As ambiguidades do Brazil Pittoresco, de Victor Frond e Charles Ribeyrolles

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por Matheus Gabriel Castro Brito

Dois franceses com a missão de produzir uma propaganda sobre o Brasil

Em 1856, o francês Victor Frond (1821-1881) desembarcou no Rio de Janeiro. Anos antes, em 1852, ainda na França, havia agido em prol de movimentos políticos republicanos, o que acarretou em sua prisão, seguida de exílio. Frond passou então pela Argélia, Inglaterra e Portugal antes de finalmente se estabelecer no Brasil. Em sua passagem pela antiga metrópole teria aprendido o ofício de fotógrafo e veio ao Brasil para praticá-lo. No início do ano seguinte à sua chegada, Frond inaugurou, com o patrocínio do Imperador D. Pedro II, um dos primeiros ateliês de fotografia do Rio de Janeiro. Tal empreendimento possuía, inicialmente, um projeto editorial encaminhado, a Galeria dos Brasileiros ilustres, que reunia fotos do Imperador e de outros membros da elite política e econômica brasileira. No entanto, esse projeto ficou sob a responsabilidade do litógrafo francês Sébastien Auguste Sisson (1824-1898), o que abriu espaço para que Frond pudesse se dedicar a uma nova investida: a elaboração de um livro-álbum que levaria o título de Brazil Pittoresco.

Página de rosto de Brazil Pittoresco, 1861

Brazil Pittoresco foi essencialmente uma obra de divulgação do Império Brasileiro e da elite agrária, patrocinada por D. Pedro II, com a finalidade de atrair imigrantes europeus para o trabalho assalariado na lavoura. Para isso, o livro-álbum foi composto de maneira estratégica por 75 fotografias que exibiam quatro pontos principais do Brasil: a família imperial, a urbanização (principalmente na cidade do Rio de Janeiro), as paisagens naturais e a economia (fazendas cafeeiras do interior da província do Rio de Janeiro, baseadas no trabalho escravo). Para além dessas imagens, a obra também contém diversos textos, distribuídos em 3 tomos, que tratam da história do Brasil, descrevem algumas cidades da província do Rio de Janeiro e detalham a organização política e econômica do Império. Para a composição da obra, Frond ficou responsável pelas imagens mas, na elaboração da parte escrita, convidou seu conterrâneo, Charles Ribeyrolles (1812-1861). Ribeyrolles era um jornalista defensor ferrenho do republicanismo, chegando a ser, em 1848, redator-chefe do jornal La Réforme, importante meio de oposição à monarquia francesa. No entanto, após conflitos entre diferentes grupos políticos franceses em 1849, Ribeyrolles exilou-se também na Inglaterra, onde se aglutinou com diversos outros aliados. Viveu em situação de pobreza até meados de 1858, quando recebeu o convite de Frond para partir ao Brasil e participar da redação do Brazil Pittoresco.

Panorama do Rio de Janeiro, Brazil Pittoresco

O desenvolvimento urbano e a exuberância tropical

O livro-álbum evidencia quatro eixos temáticos que serviram como ferramentas de divulgação do império para o público nacional e estrangeiro, abarcando temas como a urbanização, paisagens naturais, economia e retratos da família imperial. O álbum tem início com uma imagem do Imperador (o mecenas da obra), sua esposa e filhas. Em seguida, Frond passa a imagens panorâmicas da cidade do Rio de Janeiro, colocando em evidência a arquitetura e a urbanização da capital do Império, muito inspirada em modelos europeus daquilo que constituía uma cidade “civilizada” no século XIX.

Durante aquele período do Império, a lavoura crescia rapidamente e cada vez mais precisava-se de mão de obra no campo, sobretudo assalariada, pois o fim da escravidão já se anunciava. Para isso, o livro-álbum foi utilizado como forma de propaganda para atrair imigrantes estrangeiros, essencialmente vindos da Europa. Em mais de vinte imagens, o álbum registra cenas urbanas, principalmente do Rio de Janeiro, mas também de Salvador. O objetivo parace ser revelar o avanço econômico e cultural do país como um todo. Do Rio de Janeiro, vemos vários exemplos de desenvolvimento arquitetônico e urbanístico e um porto movimentado, evidenciando o poder comercial do Império.

Panorama do Rio de Janeiro, Brazil Pittoresco

Em paralelo aos aspectos urbanos demonstrados na imagem acima, Frond também ressalta as belezas naturais que o Brasil possui: cerca de 15 imagens destacam a exuberância da natureza tropical, seja isolando-a de contextos urbanos, seja apresentando uma combinação harmônica entre cidade e natureza.

Cascata de Itamarati em Petrópolis, Brazil Pittoresco
A pedreira no Rio de Janeiro, a partir de São Cristóvão, Brazil Pittoresco

A escravidão normalizada e seus perigos

Há ainda no álbum cerca de 30 imagens que abordam aspectos econômicos do Império, com destaque para a agricultura cafeeira e o regime escravista. No entanto, neste recorte temático, pode-se inferir uma ambiguidade na construção do álbum. Conhecendo brevemente a história dos autores e suas aspirações políticas na França, fica claro que, a partir da oscilação das ideias políticas dos autores, existe um apaziguamento dos tons mais radicais de sua ideologia, e com isso uma retração dos ideais republicanos e abolicionistas dos autores. Afinal, eles passaram a viver num Império escravista e trabalhar para ele.

Trabalhadores na roça, Brazil Pittoresco

A maneira como a escravidão é apresentada no Brazil Pittoresco salta aos olhos de qualquer observador minimamente atento. Isso porque a escolha para a montagem dos cenários das fotografias de Frond não questiona minimamente a realidade daqueles que serviram como espinha dorsal do Império: os escravizados são representados como integralmente parte da sociedade, trabalhando daquela maneira pois “assim as coisas são”, ou seja, o álbum acaba por servir como instrumento de normalização do regime escravista, demonstrando-o como apenas mais um sistema completamente normal dentro do funcionamento da sociedade brasileira, igual a qualquer outro e, portanto, não violento. Isso é feito de maneira sútil, por exemplo ao colocar pessoas escravizadas em cenas cotidianas, como em momentos de alimentação, descanso do trabalho compulsório e se organizando para partirem para o campo.

Negras depois do trabalho; Trabalhador do mato (floresta)

É importante lembrar não somente das imagens, mas também das interpretações escritas de Brazil Pittoresco. No decorrer da parte escrita, Ribeyrolles também apresenta de maneira atenuada e simpática a questão dos escravizados, corroborando com as imagens de Frond ao dispensar a figura do homem branco e deixar explícito a solitude e dignificação do campesinato imperial, de modo que, mais uma vez, a empresa escravista fosse apenas mais um componente comum da sociedade imperial.

O almoço tem então lugar. O feijão cozido com gordura e misturado com farinha é distribuído em cuias. Repousam 1/2 hora em torno da refeição. Em certas fazendas concedem-se alguns minutos para o cachimbo; porém em todas dentro de uma hora recomeça o trabalho. O feitor chama suas esquadras à forma, e a capina ou a colheita principia, conforme as culturas e estações. O jantar é das duas as três horas: feijão e angu, como na primeira comida eis o ordinário dos negros. Porém desta vez permite-se-lhes uma estirada sesta, e não voltam ao serviço senão ao depois de 1/2 hora, permanecendo nele até a noite. Ao pôr do sol, volta à habitação, e, passada a revista pelo feitor que conta as cabeças, a ceia termina o dia.

(Brazil Pittoresco, tomo 3, p. 42)
O almoço na roça

Afonso de Taunay, escritor e historiador brasileiro, comentou num dos prefácios do livro de Ribeyrolles que o autor estaria cansado de lutar e, pela boa recepção, passou a exprimir comentários alienados e românticos sobre o Brasil, mesmo não esquecendo sua amada França. Dessa maneira, é válido destacar que a mudança nos apontamentos de Ribeyrolles é clara, mas em grande parte da obra é evidente o olhar minimamente questionador, mesmo que de forma atenuada:

Na verdade, as condições eram favoráveis; o tráfico desenvolveu-se e produziu bastante. O Brasil deve muito a seus negros.

Ao princípio os aventureiros paulistas, investigadores infatigáveis, descobriram a maior parte das minas brasileiras; mas quem cavou as terras, quem abriu as galerias, deu novo curso de torrentes, lavou as arcas das águas, e achou diamante e ouro ? Os negros.

As tribos indígenas foram deslocadas pelos colonos proprietários, de selva em selva, de monte em monte; mas quem limpou as terras, pôs o chão em cultura? quem semeou, plantou, colheu? Os negros.

Quem faz ainda hoje esses trabalhos do campo tão penosos e rudes em plena zona tórrida? quem trabalha nas máquinas, nos moinhos, nos portos, nas estradas? Os negros.

Nas chácaras, nas fazendas, nas casas burguesas ou aristocráticas, nas lojas ou armazéns, nas ruas ou praças publicas das grandes cidades, quem esta incumbido de todos os trabalhos servis e domésticos Os negros.

(Brazil Pittoresco, tomo 3, p. 94)

Posto isso, é necessário ressaltar que, por mais que a obra tenha sido feita como objeto de propaganda de um império já consolidado, ela contém ambiguidades que estão montadas sob uma oscilação político-ideológica dos autores. Justamente por conta das questões levantadas anteriormente, com destaque para como os autores escolhem representar a economia escravista, a análise, ao mesmo tempo que gera um incômodo negativo, pode revelar que algo incomodava os autores e que suas aspirações políticas não haviam sido totalmente soterradas, estando apenas retraídas, por se tratar de uma obra encomendada pela maior figura de poder do Império que os recebeu. Percebe-se que o cenário político em que os autores estavam inseridos afetava na exposição de suas ideias sobre a dinâmica escravista do Império, silenciando críticas profundas e por consequência normalizando a escravidão.

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Matheus Gabriel Castro Brito: é graduando em História pela FFLCH-USP e bolsista da BBM pelo Programa Unificado de Bolsas (PUB-2023-2024).

Curadoria

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