais nos quais desenvolveu extensa produção de livros, pinturas e onde trabalhou como professor em diversas universidades. 

Em O Genocídio do Negro Brasileiro, texto redigido como contribuição ao Colóquio do II Festival Mundial de Artes e Culturas Negras e Africanas (Festac), sediado na Nigéria em 1977, Abdias expõe e explora os mitos e temas correntes acerca da presença negra e das relações raciais no Brasil. Originalmente a obra se intitulava  Racial Democracy in Brazil: Myth or Reality, e foi publicada no Brasil em 1978. Nesta obra de tom crítico, propositivo e analítico, os principais motes de seu estudo são a desconstrução do mito de democracia racial e a análise do genocídio sociocultural, físico e material que assola a população negra do Brasil. Nascimento incide sua crítica contra o que chama de “mística racista”, que visa invisibilizar o genocído físico e espiritual do negro através de uma ideologia que interpreta a miscigenação, o casamento interracial e a ausência de políticas segregacionistas explícitas no Brasil como uma prova da convivência harmoniosa entre negros e brancos, e não como recursos capazes de implementar um pacto de embranquecimento a nível nacional. Seus questionamentos apontam no sentido de uma revisão histórica da formação política e social brasileira, de modo a destacar a presença afrobrasileira na sociedade, desmascarar os mitos que perpetuam o racismo colonial, construir outros horizontes de ação para o povo negro e, com isso, implementar uma radical transformação da condição do negro no país através de políticas de afirmação e de reparação histórica.

Negritude: usos e sentidos (1988)

De Kabengele Munanga

Kabengele Munanga. Negritude: usos e sentidos. São Paulo: Ática, 1988.

Kabengele Munanga nasceu na República Democrática do Congo, em 1940, e em 1985 naturalizou-se brasileiro. Graduou-se em Antropologia Social e Cultural pela Universidade Oficial do Congo, onde também iniciou sua carreira acadêmica, lecionando. Estudou na Universidade Católica de Louvain e especializou-se em estudo das artes africanas tradicionais no Museu Real da África Central, ambas instituições belgas. Entre 1975 e 1977, finalizou seu doutorado na área de Antropologia Social, na Universidade de São Paulo, onde foi professor efetivo entre 1980 e 2012, quando aposentou-se como professor titular, tendo atuado principalmente nas áreas de Antropologia da África e da População Afro-brasileira. Antes disso, também lecionou em diversas universidades no exterior. Kabengele Munanga possui uma vasta quantidade de obras publicadas, entre textos, artigos e livros, dentre os quais pode-se mencionar Negritude: Usos e Sentidos (1988), Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: Identidade nacional versus identidade negra (1999) e Origens Africanas do Brasil Contemporâneo (2009).

Em Negritude: usos e sentidos, Kabengele Munanga aborda a temática da Negritude explicitando a complexidade interpretativa acerca do tema que, ao longo de seis capítulos, é explorado junto da construção identitária do Brasil e do histórico da colonização. Temáticas como a relação entre a luta de classes e a luta racial, os mitos raciais de superioridade branca e a opressão também são abordadas. O autor considera nessa obra que o conceito de identidade é extremamente amplo, incluindo aspectos históricos, psicológicos, linguísticos, culturais, político-ideológicos e raciais. Assim, a Negritude é definida como o sentimento comum e secretamente unificador de todos os indivíduos negros do mundo, o que os leva a convergir a uma identidade também comum. O livro traz reflexões essenciais para o entendimento da formação identitária brasileira, bem como para a compreensão da conformação política, social, econômica e cultural do Brasil.

O Espetáculo das raças (1993)

De Lilia Schwarcz

Lilia Moritz Schwarcz. O espetáculo das raças. São Paulo, 1993.

Lilia Moritz Schwarcz é graduada em História pela USP, mestra em Antropologia Social pela Unicamp e doutora em Antropologia Social pela USP. Além de professora titular da USP, Lilia também atua como colunista do Nexo Jornal e como curadora adjunta do Masp. Escritora prolífica, Lilia publicou diversas obras resultantes de suas pesquisas sobre relações raciais no Brasil, marcadores de diferença, antropologia das populações afro-brasileiras, história do Brasil Império e antropologia visual. Dentre seus escritos mais importantes, destacam-se As Barbas do Imperador (1998, ganhador do prêmio Jabuti na categoria Biografia e Livro do Ano); O Espetáculo das raças (1993); Brasil: uma biografia (2015, em parceria com Heloisa Murgel Starling); Lima Barreto triste visionário (2017, Prêmio APCA); Dicionário da escravidão e da liberdade (2018, com Flávio Gomes); Sobre o autoritarismo brasileiro (2019). 

Em O espetáculo das raças, Schwarcz  se debruça sobre as vicissitudes do discurso racial no Brasil no período de 1870 a 1930. Uma das preocupações centrais da elite intelectual brasileira no final do século XIX era a questão da miscigenação racial. Com o advento das ideias materialistas, naturalistas e evolucionistas que chegaram ao país por essa época, pensar os destinos do Brasil em termos raciais tornou- se uma peça fundamental da agenda política, pois, segundo o darwinismo social que então se defendia no exterior, uma nação constituída por um povo miscigenado estaria fadada ao fracasso civilizatório e seria incompatível com o progresso. Neste contexto, Lilia aborda como se deu a recepção, adaptação e implementação das teorias “raciológicas” no Brasil. Passando em revista as publicações e formulações acerca dessa questão, a autora investiga como institutos históricos e geográficos, faculdades de direito, faculdades de medicina e museus etnográficos criaram teorias raciais de acordo com a especificidade brasileira. Por meio dessas instituições e dos chamados “homens de sciencia”, um tipo de interpretação social foi disseminado e cristalizado. Esse pensamento projetava um plano de “depuração” da nação brasileira através da miscigenação e do embranquecimento da população.

Racismo estrutural (2019)

De Silvio de Almeida

Silvio de Almeida. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen Livros, 2019.

Silvio Luiz de Almeida (São Paulo, 1976) é advogado e mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É também graduado em Filosofia e doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Como escritor, costuma trabalhar em sua obra com conceitos de autores como Sartre e Lukács e com questões sobre minorias e desigualdades sob a perspectiva jurídica, discutindo o “ativismo judicial”, o papel dos poderes nessa área e a atuação das polícias. Além de lecionar em cursos de graduação e pós-graduação de Direito, preside hoje o Instituto Luís Gama, que tem por objetivo a defesa dos direitos e garantias fundamentais dos negros e das minorias no Brasil.

“Racismo Estrutural”, de Silvio Almeida, é um livro de 2019 que integra a coleção “Feminismos Plurais”, coordenada pela filósofa e escritora Djamila Ribeiro. No livro, Silvio Almeida parte do conceito de “racismo institucional”, apresentado pela primeira vez nos anos 1970,por Kwame Turu e Charles Hamilton, no livro “Black Power”, em que o racismo é visto não como uma ação individual de motivações pessoais, mas como um elemento infiltrado na cultura e nas instituições. A partir disso e através de dados estatísticos, Silvio Almeida discute como o racismo está na estrutura social, política e econômica da sociedade brasileira.

Uma história feita por mãos negras (2021)

De Beatriz Nascimento

Beatriz Nascimento. Uma história feita por mãos negras. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

Beatriz Nascimento nasceu em 1942 em Aracaju, Sergipe, mas ainda criança fez o caminho de milhões de nordestinos e migrou com a família para o Rio de Janeiro, local onde se graduou no curso de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pela Universidade Federal Fluminense, concluiu sua pós-graduação, estudando Sistemas alternativos organizados pelos negros: dos quilombos às favelas. Historiadora, professora, poeta, pesquisadora, militante do movimento negro e feminista, Beatriz é uma das principais vozes insurgentes a pautar a relevância de se trabalhar a história do negro no Brasil. Suas formulações teóricas, bem com sua participação no movimento negro, ajudaram a formar trincheiras de classe e de raça durante a ditadura militar e mesmo durante a redemocratização. Seus artigos foram pioneiros em pautar a temática negra de um ponto de vista não embranquecido dentro da academia. Seus escritos versam sobre territorialidade e corporeidade, com acento especial para as questões em torno da mulher negra, da continuidade da experiência da população negra no país e nas formas de organização territorial alternativas, denominadas quilombos. Além de artigos, Beatriz contribuiu como sua voz, pensamentos e ideias para a feitura do filme Ori (1989), no qual nos apresenta uma narrativa histórica e poética de sua vivência, que denomina transatlanticidade, e nos traz, também, uma abordagem profunda do significado do fenômeno do quilombo em África e no Brasil. 

A obra Uma história feita por mãos negras é uma reunião dos principais artigos, ensaios, resenhas e outros textos de Beatriz Nascimento produzidos entre os anos de 1974 e 1994. Além de abordar aspectos biográficos da historiadora, o livro traça o percurso intelectual de Beatriz, abarcando temas como a recusa da interpretação historiográfica brasileira – que retratava o negro apenas no papel de escravo – e sua luta pela construção de uma história do negro que fosse escrita por mãos negras, a partir das experiências e óticas negras. Seus textos falam sobre a contribuição do negro para na construção da sociedade brasileira, afirmam a especificidade do racismo como uma dimensão existencial especial que não pode ser reduzida e nem plenamente explicada pelos fatores econômicos, abordam a condição da mulher negra no mercado de trabalho e no campo afetivo, e, sobretudo, lançam interpretações originais a história dos quilombos. Neste ponto em particular, Beatriz retraça a experiência do Kilombo da África angolana até sua manifestação no Brasil colônia, lendo-o como um marco de resistência e organização negra. Relata-nos a autora que essa configuração social e territorial alternativa teve o mérito de criar um outro estado de coisas em meio ao regime colonial, no qual a história e a identidade africana puderam ser preservadas e reinventadas, constituindo-se como ponto vital e referencial máximo da experiência negra no Brasil.  


Curadoria

One Comment

  1. Obrigado pelo artigo. Muito bacana. Só achei a ausência de “A integração do negro na sociedade de classes”, de Florestan Fernandes, uma lacuna irreparável.

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