Maria Graham: testemunha e agente da História do Brasil nos tempos da Independência

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por Isabel Cristina Inácio

A viajante inglesa Maria Graham esteve no Brasil entre os anos de 1821 e 1823, ou seja, durante o período em que o país estava envolvido em seu processo de independência.

Viajar e escrever

Os traços de observadora de Maria Graham (1785-1842) manifestaram-se pela primeira vez em uma viagem para a Escócia, mas é em 1809, acompanhando o seu pai, George Dundas (1756-1814), Almirante Real da Marinha britânica, em uma viagem para a Índia que o caráter de registro surge, o que resulta no seu primeiro diário de viagem, Journal  of  a  residence  in  India,  publicado em  1812. Nesta viagem é possível observar seus hábitos de viajante desenvolvendo-se, pois ela passava o tempo lendo, estudando línguas, conversando com todos a sua volta, dando aula para os marujos, desenhando as paisagens dos lugares por onde passava. O seu costume de observar as mais variadas características à sua volta conferia uma gama ampla de assuntos aos seus diários. É durante essa viagem à Índia que Maria conhece seu primeiro  marido, o capitão Thomas Graham, oficial inglês diretamente relacionado com a sua viagem pela América do Sul.

Em meados de 1815, Graham já possui uma carreira como escritora na Inglaterra e começa a envolver-se de fato com o mercado literário, discutindo projetos literários e trabalhando com tradução. Nesse sentido, Graham contrariava radicalmente as expectativas sociais atribuídas ao comportamento de uma mulher. Isso porque sua atuação como escritora não era frequente entre as mulheres de princípios do século XIX. Além disso, seus diários retratavam frequentemente passagens relacionadas à política e questões públicas, assuntos frequentemente designados aos homens apenas.

Retrato de Maria Graham, por Sir Thomas Lawrence

No Brasil, por exemplo Graham agiu ativamente como mediadora nas negociações entre as postulações do governo de Dom Pedro I e as lideranças da Confederação do Equador – movimento de caráter republicano que ia contra as arbitrariedades das transformações politicas pelas quais o Brasil passava, como dissolução da Assembleia Constituinte. Nesse contexto, cabia a Graham fazer ser aceito o acordo de armistício e a rendição do comandante da Confederação, Manuel de Carvalho Paes de Andrade. Frequentemente, no estudo da História, as narrativas de atuações femininas foram silenciadas. No caso de Graham, a possibilidade de compreender a sua participação é possível apenas pelos seus escritos, que trazem uma nova perspectiva sob um acontecimento de extrema relevância para os esforços militares de consolidação da Independência e do Império.

Mudanças políticas no Brasil, na América do Sul e na Europa

Brevemente, o cenário das sociedades ocidentais do final do século XVIII e do começo do XIX ficou marcado por revoluções liberais, que contestavam as monarquias absolutistas e reivindicavam maior representação política para a burguesia. Essas revoluções suscitaram alterações nas composições políticas, econômicas, culturais e sociais de várias nações. Concomitantemente, o Brasil sentia o reflexo desses acontecimentos e passou por mudanças, que o levariam a tornar-se uma nação independente de Portugal, em 1822. O processo, que inclui acontecimentos como a chegada da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro, a abertura dos portos, ambos em 1808, e a criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, em 1815, demonstra um sintoma de abertura da colônia que anteriormente fechava-se por esforço da metrópole.

É nesse contexto que a marinha britânica convoca Thomas Graham, marido de Maria, para uma missão visando proteger os comerciantes ingleses que se encontravam nas colônias sul-americanas que estavam passando por lutas pela independência. É nessas circunstâncias que Graham inicia sua viagem pela América do Sul. Em 1821, Thomas comandava uma missão ao Chile, mas foi acometido por uma febre, que o matou antes de chegar a seu destino. É, portanto, como viúva que Maria Graham viveu no Chile e no Brasil, experiências que resultaram na publicação, em 1824, de dois diários: Journal of a Residence in Chile [Diário de uma residência no Chile] e Journal of a Voyage to Brazil [Diário de uma viagem ao Brasil].

Página de rosto de Journal of a Voyage to Brazil 

Diário de uma viagem ao Brasil

Antes de apresentar seu diário sobre sua viagem ao Brasil, Maria Graham julga necessário fazer um panorama introdutório da história do Brasil. Diz ela:

Para melhor compreensão dos acontecimentos políticos de que fui testemunha ocular, julguei necessário antepor o seguinte esboço da História do Brasil ao meu diário de viagem.

Passando ao diário, Graham descreve seus deslocamentos por Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro, que lhe permitem esboçar retratos do cotidiano de diferentes camadas da população, dos seus hábitos, das relações de trabalho, da infraestrutura urbana. Ela oferece ainda descrições de acontecimentos e das estruturas sociais e políticas de um país tornando-se independente.

É possível observar por onde a viajante passou no Atlas dos Viajantes no Brasil, plataforma interativa que usa uma base cartográfica digital para organizar, relacionar e divulgar relatos e iconografia de viagem do acervo da BBM.

Retratos da escravidão no Brasil

A autora inicia sua viagem ao desembarcar em Pernambuco. Entre os locais que ela visita estão a região central de Recife, o bairro de Boa Vista e Olinda, dos quais ela retrata os aspectos naturais, a organização social, a arquitetura, os hábitos alimentares, entre outros assuntos. Um aspecto de seu diário que chama atenção é sua descrição de um mercado de escravos em Recife:

Não tínhamos dado cinquenta passos no Recife quando ficamos inteiramente perturbados com a primeira impressão de um mercado de escravos. Era a primeira vez que tanto os rapazes quanto eu estávamos num país de escravidão, e por mais que os sentimentos sejam penosos e fortes quando em nossa terra imaginamos a servidão, não são nada em comparação com a visão tremenda de um mercado de escravos. Estava pobremente abastecido, devido às circunstâncias da cidade, que faziam com que a maior parte dos possuidores de novos escravos os conservassem bem fechados nos depósitos. Contudo, cerca de cinquenta jovens criaturas, rapazes e moças, com todas as aparências da moléstia e da penúria, consequência da alimentação escassa e do longo isolamento em lugares doentios, estavam sentados e deitados na rua, no meio dos mais imundos animais. O espetáculo nos fez voltar ao navio com o coração pesado e com a resolução “não ruidosa, mas profunda” de que tudo o que pudéssemos fazer no sentido da abolição ou da atenuação da escravatura seria considerado pouco.

Mercado de escravos numa rua de Recife

A viagem de Maria Graham ao Brasil acontece em um momento de grande discussão política, promovida pela Inglaterra, sobre a abolição da escravidão. Não será a única vez que Graham faz uma descrição de um mercado de escravos, e tampouco a única vez que a autora fala sobre a escravidão. Em um trecho da obra, a escritora analisa o número de navios negreiros aportados no Brasil e a quantidade de escravos vivos e mortos. Em outro, chega a denunciar a ilegalidade do tráfico, o que demonstra um conhecimento sobre leis e tratados criados frente ao processo de abolição da escravidão e as demandas que a Inglaterra começava a ter em relação a esse tipo de comércio.

A autora continua seu percurso e faz uma parada na Baía de Todos os Santos. Ela desembarca em Salvador, onde visita e descreve casas de portugueses, retrata o comércio, a cobrança de impostos, a atividade portuária, a ação da polícia. Em relação às atividades culturais da cidade, Graham narra, por exemplo, sua ida à ópera. Ela avalia o teatro como uma bela construção, mas o espetáculo mal representado e com uma plateia pouco interessada.

Graham deixa a Bahia e chega ao Rio de Janeiro em 15 de dezembro de 1821 e surpreende-se com a beleza da paisagem. Ela instala-se em um domicílio no Catete e percorre entre 1821 e 1823 diferentes lugares nos arredores da cidade, como Itaguaí, Santa Cruz e São Gonçalo.

Ainda no Rio de Janeiro, Graham descreve outro mercado de escravos, o da rua do Valongo, que figura como a primeira ilustração do livro, que aparece logo antes da folha de rosto.

Vi hoje o Valongo. É o mercado de escravos do Rio. Quase todas as casas desta longuíssima rua são um depósito de escravos. Passando pelas suas portas à noite, vi na maior parte delas bancos colocados rente às paredes, nos quais filas de jovens criaturas estavam sentadas, com as cabeças raspadas, os corpos macilentos, tendo na pele sinais de sarna recente. Em alguns lugares as pobres criaturas jazem sobre tapetes, evidentemente muito fracos para sentarem-se. Em uma casa as portas estavam fechadas até meia altura e um grupo de rapazes e moças, que não pareciam ter mais de quinze anos, e alguns muito menos, debruçavam-se sobre meia porta e olhavam a rua com faces curiosas. Eram evidentemente negros bem novos. Ao aproximar-me deles, parece que alguma coisa a meu respeito lhes atraiu a atenção; tocavam se uns nos outros para certificarem-se que todos me estavam vendo e depois conversaram no dialeto africano próprio com muita vivacidade. Dirigi-me a eles e olhei-os de perto, e ainda disposta a chorar, fiz um esforço para lhes sorrir com alegria e beijei minha mão para eles; com tudo isso pareceram eles encantados; pularam e dançaram, como que retribuindo as minhas cortesias. Pobres criaturas!

Mercado de escravos da rua do Valongo

O encontro com Maria Quitéria

É ainda no Rio de Janeiro que, em 29 de agosto de 1823, Maria Graham expõe seu encontro com Maria Quitéria de Jesus, figura retratada como a primeira mulher a integrar o exército brasileiro. Nessa ocasião, Graham estava no Rio de Janeiro e recebeu a visita de Maria Quitéria, que descreve brevemente sua trajetória desde Cachoeira, na Bahia, onde se alista na ausência de um familiar homem que pudesse lutar nos conflitos pela independência, até o momento em que seria condecorada por D. Pedro I em virtude de seus feitos patrióticos:

D. Maria contou-me diversas particularidades relativas a suas próprias aventuras. Parece que, logo no começo da guerra do Recôncavo, percorreram todo o país emissários do governo para inscrever voluntários; e que um destes chegou um dia à casa de seu pai, na hora do jantar, que seu pai o havia convidado a entrar, e que depois da refeição ele começou a falar sobre o objetivo de sua visita. Começou ele a descrever a grandeza e as riquezas do Brasil e a felicidade que poderia alcançar com a Independência. Atacou a longa e opressiva tirania de Portugal e a humilhação em submeter-se a ser governado por um país tão pobre e degradado. Ele falou longa e eloquentemente dos serviços que Dom Pedro prestara ao Brasil, de suas virtudes e nas da Imperatriz, de modo que, afinal, disse a moça: “Senti o coração ardendo em meu peito”. Seu pai, contudo, não partilhava em nada seu entusiasmo. Era velho, e disse que nem poderia juntar-se ao exército, nem tinha um filho para ali enviar […] Maria saiu então de casa para a casa de sua irmã, que era casada e morava a pequena distância. Recapitulou o grosso do discurso do visitante e disse que desejaria ser homem para poder juntar-se aos patriotas. “Pelo contrário”, disse a irmã, “se não tivesse marido e filhos, por metade do que você diz, eu me juntaria às tropas do Imperador”. Isto foi bastante. Maria obteve algumas roupas pertencentes ao marido da irmã, e aproveitou a ausência de seu pai para alistar-se.

Retrato de Maria Quitéria

Concluída sua viagem ao Brasil, Maria Graham parte de volta ao Reino Unido. No percurso, uma última aventura é registrada no diário: uma mudança de ventos acarreta a formação de tufões – ciclones tropicais, ou seja, uma espécie de tempestade torrencial acompanhada de ventos fortes, gerando um espetáculo enorme de ondas por cima do navio. A viagem se encerra em fins de 1823 e Graham conclui seu diário com uma citação de Macabeus, livro do Velho Testamento:

Porei aqui fim à minha narração. Se ela está bem, e como convém à história, isso é também o que eu desejo; mas se, pelo contrário, é menos digna do assunto, deve-se me perdoar.

Referências

GRAHAM, M. Journal of a voyage to Brazil, and residence there, during … the years 1821-1823. Londres: Longman, Hurst, Rees, Orme, Brown, and Green, 1824. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/8022

GRAHAM, M. Diário de uma viagem ao Brasil e de uma estada nesse pais: durante parte dos anos de 1821, 1822 e 1823. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956. Disponível em: https://bdor.sibi.ufrj.br/handle/doc/444

OLIVEIRA, C. H. S. Independência e revolução: temas da política, da história e da cultura visual. Almanack, [S. l.], v. 1, n. 25, p. 1–52, 2020. Disponível em: https://periodicos.unifesp.br/index.php/alm/article/view/10509.

PORTO, D. M. C. G. MOSAICO POLIFÔNICO NA ESCRITA DE MARIA GRAHAM: Conexões entre a voz política e o olhar sensível da autora sobre o Rio de Janeiro-1821-1822. Artigo derivado de pesquisa para Dissertação – Universidade Salgado de Oliveira-UNIVERSO: [s.n.].

PORTO, D. M. C. G. Maria Graham na Confederação do Equador: uma inglesa como mediadora entre o Império e a República. v. 18 n. 35 (2022): RevistaNavigator – Dossiê O mar e as lutas pela independência na América luso-espanhola. Disponível em: http://portaldeperiodicos.marinha.mil.br/index.php/navigator/article/view/2449#:~:text=Atendendo%20ao%20pedido%20do%20amigo,republicanos%20%C3%A0%20causa%20federalista%20pernambucana.

PORTO, Maíra Guimarães Duarte. Para inglês ver: uma análise de Journal of a Voyage to Brazil, de Maria Graham. 2017. 113 f., il. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de Brasília, Brasília, 2017.

SILVA, Any Marry. Maria Graham: a performatividade nos diários de viagens da América do Sul no século XIX. 2019. 101 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Estudos Pós-Graduados em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019.

SILVA, Isadora Eckardt da. O viés político e histórico de Maria Graham em Diário de uma viagem ao Brasil. 2009. 161 p. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, SP. Disponível em: https://hdl.handle.net/20.500.12733/1610773.

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Isabel Cristina Inácio é graduanda em História pela FFLCH-USP e bolsista da BBM pelo Programa Unificado de Bolsas (PUB-2022-2023).

Curadoria

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