ALEGORIAS DA GUERRA: CARICATURAS DE BELMONTE PUBLICADAS NA FOLHA DA NOITE

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Na década de 1940, diversos periódicos informavam aos leitores as notícias mais quentes do grande conflito armado: a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Pretendendo atingir o maior número de leitores possível, os textos jornalísticos estavam acompanhados de recursos chamativos, como manchetes apelativas ou imagens emblemáticas. Neste grupo de recursos visuais, se destacaram as charges de Benedito Bastos Barreto, mais conhecido como Belmonte.

Por Millena Pereira Machado

As charges são desenhos que ilustram contextos, acontecimentos ou indivíduos com uso da crítica e/ou do humor. No contexto da Segunda Guerra Mundial, os chargistas brasileiros ilustravam alguns líderes de grandes potências em situações provocativas e engraçadas, características contrárias às que as narrativas jornalística e historiográfica apresentavam. Enquanto nestas últimas o tom dominante era de seriedade, devido, entre outras razões, à imensa violência dos conflitos, as charges revelavam governantes tolos, desatentos ou até mesmo fracassados.

Entre os autores desse tipo de produção esteve Benedito Carneiro Bastos Barreto (1896-1947), conhecido pelo pseudônimo de Belmonte. Como ilustrador, cartunista, jornalista, escritor e pintor, ganhou reconhecimento ao longo da vida pelas publicações das ilustrações em periódicos e pelos livros que escreveu e/ou ilustrou, como os desenhos de sua autoria para as obras de Monteiro Lobato publicadas pela Companhia Editora Nacional. Afirmando ser um humorista que invade os domínios da história (prefácio de “No Tempo dos Bandeirantes”), Belmonte também buscou a popularização da informação e da arte da caricatura.

Depois de trabalhar por períodos curtos em diferentes jornais, na década de 1920 o autor se estabeleceu na Folha da Noite, atual Folha de São Paulo. Foi nesse período que escreveu e/ou ilustrou obras que tratavam de aspectos da história mundial, como “Meu amor! adoro-te! O amor através dos séculos” (1926), “Assim falou Juca Pato […]” (1933) e “Idéas de João Ninguém” (1935). Também obras sobre a história de São Paulo, como “No tempo dos Bandeirantes” (1939) e “Aventuras de uma família de São Paulo durante a revolta de julho de 1924” (1925). Na década de 1940 surgiram duas compilações das ilustrações que tinham como tema a Segunda Guerra, são elas “Guerra do Juca: caricaturas de Belmonte publicadas na Folha da Noite” (1941) e “Caricatura dos Tempos […]” (1948). Falaremos sobre “Guerra do Juca”.

Capa da primeira edição de “Guerra do Juca: caricaturas de Belmonte publicadas na folha da noite”, edição do autor, 1941.

A compilação reúne 98 charges publicadas na Folha da Noite entre 24 de outubro de 1940 e 7 de novembro de 1941, ou seja, no início do conflito. O personagem Juca Pato, que aparece no título e na capa da obra, foi uma criação do autor para representar o brasileiro médio e esteve presente em diversas ilustrações e livros. Nesta narrativa, Juca faz parte de um amplo quadro de personagens, que podem ser divididos em dois grupos: os personagens históricos, líderes das nações em conflito (Hitler, Mussolini, Stalin, etc.), e os alegóricos, que são a personificação de uma ideia, país ou região (Rússia, França, África, etc.). Analisando alguns destes personagens, especialmente os alegóricos, é possível compreender que narrativa da guerra Belmonte constrói e qual o papel que essas charges exerceram e exercem até hoje.

Alegorias a duas potências

Entre os personagens alegóricos representados em Guerra do Juca, Belmonte ilustrou duas potências:

Nesta primeira imagem, sentados no banco estão: Mussolini, líder do Partido Nacional Fascista na Itália, Hirohito, imperador do Japão, e Hitler, líder do Partido Nazista na Alemanha. A figura feminina não é nomeada, na legenda é referida indefinidamente como “Ela”. Apesar disso, devido às vestes e a braçadeira com símbolo do Partido Comunista, pode-se dizer que é uma representação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Entre os séculos XIX e XX, a ideia da nação que une e nutre se personificou em uma figura materna, conhecida como Mãe Rússia. Durante a Segunda Guerra, como rival das potências Alemanha, Japão e Itália, a URSS recupera essa ideia de uma nação unificada e forte para impelir soldados a lutar contra os inimigos dos soviéticos. A charge, portanto, ilustra ambos os lados: enquanto os três personagens masculinos são o que podemos chamar de históricos, a personagem feminina é alegórica.

Em situação semelhante, na imagem acima aparecem Tio Sam, Matsuoka (Ministro dos Negócios Estrangeiros do Império do Japão em 1940), uma representação da China (também alegórica), e Stalin, líder na URSS. Apesar de ser nomeado pelo autor em outra charge da obra, Tio Sam não é alguém que de fato existiu, mas uma representação dos Estados Unidos. Essa personificação surgiu em meados do século XIX e foi popularizada ainda mais durante a Segunda Guerra, período em que o país intensificou as intervenções na política externa mundial. A alegoria expressava o sentimento nacional e foi usada em propagandas para incentivar os cidadãos norte-americanos a integrar o exército. Nessa charge, ele também é representado em uma posição de poder, em que a aliança entre Japão e Alemanha e a ameaça do Matsuoka “esquecido” não afetam a postura do personagem.

O que a Mãe Pátria e Tio Sam têm em comum é que ambos são alegóricos. Além disso, o autor utiliza dessas alegorias populares na primeira metade do século XX para personificar duas nações de alto poder bélico e militar, em oposição ao que veremos adiante. É dessa forma, ironizando as relações e as posições dos países, que Belmonte constrói uma coletânea de charges que acompanhava o noticiário da Folha da Noite.

Alegorias femininas e infantis

Outros dois casos reveladores de personagens alegóricos são os femininos e infantis, que, em sentido contrário, procuram representar situações de subalternidade:

Os três personagens da direita da charge são, respectivamente, Hitler, Mussolini (o “Duce”) e um general não identificado. As três personagens femininas são alegorias, identificadas pelos nomes que aparecem nas saias: França, Tunísia (no norte da África) e Córsega (ilha do Mediterrâneo), ambas domínios da França em 1940. A imagem ilustra a época da invasão da França pela as tropas alemãs, aliadas da Itália. Assim, é estabelecida uma relação presente em quase todas as charges da obra: as alegorias mais recorrentes são femininas ou infantis. No caso dessa imagem, a representação feminina e adulta está coagida atrás de Hitler, enquanto guia duas personagens alegóricas que são crianças e representam países sob algum tipo de proteção ou tutela no jogo político.

O que esse exemplo demonstra é que Belmonte transpõe a hierarquia social para uma representação da guerra, em que, se por um lado os personagens históricos ou alegorias como Rússia e Estados Unidos representam as nações de alto poder político e militar, por outro esses exemplos de alegorias femininas ou infantis fazem referência a uma posição de influenciadas ou dominadas pela ação das potências. A Mãe Pátria é uma exceção.

Essa mesma lógica da representação é usada por Belmonte ao retratar os conflitos no continente americano contemporâneos da Segunda Guerra. Na imagem acima aparecem Equador e Peru como alegorias infantis e, novamente, Tio Sam como a personificação de uma concepção dos Estados Unidos. Em 1941, os dois países sul americanos viviam uma disputa militar pelo avanço da fronteira, enquanto os estadunidenses pressionavam o cessar fogo, ocorrido em 1942. Além da separação entre personagens, mesmo entre os alegóricos, esse caso mostra o exagero das características pessoais, traços culturais estereotipados para ilustrá-los, elementos característicos das charges e caricaturas. Evidentemente, há também uma hierarquia estabelecida.

Como outros gêneros de representação de acontecimentos históricos, as charges produzem um discurso ideológico. Feitas por grupos diferentes, elas foram usadas, por exemplo, para disseminar o antissemitismo na Europa (no caso das charges produzidas pelo Partido Nazista), para denunciar violências de vários tipos ou até para ironizar aspectos da vida cotidiana. Isso revela que, apesar de satíricas, são um material que representa – sob um ponto de vista determinado – a situação política, econômica e social da época. No caso de Guerra do Juca e de outras obras de Belmonte, elas podem ser usadas como ferramenta por professores da educação básica para compreender aspectos da Segunda Guerra e de como ela foi retratada no Brasil.

“A História, tal como ela é ordinariamente se escreve – conclui o crítico inglês – é uma cousa morta que só revive pela intensidade que as paixões lhe comunicam na caricatura”

“As Farpas”, Ramalho Ortigão, citado por Belmonte na abertura de Guerra do Juca

Referências

“Guerra do Juca, caricaturas de Belmonte publicadas na Folha da Noite”, Belmonte, disponível na BBM Digital (https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/). Todas as obras de Belmonte mencionadas no texto também podem ser consultadas no acervo físico e digital da Biblioteca Brasiliana.

LIEBEL, Vinícius. “Guerra e Humor: A formação da opinião pública pela mídia no período da Segunda Grande Guerra – o caso das charges”. UFPR, Curitiba, 2004.

SCOVENNA, Sandra Maret. “Um combatente do lápis em vigília: as crônicas de Belmonte contra o autoritarismo”. Projeto História, São Paulo, n.35, p. 357-366, dez. 2007.

COGGIOLA, Oswaldo (Org.). “Segunda Guerra Mundial”. SP: Xamã/FFLCH-USP, 1995.

Indicações de leitura

Para saber mais leia “Caricatura dos Tempos – As charges de Belmonte”, por Maria Sette, no Blog BBM. Disponível em: <https://blog.bbm.usp.br/2016/caricatura-dos-tempos-as-charges-de-belmonte/>.

“Belmonte”, texto publicado pelo Museu Afro e que apresenta a vida e a pluralidade de produções do autor. Disponível em: <http://www.museuafrobrasil.org.br/pesquisa/indice-biografico/lista-de-biografias/biografia/2017/06/13/belmonte>. 

MACÊDO, José Emerson Tavares. “O uso das charges como recurso visual no ensino de História”. Disponível em: <http://anpuhpb.org/anais>.

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Millena Pereira Machado é graduanda em História pela FFLCH-USP e bolsista da BBM pelo Programa Unificado de Bolsas (PUB-2023-2024).

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