Los Sertones: a obra de Euclides da Cunha pelo tradutor argentino Benjamín de Garay

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por João Paulo Panucci Gomes Rosa

Os sertões, de Euclides da Cunha, é a obra que aparece com mais frequência no acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin quando o assunto é literatura brasileira traduzida ao espanhol.  São cinco livros catalogados, sendo três publicações de Buenos Aires, uma de Caracas e outra de Madri. O marco temporal vai de 1938 a 1981, considerando que as mais recentes, respectivamente de 1980 e 1981, são justamente aquelas publicadas fora da cidade portenha.  As traduções argentinas datam de 1938, 1946 e 1951, e as duas primeiras são de Benjamín de Garay. Além dessas últimas, a edição espanhola também é a tradução do argentino, o que nos leva a considerar a sua importância no contexto da tradução do clássico euclidiano. 

Benjamín de Garay

Nascido em 1875, o jornalista e editor argentino Benjamín Bertoli Garay foi importantíssimo no cenário da tradução de obras em língua portuguesa na Argentina da primeira metade do século XX, sendo célebre em seu país pelas traduções de reconhecidos clássicos brasileiros, como Monteiro Lobato, Graciliano Ramos, Gilberto Freyre e Euclides da Cunha. Filho de um militar brasileiro, o tradutor residiu por um tempo considerável em São Paulo e no Rio de Janeiro em períodos variados, daí sua ligação afetiva e pessoal com a cultura brasileira e a língua portuguesa.

Outrossim, é interessante notar que Garay foi um tradutor ativo, deixando em paratextos algumas observações sobre o próprio labor da tradução, o que pode ser visto na edição argentina de Os sertões de 1938 e na tradução que fez de Casa-Grande e Senzala, em ambos os casos aparece como prólogo, explicando e introduzindo detalhes da tradução. Na segunda edição em língua espanhola da obra do intelectual pernambucano, datada de 1943, o próprio escritor alude, na introdução, à importância do tradutor argentino, em ocasião de seu recente falecimento.

Além disso, o tradutor correspondeu-se com notáveis intelectuais brasileiros da época. Constam, por exemplo, dezoito cartas trocadas entre o argentino e o escritor Graciliano Ramos, como pode ser visto no livro organizado por Pedro Moacyr Maia em 2008, intitulado Cartas inéditas de Graciliano Ramos a seus tradutores argentinos Benjamin de Garay e Raúl Navarro,uma edição fac-símile das missivas.

De acordo com Lygia Schmitz, nessas correspondências, Graciliano Ramos promovia as obras de escritores nordestinos de seu período, como José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Jorge Amado, estabelecendo ele mesmo a conexão entre o tradutor argentino e esses outros escritores importantíssimos da segunda fase do modernismo brasileiro. Também comenta com o tradutor a respeito de sua produção literária, como o conto “Baleia”, que teria motivado a escrita do romance Vidas secas. Graciliano enviou a Garay o conto para tradução e publicação na Argentina, comentando humildemente que, no momento, não tinha “nada melhor” em mãos, julgando que o argentino não havia gostado do conto. Do alagoano, Garay começou a traduzir São Bernardo, porém não chegou a finalizar.

Além das cartas do escritor, há três de Heloísa Ramos, sua esposa, enviadas ao argentino como resposta, enquanto Graciliano esteve preso no Rio de Janeiro. Nas cartas, Heloísa trata sobre assuntos pendentes entre escritor e tradutor, como o envio de um retrato do primeiro ao segundo e também sobre o andamento das traduções.

Em carta datada de 13 de maio de 1937, quando já havia saído da prisão, Graciliano se mostra surpreso pelo fato de a tradução de Os sertões não receber patrocínio por parte do governo brasileiro:

[…] O que o Lobato diz a respeito dos Sertões é novidade para mim. Então essa obra está encalhada? Eu pensava que o Governo do meu país lhe tinha oferecido os recursos necessários para publicá-la. É o diabo. Os inimigos da ordem roubam um tempo precioso aos nossos homens públicos, que, impressionados com o extremismo, não fazem nada. Paciência. Os argentinos não lerão a história de Canudos, mas ficarão sabendo que Deus, a pátria e a família existem no Brasil.

Benjamín de Garay a Raúl Navarro

Los Sertones – 1938

Traducción del original de Benjamín de Garay. Buenos Aires : Mercatali, 1938.

A tradução de Garay de 1938 está presente no acervo da BBM em dois tomos, encadernados posteriormente por algum proprietário dos volumes. A encadernação foi feita em meio couro vermelho, formando uma capa dura. Não temos, entretanto, uma indicação sobre a origem da encadernação.

A contraguarda interna, por sua vez, forma uma estrutura de desenhos quadriculados, com o ex-libris do colecionador José Mindlin estampado. Os dois tomos dispõem da mesma estrutura gráfica, com ótimo estado de conservação, apesar de as folhas estarem algo amareladas.

Logo após a contracapa, vê-se a dedicatória do tradutor ao político brasileiro Costa Rego, firmada na cidade argentina de Suipacha, no ano de 1948.

Em um contexto histórico de aproximação da Argentina com o Brasil, no ano de 1938 Garay lançou sua tradução da obra euclidiana. A edição, custeada pelo Ministerio de Justicia e Instrucción Pública, é o terceiro volume da coleção Biblioteca de Autores Brasileños, que inclui outros títulos tais como: Historia de la Civilización Brasileña, Evolución del Pueblo Brasileño, El Emperador D. Pedro II, Conferencias y discursos de Ruy Barbosa, Mis memorias de los otros, Casa Grande y Senzala e Pequeña historia de la literatura brasileña.

Logo após o prólogo do livro, o tradutor tem um espaço para uma pequena nota sobre o seu labor tradutológico, intitulado Dos palabras del traductor”. Ali, o argentino enfatiza o caráter original de Os sertões, chamando a atenção para o próprio título:

Hasta el título es intraducible. El vocablo regional ‘sertão’ no tiene equivalente en nuestro idioma. Ni en ningún otro. Expresa una particularidad de la geografía física de determinada zona del Brasil, que participa de singularidades geológicas, topográficas y biológicas: vale decir, cosmorámica.

Benjamín de Garay a Costa Rego

É por esse mesmo motivo que o título do livro brasileiro aparece no original entre parênteses, logo após a tradução. Evidentemente, tanto por razões fonológicas quanto semânticas, propor uma tradução soa um tanto quanto ousado, devido à inexistência de um correspondente para o vocábulo “sertões” em espanhol.

O argentino segue fazendo alusão à etimologia do vocábulo “sertão” e sua relação com a região semiárida do país. Ao final do livro, o tradutor traz um glossário, “Notas lexicológicas del traductor”, com a finalidade de introduzir o leitor de língua espanhola a termos específicos do Brasil, de difícil compreensão a quem não está imerso na cultura do país. Assim, termos como “caatinga”, “candomblé”, “cangaceiro”, “capanga”, entre outros, têm um verbete explicativo.

No dia 12 de novembro de 1938 o jornal O Estado de S. Paulo publicou uma nota sobre a tradução, assinada por Plínio Barros, comentarista da seção reservada aos “Livros novos”. Nela, o jornalista retoma a dificuldade em traduzir a uma língua estrangeira uma obra tão própria, parabenizando Garay pelo trabalho.

Los Sertones – 1946

Traducción de Benjamín de Garay. Reseña de la Historia Cultural del Brasil por Afrânio Peixoto. Buenos Aires: W.M. Jackson, 1946.

Garay também é o tradutor da edição de 1946, publicada pela W.M Jackson, editora muito importante quando o assunto é publicações em língua espanhola no contexto internacional. O exemplar da BBM possui a encadernação original em percalina de cor vinho, capa dura, com o emblema da coleção estampado na capa, com detalhe para uma figura em forma de losango com um mapa do continente americano atravessado por um livro.

Além dos traços gerais citados acima, o exemplar possui uma outra marca de uso que nos conta um pouco de sua história: há, em sua folha de guarda, um selo da Livraria Brandão, do Recife.

A tradução de Os sertões se constitui como o quarto volume da coleção Panamericana, cuja missão era publicar os clássicos de cada país do continente.  A obra representa o Brasil juntamente com Dom Casmurro, de Machado de Assis.

A edição nos oferece como apêndice, logo nas primeiras páginas, uma breve resenha da história cultural e literária do Brasil, redigida por Afrânio Peixoto. O texto, que tem pouco mais de 20 páginas, traz as publicações que o literato julga importantes na história do Brasil desde o descobrimento até a publicação de Os sertões.

Ao abordar a obra de Euclides da Cunha na pequena introdução, Afrânio Peixoto retoma o tema sertanejo presente na história da literatura brasileira, além de comentar a respeito das traduções de Os sertões em língua espanhola: segundo o médico e crítico literário brasileiro, até a data em que escreveu a resenha (1945) existia outra tradução ao lado da de Garay, a do Uruguaio Enrique Fabregat, publicada no México, colocando a tradução do argentino, portanto, como uma das primeiras na língua de cervantes.  

A tradução utilizada nesta edição é a mesma de 1938, do argentino Benjamín de Garay, com alguns traços particulares em comparação àquela, como a supressão do prólogo “Dos palabras del traductor”, além, é claro, do acréscimo do texto de Peixoto. 

Outra diferença notável da edição de Jackson daquela da coleção Biblioteca de Autores Brasileños, tomada por base, é a presença do original português entre parênteses no título do livro, o que não se encontra nas outras obras da coleção editorial Jackson.[1]

Segundo Foz e Atala[2] há ainda uma segunda tradução de Garay, datada de 1942, na qual o argentino faz algumas mudanças substanciais, como a adição de um subtítulo e:

“un nuevo y más sustancioso prólogo del traductor y una mayor profusión de notas explicativas no eruditas sino más bien pedagógicas, referentes a las numerosas palabras mantenidas en portugués, estrategias que sin lugar a dudas acercan el texto a un público argentino.”

Los Sertones – 1981

Madrid: Espiral: Fundamentos, 1981

Por fim, temos uma edição mais recente, que também se vale da tradução de Garay. Dos exemplares trabalhados, é o único publicado fora da América do Sul. No exemplar da BBM há um selo da Livraria Martins Fontes, colado na folha de guarda próximo ao emblema da editora.

Publicada em 1981, a edição possui, estampada em sua capa, uma imagem do filme O Cangaceiro, de 1953. Além da imagem, há também uma citação de Vargas LLosa elogiando a obra brasileira; em 1984 o escritor peruano escreveu La guerra del fin del mundo, também sobre a temática da Guerra de Canudos, fortemente influenciado por Euclides da Cunha.

Além das traduções de Garay, há ainda, no acervo da BBM, outras duas. A primeira, de 1951, a cargo da editora argentina Atlántida, é uma edição com bastante ilustrações, voltada a um público juvenil. A outra, por sua vez, foi publicada na Venezuela pela Biblioteca Ayacucho, em 1980, com tradução de Estela dos Santos. Apesar de suas peculiaridades e grande relevância, essas traduções não foram analisadas em profundidade devido ao fio condutor da postagem, as traduções da obra euclidiana realizadas pelo tradutor argentino Benjamín de Garay.

Literatura brasileira em tradução na BBM

Este texto é resultado das pesquisas feitas para o projeto “Literatura brasileira em tradução na BBM”, que consiste no levantamento, estudo e difusão de informações sobre obras da literatura brasileira em tradução pertencentes ao acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. O recenseamento e a posterior seleção dos títulos permitirá conhecer: a extensão e a importância dos livros traduzidos em quatro domínios linguísticos: inglês, espanhol, francês e alemão; a recorrência, nesse conjunto, de obras de determinados períodos, autores e gêneros literários; o percurso dos livros até sua chegada e inclusão na coleção por meio do exame de marcas autógrafas e paratextos. O projeto é coordenado por Hélio de Seixas Guimarães

Referências bibliográficas

CABRAL, A. C. . Acercamientos entre Brasil y Argentina: aspectos de la recepción crítica de la traducción de Los Sertones de Euclides da Cunha hecha por Benjamín de Garay. 2009. (Simpósio).

SCHMITZ, Lygia Barbachan de Albuquerque. Cartas de Graciliano Ramos: Caput mortuum de uma vida literária. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Programa de Pós-Graduação em Literatura, Florianópolis, 2018.p.106

Foz, C. & Atala, L. (2019). Colección Panamericana, traducción peninsular: los polos de la representación y de la inteligibilidad en un proyecto editorial. Meta, 64(2), 446–466.Disponível em: <https://doi.org/10.7202/1068202ar> acesso em 17/11/2022

CUNHA, Euclides da. Los Sertones [Os sertões]. Traducción del original de Benjamin de Garay. Prólogo de Mariano de Vedja. Buenos Aires : Mercatali, 1938.

CUNHA, Euclides da; Los Sertones [Os sertões]. Traducción de Benjamín de Garay. Reseña de la Historia Cultural del Brasil por Afrânio Peixoto. Buenos Aires : W.M. Jackson, 1946.

CUNHA, Euclides da. Los Sertones [Os sertões]. 2. Ed. Buenos Aires : Atlantida, 1951.

CUNHA, Euclides da. Los Sertones [Os sertões]. Prólogo, notas y cronologia Walnice Nogueira Galvão. Caracas : Biblioteca Ayacucho, 1980.

CUNHA, Euclides da. Los Sertones [Os sertões]. Madrid : Espiral : Fundamentos, 1981.

PASERO, Carlos Alberto. Representaciones de la lengua portuguesa en la Argentina: la Biblioteca de Autores Brasileños Traducidos al Castellano. Caderno de letras nº 34,pp. 519- 538. 2019. Disponível em: <https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/cadernodeletras/article/view/16677/10622 >Acesso em: 14/11/2022.

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João Paulo Panucci Gomes Rosa é graduando em Letras pela FFLCH-USP e bolsista do projeto “Literatura brasileira em tradução na BBM”, coordenado por Hélio de Seixas Guimarães (PUB-2022-2023).

Curadoria

One Comment

  1. Outra obra traduzida por Benjamin de Garay para o espanhol foi “Navios Iluminados”, de Ranulfo Prata (1896-1942), publicada no Brasil em 1937. O autor brasileiro tem a alcunha de ser “o Graciliano Ramos de Santos” principalmente por causa desse romance, que Garay traduziu e fez sair em Buenos Aires pela editora Claridad em 1940 com o título “Vapores iluminados: la novella de los obreros marítimos”.

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