A partir do fim da década de 1860 os bondes, ainda movidos por tração animal, começaram a se multiplicar no Rio de Janeiro. Desde então, muitas empresas se constituiram para explorar o negócio. Em crônica publicada em 1883, Machado de Assis atesta o sucesso desse meio de transporte coletivo “essencialmente democrático”. Com sua inconfundível ironia, o cronista Machado divulga dez de setenta artigos que regulamentariam o convívio entre os passageiros dos bondes. Por trás do efeito cômico que os artigos da crônica produzem lê-se o olhar agudo do grande escritor sobre a sociabilidade brasileira. O que faz rir nesses artigos, dos leitores contemporâneos de Machado aos de hoje, é a familiaridade com esses pequenos absurdos cotidianos. Feitos pequenos ajustes, o “puro capricho dos passageiros”, ou, em outras palavras, o desrespeito a acordos mínimos de convivência com o outro ainda prospera em nosso convívio social. Os comportamentos sociais que as regras indicam seriam óbvios demais para virarem normas e ao mesmo tempo parece ser regra vê-los desrespeitados cotidianamente.
Ocorreu-me compor umas certas regras para uso dos que frequentam bondes. O desenvolvimento que tem tido entre nós esse meio de locomoção, essencialmente democrático, exige que ele não seja deixado ao puro capricho dos passageiros. Não posso dar aqui mais do que alguns extratos do meu trabalho; basta saber que tem nada menos de setenta artigos. Vão apenas dez.
ART. I Dos encatarroados
Os encatarroados podem entrar nos bondes com a condição de não tossirem mais de três vezes dentro de uma hora, e no caso de pigarro, quatro. Quando a tosse for tão teimosa, que não permita esta limitação, os encatarroados têm dois alvitres: — ou irem a pé, que é bom exercício, ou meterem-se na cama. Também podem ir tossir para o diabo que os carregue. Os encatarroados que estiverem nas extremidades dos bancos, devem escarrar para o lado da rua, em vez de o fazerem no próprio bonde, salvo caso de aposta, preceito religioso ou maçônico, vocação, etc., etc.
ART. II Da posição das pernas
As pernas devem trazer-se de modo que não constranjam os passageiros do mesmo banco. Não se proíbem formalmente as pernas abertas, mas com a condição de pagar os outros lugares, e fazê-los ocupar por meninas pobres ou viúvas desvalidas, mediante uma pequena gratificação.
ART. III Da leitura dos jornais
Cada vez que um passageiro abrir a folha que estiver lendo, terá o cuidado de não roçar as ventas dos vizinhos, nem levar-lhes os chapéus. Também não é bonito encostá-los no passageiro da frente.
ART. IV Dos quebra-queixos
É permitido o uso dos quebra-queixos em duas circunstâncias: — a primeira quando não for ninguém no bonde, e a segunda ao descer.
ART. V Dos amoladores
Toda a pessoa que sentir necessidade de contar os seus negócios íntimos, sem interesse para ninguém, deve primeiro indagar do passageiro escolhido para uma tal confidência, se ele é assaz cristão e resignado. No caso afirmativo, perguntarlhe-á se prefere a narração ou uma descarga de pontapés. Sendo provável que ele prefira os pontapés, a pessoa deve imediatamente pespegá-los. No caso, aliás extraordinário e quase absurdo, de que o passageiro prefira a narração, o proponente deve fazê-lo minuciosamente, carregando muito nas circunstâncias mais triviais, repetindo os ditos, pisando e repisando as coisas, de modo que o paciente jure aos seus deuses não cair em outra.
ART. VI Dos perdigotos
Reserva-se o banco da frente para a emissão dos perdigotos, salvo nas ocasiões em que a chuva obriga a mudar a posição do banco. Também podem emitir-se na plataforma de trás, indo o passageiro ao pé do condutor, e a cara para a rua.
ART. VII Das conversas
Quando duas pessoas, sentadas a distância, quiserem dizer alguma coisa em voz alta, terão cuidado de não gastar mais de quinze ou vinte palavras, e, em todo caso, sem alusões maliciosas, principalmente se houver senhoras.
ART. VIII Das pessoas com morrinha
As pessoas que tiverem morrinha, podem participar dos bondes indiretamente: ficando na calçada, e vendo-os passar de um lado para outro. Será melhor que morem em rua por onde eles passem, porque então podem vê-los mesmo da janela.
ART. IX Da passagem às senhoras
Quando alguma senhora entrar, o passageiro da ponta deve levantar-se e dar passagem, não só porque é incômodo para ele ficar sentado, apertando as pernas, como porque é uma grande má-criação.
ART. X Do pagamento
Quando o passageiro estiver ao pé de um conhecido, e, ao vir o condutor receber as passagens, notar que o conhecido procura o dinheiro com certa vagareza ou dificuldade, deve imediatamente pagar por ele: é evidente que, se ele quisesse pagar, teria tirado o dinheiro mais depressa.
Publicado originalmente na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 04/07/1883.
Quais são as regras para os encatarroados?