Um ano depois Taunay publicou o ensaio “Monstros e monstrengos do Brasil: ensaio sobre a zoologia fantástica brasileira nos séculos XVII e XVIII” complementando o Zoologia fantástica; esse sim inteiramente dedicado aos relatos sobre o Brasil. Nos dois textos predomina um certo tom de bom humor enquanto ele cita os textos escritos pelo menos dois séculos antes, enchendo as citações de exclamações, meio surpreso e risonho. As descrições às vezes amalucadas e inverossímeis que ele transcreve parecem ser colocadas como resultado mais de ignorância e ingenuidade generalizadas dos escritores do passado do que questões culturais complexas que vão desde o entendimento da ciência e da natureza na Europa renascentista até os pretextos políticos existentes no retrato de uma terra fantástica.
No contexto de uma colônia de exploração como o caso do Brasil, relatos sobre os recursos naturais abundantes e completamente novos eram bem-vindos na Europa, não só pela curiosidade mas porque acabavam atraindo colonos ao país. Assim, as doses de ficção nos textos eram convenientes tanto para os fins econômicos quanto para saciar o público interessado nas novidades do exterior exótico. A produção dos seres fantásticos às vezes era até inevitável, por conta das ilustrações em gravura de publicações mais sofisticadas serem feitas muitas vezes por artistas e técnicos que não tinham acompanhado as viagens e dispunham apenas dos textos, do repertório pessoal e de noções de natureza ainda pouco empíricas para produzirem suas imagens, resultando em figuras um tanto estranhas, como aranhas e besouros com rosto humano.
A pesquisadora Maria Elice Brzezinski Prestes escreve em A investigação da natureza no Brasil colônia sobre como a abordagem da ciência existente durante o Renascimento (aproximadamente séculos XIV – XVI) aparece nas descrições do Brasil e como ela se diferencia do empirismo. Com as descrições Renascentistas, sobretudo aquelas tratando de animais que hoje conhecemos bem, descobre-se mais sobre a cultura dos autores e suas intenções do que sobre a fauna brasileira.
“Será ao longo do século XVIII, principalmente, que a História Natural formulará e postulará o inventário minucioso e exaustivo dos seres vivos como um procedimento padrão a ser seguido. No Renascimento, a atenção que se pretende dar à natureza é movida por um interesse distinto: “Importa conhecer a ordem universal que relaciona todos e cada um dos seres e acontecimentos criados. (…) Assim, as enciclopédias de animais do Renascimento não se pretendem amplas nem completas. Os relatos da natureza do Novo Mundo são pouco extensos porque o interesse está centrado não na enumeração completa, mas na procura de significados ocultos.”
Saltam aos olhos essas diferenças quando se compara publicações de missionários e cronistas portugueses e franceses do final dos 1500 com os naturalistas holandeses trazidos por Nassau durante a invasão holandesa (1630-1654), por exemplo, que são as mais extensas e ricas em imagens. Talvez o leitor brasileiro de hoje compartilhe com o leitor europeu de então o estranhamento diante de imagens que se aproximam daquilo que é familiar, mas que não coincidem totalmente com a realidade conhecida, principalmente porque também, ao menos no contexto urbano, só conhecemos os animais segundo descrições e imagens.
Animais do Brasil por Johan Nieuhof (1682)
Veja a seguir trechos de descrições e iconografia presentes no acervo da BBM e na Biblioteca Digital
Ipupiara
Criatura fantástica mais frequente nas crônicas do Brasil colonial. Aparece em praticamente todos os textos seiscentistas sobre a fauna, sendo citado por falas de índios e brasileiros que o temem muito e até confirmam mortes por ataques do animal.
“Estes homens marinhos se chamam na língua Igpupiára; têm-lhe os naturais tão grande medo que só de cuidarem nele morrem muitos, e nenhum que o vê escapa; alguns morreram já, e perguntando-lhes a causa, diziam que tinham visto este monstro; parecem-se com homens propriamente de boa estatura, mas têm os olhos muito encovados. As fêmeas parecem mulheres, têm cabelos compridos, e são formosas; acham-se estes monstros nas barras dos rios doces. Em Jagoaripe, sete ou oito léguas da Bahia, se têm achado muitos; em o ano, de oitenta e dois indo um índio pescar, foi perseguido de um, e acolhendo-se em sua jangada o contou ao senhor; o senhor para animar o índio quis ir ver o monstro, e estando descuidado por uma mão fora da canôa, pegou dele, e o levou sem mais aparecer, e no mesmo ano morreu outro índio de Francisco Lourenço Caeiro. Em Porto Seguro se vêem alguns, e já têm morto alguns índios. O modo que têm em matar é: abraçam-se com a pessoa tão fortemente beijando-a, e apertando-a consigo que a deixam feita toda em pedaços, ficando inteira, e como a sentem morta dão alguns gemidos como de sentimento, e largando-a fogem; e se levam alguns comem-lhe somente os olhos, narizes e pontas dos dedos dos pés e mão, e as genitálias, e assim os acham de ordinário pelas praias com estas coisas menos.” Fernão Cardim, Tratados da terra e gente do Brasil ,1583 – 1601
Mais sobre Cardim: https://www.bbm.usp.br/node/98
“Crê-se que matam os homens, apertando-os com seu abraço, não de propósito, mas por afeto. Os cadáveres lançados à costa ficam mutilados nos olhos, no nariz e nas pontas dos dedos, tornando-se verossímil que fiquem assim com a sucção e mordedura desses monstros” Gaspar Barléu, História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil, 1647
Mais sobre Barleus: https://www.bbm.usp.br/node/97
Preguiça
A preguiça já teve um post dedicado à ela no blog da BBM.com trechos de Jean de Léry, André Thevet e Gabriel Soares de Sousa. É citada em todos as crônicas ou relatos de naturalistas que falam minimamente da fauna brasileira
“(…) sua locomoção extremamente vagarosa, pois em quinze dias percorre preguiça, apenas a distância de uma pedrada. Tem o tamanho de uma raposa mediana e o comprimento de pouco mais de um pé, a contar do pescoço (que não excede de três dedos de comprimento) até a cauda. Os membros dianteiros têm sete dedos de comprimento até as patas, mas os posteriores têm aproximadamente seis. A cabeça, arredondada, tem três dedos de diâmetro mais ou menos. A boca, que está sempre espumando, é redonda e pequena, e seus dentes não são grandes nem agudos.” Gaspar Barléu, História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil, 1647
Camorim
“Brandonio: (…) Camorim é um peixe pequeno a que chamam peixe pedra, por ter outra dentro na cabeça em lugar de miolos; e por muito sadio é assás estimado por doentes, com se pescarem em grande quantidade.
Alviano: Nunca ouvi dizer de fera, ave, nem peixe, que tivesse dentro na cabeça pedra em vez de miolo. ” Ambrosio Fernandes Brandão, Diálogo das grandezas do Brasil, 1618
Jiboia
“A Gauçú ou Gibóia é sem dúvida a maior de todas as serpentes, atingindo, alguns espécimenes, 18, 24 e mesmo 30 pés de comprimento e a grossura de um tronco de homem, ao meio. Os portugueses chamam-na Cobra-de-Veado por ser capaz de engolir um corço inteiro ou mesmo um veado, pois, conquanto a garganta seja estreita, o ventre é bastante grande. Após ter devorado presa de tão grandes proporções, a cobra cai num estado letárgico em que facilmente se deixa capturar. Lembro-me de ter visto uma perto de Paraíba, que media 30 pés de comprimento e tinha a grossura de um barril. Os negros viram-na engolir um cabrito. Enviaram-se, então, mosqueteiros que abateram o monstro e arrancaram-lhe o cabrito do ventre. (…) Às vezes atira-se de uma árvore sobre o viajante, em cujo corpo se enrola, procurando vencê-lo pela asfixia, valendo-se, para isso, da cauda.”
Johan Nieuhof, Memorável viagem marítima e terrestre ao Brasil, 1682
Capivara
“Nos rios de água doce e nas lagoas também se criam muitos porcos, a que os índios chamam capivaras, que não são tamanhos como os porcos-do-mato; os quais têm pouco cabelo e a cor cinzenta, e o rabo como os outros; e não têm na boca mais que dois dentes grandes, ambos debaixo, na dianteira, que são do comprimento e grossura de um dedo; e cada um é fendido pelo meio e fica de duas peças; e têm mais outros dois queixais, todos no queixo de baixo, que no de cima não têm nada; os quais parem e criam os filhos debaixo da água, onde tomam peixinhos e camarões que comem; também comem erva ao longo da água, de onde saem em terra, e fazem muito dano nos canaviais de açúcar e roças que estão perto da água, onde matam em armadilhas; cuja carne é mole, e o toucinho pegajoso; mas salpresa é boa de toda a maneira, mas carregada para quem não tem saúde. “Gabriel Soares de Sousa, Tratado descritivo do brasil, 1587
Mais sobre o livro: https://www.bbm.usp.br/node/96