Sistemas de produção: caça e pesca – Os Tupi da costa

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Os Tupi da Costa

Quando os primeiros europeus aportaram na costa atlântica sul-americana, eles encontraram principalmente povos tupi, que se distribuíam do atual estado do Maranhão, ao norte, ao de São Paulo, ao sul. Esses povos falavam línguas bastante próximas entre si, talvez vários dialetos de uma mesma língua, que passou a ser conhecida como Tupi Antigo. Tupinambá, Tupiniquim, Caeté, Temiminó e Potiguar eram algumas das denominações com que diferentes grupos de povo tupi aparecem nas fontes dos séculos XVI e XVII. De maneira geral, eles ficaram conhecidos como os Tupi da costa.

Embora os primeiros contatos entre os Tupi da costa e os invasores europeus (portugueses e franceses sobretudo) tenham sido pacíficos, não tardou para que essas populações originárias sofressem as terríveis consequências da colonização. Guerras, epidemias, escravização, catequização e aldeamento forçado tiveram um impacto desastroso entre os Tupi da costa, que contudo lutaram como puderam contra os invasores. Parte significativa das populações morreu em decorrência de guerras, epidemias e campanhas de apresamento. Outra parte fugiu para o interior do país. Apesar de terem sido considerados praticamente desaparecidos da costa brasileira desde o final do século XVII, ainda hoje há povos herdeiros dos antigos tupi, como os Tupiniquim do Espírito Santo e os Tupinambá da Bahia. 

Durante os séculos XVI e XVII, cronistas, viajantes, missionários, colonos e administradores coloniais documentaram muitos aspectos dos Tupi da costa. Por meio dessas fontes, é possível acessar o modo como esses povos viviam, que ainda é pouco conhecido da maioria dos brasileiros e bem diferente tanto da imagem estigmatizadora de que eram ferozes canibais quanto da imagem que os idealiza como bons selvagens. Nesta série de publicações, o Blog da BBM resgatará vários desses aspectos dos Tupi da Costa presentes nas fontes quinhentistas e seiscentistas.

Sistemas de produção: Caça e pesca

André Thevet 

Singularidades da França Antártica, a que outros chamam de América. (1558)

“No mais, usam qualquer espécie de alimentos, carne ou peixe, assados sempre a seu modo: caças selvagens, ratos de várias qualidades e tamanhos, certas espécies de sapos maiores que os nossos, jacarés, etc., que põem rodo inteiros ao fogo, com peles e entranhas. E comem, desse modo, os animais, até mesmo os jacarés, que são lagartos da grossura de um bacorinho novo, proporcionalmente mais longos (vianda, aliás, bastante delicada, como testemunham os que dela provaram)”

“Lembro-me de ter dito, alhures, que os selvagens americanos não se servem de nenhum animal doméstico, alimentando-se, porém, de inúmeros outros que vivem nas matas, tais como os veados, as corças, os javalis, etc. Quando os animais perambulam, à procura de alimentos, são apanhados nos fossos disfarçados por folhagens, que constroem os selvagens nos lugares por eles mais frequentados. São essas armadilhas feitas com tanto artifício e habilidade que as feras dificilmente se lhes escapam: apanhadas vivas, chegam os índios e massacram-nas, algumas vezes à flechadas.”

“As pessoas mais experimentadas apanham o peixe graúdo, abundante nesse rio. Metendo-se nus na água, quer salgada, quer doce, flecham o peixe, no que são muito destros; após o que puxam-no por uma corda de algodão ou de casca de árvores, quando não acontece o peixe, depois de morto, emergir por si mesmo. Para não tornar o assunto mais longo, mencionarei principalmente alguns peixes monstruosos, a exemplo do Panapaná, que se assemelha ao cação e tem a pele tão rude e áspera quanto a da lixa. Tem esse animal seis fendas branquiais, de cada lado das guelras, dispostas como as de lampreia; a cabeça é tal qual se vê na estampa ao lado, com os olhos bem em cima dela, distantes entre si pé e meio. É peixe, por outro lado, bastante raro, cujo sabor, não muito excelente, tem semelhança com a do cação.”


Gabriel Soares de Souza

Tratado descritivo do Brasil em 1587 (1587)

“Pelejam estes índios com arcos e flechas, no que são muito destros, e grandes caçadores e pescadores de linha, e grandes mergulhadores, e à flecha matam também muito peixe, de que se aproveitavam quando não tinham anzóis.”

“Este gentio não come carne de porco, dos que se criam em casa, senão os escravos criados entre os brancos; mas comem a carne dos porcos-do-mato e da água; os quais também não comem azeite, senão os ladinos; toda a caça que este gentio come, não a esfola, e chamuscam-na toda ou pelam-na na água quente, a qual comem assada ou cozida e as tripas mal lavadas; ao peixe não escamam nem lhe tiram as tripas, e assim como vem do mar ou dos rios, assim o cozem ou assam: o sal de que usam, com que temperam o seu comer, e em que molham o peixe e carne fazem-no da água salgada que cozem tanto em uma vasilha sobre o fogo, até que se coalha e endurece, com o que se remedeiam; mas é sobre o preto, e requeima.”

“São os tupinambás grandes flecheiros, assim para as aves como para a caça dos porcos, veados e outras alimárias, e há muitos que matam no mar e nos rios de água doce o peixe a flecha; e desta maneira matam mais peixe que outros a linha; os quais não arreceiam arremeter grandes cobras, que matam, e a lagartos que andam na água, tamanhos como eles, que tomam vivos abraços.”


Hans Staden

Duas viagens ao Brasil (1547).

“Também em agosto devíamos contar com eles. Nesta época eles perseguem uma espécie de peixe que migra do mar para os rios de água doce para a desova. Estes peixes chamam-se Piratis, na língua deles, e Lisas, em espanhol. Nesta época eles normalmente empreendem uma expedição guerreira com o intuito de poderem se abastecer melhor com alimentos.”

“Para onde quer que vão, seja para a floresta ou para a água, sempre têm consigo um arco e flechas. Quando andam na mata, mantêm o rosto levantado atentamente para cima em direção das árvores. Toda vez que percebem algum grande pássaro, macaco ou outro animal que fica nas árvores, vão atrás dele, esforçam-se para atirar nele e perseguem-no até conseguir pegá-lo. Raramente alguém que tenha ido à caça retorna para casa de mãos vazias.”

“Do mesmo modo perseguem os peixes no litoral. Têm a vista muito aguçada. Quando em algum lugar um peixe vem à superfície, atiram nele, e somente poucas flechas não atingem o alvo. Assim que um peixe é atingido, atiram-se à água e nadam atrás dele. Certos grandes peixes vão para o fundo quando sentem uma flecha dentro de si. Os selvagens mergulham, então, até cerca de seis braças de profundidade e trazem-nos para a superfície. Além disso, eles têm pequenas redes. O fio com o qual tecem estas redes, retiram-no de longas folhas pontiagudas que chamam de tucum. Quando querem pescar com estas redes, juntam-se e formam um círculo na água rasa, de modo que todos tenham uma área para si. Alguns deles vão, então, para dentro do círculo e batem na água. Se um peixe quiser então fugir para  fundo, ele cai na rede. Quem pegar muitos peixes dá aos que ficaram com menos. Com frequência, também vem gente que mora longe do mar e que pesca muitos peixes, torra-os no fogo, tritura-os, faz farinha e a seca bem para que se conserve bastante. Eles a levam para casa e a comem misturada com farinha de mandioca. Se levassem os peixes apenas torrados para casa, estes não se conservariam muito, visto que eles não os salgam. Além disso, cabe mais farinha de peixe num recipiente do que caberiam peixes torrados inteiros.”

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Referências: 

Sousa, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Ministério da Educação.

Staden, Hans. Duas Viagens ao Brasil. Porto Alegre, L&PM, 2008.

Thevet, André. Singularidades da França Antártica, a que outros chamam de América. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2018.

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Matheus Gabriel Castro Brito, graduando em História pela FFLCH-USP e bolsista da BBM pelo Programa Unificado de Bolsas (PUB 2024-2025), fez a seleção dos trechos apresentados.

Curadoria

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