“O conjunto de histórias, de lendas, de tradições que aqui apresentamos se denomina em língua Maué — CEHALPÓRI. Alguns dos símbolos que o PORANTIN ou REMO MÁGICO nos mostra são representações mnemônicas dessas e de outras lendas, tradições e histórias que não podemos recolher totalmente.”
Pereira, Manoel Nunes. Os índios Maués. Rio de Janeiro: Organização Simões, 1954, p. 165.
Origem dos bichos – Povo Sateré Mawé
No princípio do mundo todos os bichos eram gente como os Maués.
E, assim que os Muricariua fizeram tarubá do cadáver de Iveroi, filha do Grande Tuxaua das Onças, os que eram gente e hoje são bichos resolveram fazer uma Dança da Tocandira.
O hêté-uacôp, encarregado de convidar gente para a festa, era casado.
Então, este falou à mulher.
— Olha, mulher. Amanhã vamos para a Dança da Tocandira. Vai haver muito çapó e muito tarubá. E muita gente, muita.
Naquele tempo, ainda o convidado estava longe da casa da festa e já os donos iam encontrá-lo no caminho — levando-lhe um bom tarubá.
Nesse dia, porém, a mulher dele disse que estava incomodada (tupê-huá-nei), só para o enganar.
Então, o hêté-uacôp encarregou a cunhada de levar os enfeites dele para a casa da festa.
Logo que a mulher do hêté-uacôp viu que o seu homem havia saído, correu até o mato, apanhou caroços (poi-nhan-ahe) de inajá, quebrou-os, tirou-lhes os bichos de dentro e passou-os no cabelo como óleo.
E, correndo por outro caminho, dirigiu-se para a casa da festa, a fim de lá chegar antes do marido.
Ao chegar o hêté-uácôp, à frente dos convidados, no sítio onde costumava demorar-se, ali lhe contaram que a mulher dele já tinha chegado havia muito tempo.
O hêté-uácôp disse que não era possível, porque a mulher ficara em casa incomodada… que deveria ser outra parecida com ela.
Mas quem lhe contou isso teimou em afirmar que era a mulher do hêté-uácôp que estava na casa da festa.
Então o hêté-uácôp transformou-se num pequeno pássaro e foi até a casa da festa, ver se a mulher lá estava como diziam.
E estava mesmo, dançando com o seu namorado.
O hêté-uácôp saiu da casa da festa zangado e, ao encontrar os seus convidados, disse que naquela noite ia acontecer muita coisa ruim, por isso todos eles não o deviam abandonar e estar alerta aos toques (aitócan) da sua buzina, que eram diversos.
Um deles ora soava baixo, ora agudo, ora longo.
Têrêrêrê!… têrêrêrê!… têrêrêrê!…
Ten! Ten! Ten! Ten! Ten! Ten!
Foi em seguida conversar com o raio, com o trovão e com a chuva.
Os convidados foram sozinhos para a casa da festa.
Caiu, pouco depois, sobre a terra dos Maués um temporal feio, prendendo toda a gente dentro da casa da festa, enlameando e sujando de galhos e de folhas o terreiro.
De repente o hêté-uácôp apareceu na casa da festa e bateu na mulher, bateu, bateu, bateu, puxando-lhe por fim o nariz.
A mulher era gente, mas virou logo tamanduá-bandeira.
Com a buzina o hêté-uacôp deu no namorado dela, puxando-lhe o nariz também. Por isso ele virou anta, ficando com o focinho comprido.
Deu na cunhada, que virou tamanduá-y.
Deu num dos seus convidados e este virou veado (anhian-hop-wató).
E, porque fugiu pela porta, ficou com os quartos largos.
Deu com a buzina noutro convidado e este virou (amanhéri), fugindo, às cegas, através da parede de palha, por isso não tem carne na bunda.
Nessa noite todos os convidados que ali estavam, viraram bichos.
A velha que ralava guaraná (Téeêpéé), ao fugir para o terreiro com a cuia, a pedra de ralar (ué-y) e a bola de guaraná (uaraná-pé-ahá), virou jaboti. A cuia é o casco, o coração é um pedaço de guaraná e o peito é a pedra.
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Pereira, Manoel Nunes. Os índios Maués. Rio de Janeiro: Organização Simões, 1954, p. 116-119.
Sobre os Sateré Mawé
Os Sateré Mawé são um povo de língua da família Tupi, habitantes da região do médio rio Amazonas. São amplamente conhecidos por terem sido os inventores da cultura do guaraná ao domar a trepadeira da qual nasce esta fruta, ou seja, foram os primeiros a cultivá-la. Ademais, o ritual de passagem denominado A Festa da Tocandira, na qual jovens se tornam homens após aguentarem dezenas de picadas de formigas tocandiras, também é bastante famoso.
Para saber mais sobre os Sateré Mawé, acesse: Sateré Mawé – Povos Indígenas no Brasil (socioambiental.org)
Sobre a narrativa
A narrativa é interessante uma vez que representa parte da cosmologia Sateré Mawé do princípio do mundo. Nesse mundo indígena, nota-se a falta de distinção entre seres humanos e animais, indicando um princípio de igualdade que abrange até mesmo o mundo vegetal, como se percebe na transformação do guaraná no coração do jabuti.
Além disso, mostra a forte relação dos Sateré Mawé com o guaraná, planta nativa do território indígena que, de forma ancestral, passa por um processo de preparo para seu consumo, resultando no çapó. De fato, conforme visto na narrativa, o guaraná, em bola ou bastão, é ralado por uma mulher em uma pedra, depois sendo misturado com água dentro de uma cuia para formar a bebida. Como elemento sagrado, o çapó é uma bebida dividida entre as pessoas presentes.
Por meio dessa narrativa, é possível perceber elementos da cosmologia Sateré Mawé ainda presentes na atualidade, indicando a importância da conservação e divulgação de textos como estes para compreender sua história. Na mostra de aspectos ancestrais em continuidade, esclarece-se a relação da comunidade indígena com a natureza essencial para a organização de seu modo de vida.
Narrativas ameríndias no Blog da BBM
Encontram-se dispersas pelo acervo BBM muitas narrativas que, desde o século XVI, foram contadas por pessoas indígenas a viajantes, missionários, naturalistas, etnólogos, linguistas etc. Essas narrativas estão presentes em livros e periódicos originalmente publicados em português, inglês, francês, alemão, italiano e espanhol. As informações a respeito dessas narrativas variam muito e vão de casos em que sequer o povo do narrador é identificado até publicações em que as narrativas foram documentadas nas próprias línguas indígenas.
Nesta série de postagens Narrativas ameríndias, resgatamos e compartilhamos uma seleção dessas histórias, que ajudam a contar como os povos originários que viviam e vivem no Brasil pensam e exprimem o mundo ao seu redor.Essa iniciativa do Blog da BBM faz parte de um projeto mais amplo, chamado Livros da floresta, cujos objetivos principais são mapear livros e outras produções bibliográficas produzidas por autoras e autores indígenas, obras em línguas indígenas (de autoria indígena ou não) e documentos que registram memórias sobre os povos habitantes no Brasil e nos países vizinhos. O projeto pretende também, e sobretudo, estabelecer contatos com as populações diretamente concernidas por essas obras e convidá-las a tomar parte nas ações relacionadas a esse acervo.
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Gabriela Lourenço Fernandes é graduanda em Letras (Português/Japonês) pela FFLCH-USP e estagiária da BBM. Susan Gabriela Huallpa Huanacuni é graduanda em Ciências Sociais pela FFLCH-USP e bolsista da BBM pelo Programa Unificado de Bolsas (PUB 2023-2024). Ambas fizeram a transcrição e apresentação da narrativa.