A língua nheengatu enquanto instrumento em prol da civilização em “O selvagem”

Share

“O Selvagem”, de Couto de Magalhães, é um projeto civilizatório e de amansamento das populações originárias do norte brasileiro através de políticas linguísticas com o nheengatu.

por Gabriela Lourenço Fernandes e Susan Gabriela Huallpa Huanacuni

Se, atualmente, são conhecidas mais de 200 línguas indígenas brasileiras, sabe-se que este número era muito maior no século XIX. O nheengatu, proveniente da chamada língua geral amazônica, era (e ainda é) apenas uma das muitas faladas na região norte do país, mas seu nome foi utilizado para fins de generalizações práticas em políticas linguísticas predatórias, principalmente durante o processo de colonização da região. No século XIX, foi ela a língua adotada por algumas propostas de domesticação das populações nativas.

“Domesticar os selvagens ou fazer com que elles nos entendam, o que é a mesma cousa, equivale a fazermos a conquista pacífica de um território quasi do tamanho da Europa, e mais rico do que ella.”

(Magalhães, 1876, p. 8)

Esta é uma das primeiras frases do texto de abertura da obra O selvagem. I. Curso da lingua geral segundo ollendorf, comprehendendo o texto original de lendas tupis. II. Origens, costumes, região selvagem, methodo a empregar pra amansal-os por intermedio das colonias militares e do interprete militar, escrita por José Vieira Couto de Magalhães e publicada em 1876.

Escrito a pedido de D. Pedro II especialmente para a Exposição Universal do Centenário da Independência dos Estados Unidos, na Filadélfia, em 1876, o próprio contexto deixa claro a relevância do autor (que exerceu diversos cargos públicos ao longo da vida) na política. O livro é composto por duas partes, sendo a primeira um material didático para o aprendizado de língua nheengatu, com lições, exercícios e narrativas ameríndias, em sua maioria bilíngues nheengatu-português, colhidas pelo próprio autor durante alguns anos de expedições pelo norte brasileiro incentivadas pelo IHGB (Instituto Histórico Geográfico Brasileiro). Já a segunda parte é nomeada “Origens, costumes e Região Selvagem” e é uma reprodução de sua outra obra “Ensaio de anthropologia: região e raças selvagens”, formando assim uma nova edição, com novos argumentos e cortes, expondo ideias e supostas descrições dos costumes, crenças e aspectos dos indígenas com os quais conviveu, que entretanto são apresentadas de maneira depreciativa, a fim de pensar um projeto de assimilação destes à sociedade não-indígena.

De fato, seguindo a tradição etnográfica do IHGB, Couto de Magalhães escreve sua obra com o intento de atender aos interesses das indústrias de exploração e das políticas de imposição linguísticas aliada à catequização dos ditos selvagens, sendo reconhecido como um grande estudioso a serviço do processo de expansão da fé e da civilização.

Deste modo, o escritor mineiro desenvolve seu trabalho inserido num quadro teórico-ideológico evolucionista e racista que fica evidente de imediato na própria página de rosto da obra. Nela, são expressas o propósito do livro e as opiniões do autor, isto é, uma domesticação pacífica dos indígenas por intermédio da aprendizagem de sua língua, dado que “para o selvagem, aquelle que falla a sua lingua, é um seu parente, portanto seu amigo” (Magalhães, p. 37). Assim, se visava evitar confrontos agressivos tais como conflitos armados ou mortes e, para isso, nada mais efetivo do que “amansar” o “selvagem” combativo para que deixe de ser uma ameaça, evitando perigos e despesas para o mundo branco. Nota-se como é destacada a possibilidade de uso da obra por intermédio das colônias militares, a fim de ensinar-lhes a língua para uma conquista branda do território, ao contrário de demais países do continente americano que, recorrendo aos conflitos, não usufruíram da produtividade do trabalho indígena na economia.

“Conseguir que o selvagem entenda o portuguez, o que equivale a incorporal-o á civilisação, e o que é possível com um corpo de intérpretes formado das praças do exército e armada que fallem ambas as línguas, e que se dissiminarião pelas colônias militares, equivaleria à: 1.° Conquistar duas terças partes do nosso território. 2.º Adquirir mais um milhão de braços aclimados e utilissimos. 3.° Assegurar nossas communicações para as bacias do Prata e do Amazonas. 4.º Evitar no futuro grande effusão de sangue humano e talvez despezas colossaes, como as que estão fazendo outros paizes da America.”

(Magalhães, 1876, Página de rosto).

Logo, é evidentemente uma proposta civilizatória para o Brasil que não se restringe a apenas essa obra específica, mas que é vista também no contexto geral dos fins do século XIX e início do XX. Valendo-se das populações ameríndias como exemplos “fossilizados” de um estágio humano primitivo, o texto segue uma tese evolucionista que centraliza a oposição entre o civilizado e o selvagem, entre o cristão e o pagão, apontando o indígena como preguiçoso e um verdadeiro obstáculo para o desenvolvimento de uma rica parcela do território brasileiro. Como sócio do IHGB, Couto de Magalhães indica em sua obra a construção de um novo modelo de nação, buscando a incorporação civilizatória dos “selvagens” por meio do debate da linguagem vinculada a um certo tipo de projeto de catequese e conquista militar. Assim, em vista da conversão dos não civilizados como dever cristão, deveria-se incorporar os nativos à sociedade, afastando-os para o mais longe possível da barbárie na qual antes viviam: “(…) a missão de levar a religião de paz e caridade através das trevas do mundo pagão” (Magalhães, 1876, p. 32-33).

Sendo este o contexto histórico, social e cultural no qual a obra foi pensada e redigida – escancarando o teor evolucionista do autor e o retrato do Brasil oitocentista -, ao abrir o texto de fato o leitor se deparará com ainda outros tantos exemplos deste pensamento de época. A fins de exemplificação, pode-se olhar a narrativa das páginas 194-195, “As lendas do jabuti: Iauti iuiri iauaraeté: jabuti e a onça, de novo”.

A onça apareceu por ali. A onça olhou para cima e viu o coitado do jabuti, disse assim: — Ó jabuti, por onde tu subiste? O jabuti respondeu: — Por esta árvore de frutas. » A onça, com fome, replicou: — Desça! O jabuti falou assim: Me apare; abra a tua boca para que eu não caia no chão. » O jabuti pulou, foi de encontro ao focinho da onça; morreu a diaba. O jabuti esperou até depois de apodrecer, e tirou sua flauta. Então o jabuti foi-se tocando sua flauta, cantava assim: — O osso da onça é minha flauta — ih! — ih?  »

Magalhães, José Vieira Couto de. O selvagem (…). Rio de Janeiro: Typ da Reforma, 1876, p. 194-195. Reorganzição proposta por Gabriela Lourenço Fernandes.

A importância do que é tratado com desimportância
De imediato salta aos olhos o comentário colocado antes da narrativa, que traz uma espécie de interpretação do autor à la fábula europeia para a história ameríndia. Induzido, quem sabe, por uma ligeira semelhança de personagens onça-jabuti e raposa-tartaruga, o comentário visa facilitar a compreensão da narrativa pelo público da época, acostumado apenas aos contos da Europa e seus agentes e ações definidos estrategicamente para que haja uma moral explícita ao final. No entanto, olhando de outra maneira, o comentário acaba por fazer mais mal do que bem, ao que enviesa a leitura antes mesmo dela ocorrer, levando o leitor a juízos de valor criados de antemão e baseados unicamente na opinião do autor. Além disso, a presença dessa pequena análise somada com a clara e extensa interferência de Magalhães nas supostas “transcrições” das narrativas (nem ao menos se sabe se estes são os textos originais ou não; o quanto foi modificado ou não), descarta qualquer possibilidade de compreensão através da visão original, indígena: não fica claro se o autor chegou a compreendê-la verdadeiramente nem se essa interpretação definida existe de fato na cultura de partida. Assim, os padrões europeus em demasia impossibilitam ao autor, ao leitor do passado e ao do presente, a compreensão e acesso ao texto em todas as suas cores ameríndias.

O mesmo vale para as escolhas de tradução do texto em português, por vezes questionáveis, como ocorre em um momento desta narrativa: a palavra “Jurupari” designa o nome próprio de uma figura mítica legisladora, concebido sem cópula e que veio mandado pelo Sol para reformar os costumes da Terra e, assim, encontrar uma mulher perfeita para se casar com aquele que o havia enviado. Sobre essa figura, diz o etnógrafo italiano E. Stradelli, que nos anos 1920 publicou um Vocabulário Português-Nheengatu, Nheengatu-Português:

“Quando ele apareceu, eram as mulheres que mandavam e os homens obedeciam, o que era contrário às leis do Sol. Ele tirou o poder das mãos das mulheres e o restituiu aos homens, e, para que estes aprendessem a ser independentes daquelas, instituiu umas festas em que somente os homens podem tomar parte e uns segredos que somente podem ser conhecidos por estes (…)”. Depois, a respeito da origem do nome, o texto explica: “Nada disso, o nome de Jurupari quer dizer que fez o fecho da nossa boca. Vindo portanto de iuru, boca, e pary, aquela grade de talas com que se fecham os igarapés e bocas de lagos, para impedir que o peixe saia ou entre. Explicação que me satisfaz, porque de um lado caracteriza a parte mais saliente do ensinamento de Jurupari, a instituição do segredo (…).

Stradelli, E. Vocabulário Português-Nheengatu, Nheengatu-Português / E. Stradelli; Revisão Geraldo Gerson de Souza. – Cotia, SP. Ateliê Editorial, 2004, p. 395.

Possuindo tal contexto, fica claro que ao traduzir “Jurupari” por “diaba” (em um feminino também fora de local), Magalhães baseia-se numa interpretação extremamente simplista e errônea, infelizmente também impossibilitando que o leitor que desconhece o nheengatu compreenda de fato quem é essa figura e o que ela representa.

Ainda assim, apesar das muitas mudanças e incertezas, a narrativa enquanto forma de pensamento e expressão ameríndia permanece, e hoje se apresenta aos leitores não indígenas de duas maneiras: da maneira como se apresentava para o público dos fins do século XIX e a maneira como pode se apresentar para o do presente. Logo, enquanto o leitor do passado olharia para ela guiado e concordando com a visão de Magalhães, o leitor do presente, se for capaz de distinguir aquilo que é a visão do autor daquilo que é originalmente a visão da cultura de partida, ou seja, se capaz de atravessar as barreiras através das quais o conteúdo é apresentado (ou seja, o viés pessoal do autor, a visão da época de escrita e os próprios preconceitos internalizados do leitor, etc.) para cravar seu olhar no conteúdo em si, tem a possibilidade de lê-la com um viés mais próximo da expressão original e, portanto, reagindo criticamente ao referencial apresentado na obra, sem negar a importância de suas iniciativas.

Pode-se pensar, por exemplo, na presença da flauta: chamada por Magalhães de m?my, mas mais comumente memby, não ganha muito destaque na versão em nheengatu e muito menos na em português (sendo chamada pelo nome generalizante de “flauta”), e é “explicada” apenas pela nota de rodapé do autor. Entretanto, é um instrumento tradicional simbólico e ritualístico, feito do osso da tíbia de veados, onças e até mesmo humanos, e representa uma espécie de troféu de guerra ou de caça. Assim, pela importância tremenda que demonstram, a força desses elementos culturais resistem ao tempo, às alterações e até mesmo ao desinteresse.

Desta maneira, fica claro como o leitor do presente tem a possibilidade de olhar para essas narrativas com enfoque naquilo que, apesar das mudanças, dos juízos de valor, etc., ainda permanece de originário: são esses os elementos que demonstram a força dessas histórias, a visão ameríndia da qual vieram. É assim que se justifica também a importância de obras-compilações como “O Selvagem” que, apesar dos pesares, são registros históricos permeados por conhecimentos indígenas (presentes tanto nas narrativas registradas mas também expressas na própria língua nheengatu que o livro busca ensinar) que sobrevivem independentemente dos juízos de valor que os cercam. Por mais questionáveis que possam ter sido suas épocas de publicação, permanecem documentos preciosos, ainda mais diante da falta de materiais deste tipo no período.

Referências

Magalhães, Jose Vieira Couto de. O selvagem. I. Curso da lingua geral segundo ollendorf, comprehendendo o texto original de lendas tupis. II. Origens, costumes, região selvagem, methodo a empregar pra amansal-os por intermedio das colonias militares e do interprete militar / por Couto de Magalhães. Rio de Janeiro: Typ da Reforma, 1876.

Stradelli, E. Vocabulário Português-Nheengatu, Nheengatu-Português / E. Stradelli; Revisão Geraldo Gerson de Souza. – Cotia, SP. Ateliê Editorial, 2004.

____________________

Gabriela Lourenço Fernandes é graduanda em Letras (Português/Japonês) pela FFLCH-USP e estagiária da BBM. Susan Gabriela Huallpa Huanacuni é graduanda em Ciências Sociais e bolsista da BBM pelo Programa Unificado de Bolsas (PUB-2023-2024).

Curadoria

Deixe um Comentário

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.