Em relação ao gênero da literatura de viagem, talvez cause surpresa a informação de que existem, em quantidade considerável, relatos de autoras europeias que viajaram para terras distantes, às vezes até desacompanhadas, em momentos em que a participação feminina fora dos domínios domésticos era ainda incipiente. Com poucas exceções, o que elas tinham em comum era uma pátria detentora de colônias, riqueza, acesso à educação, familiares que também viajavam e escreviam, e algum desdém pelas normas que não recomendavam que senhoras respeitáveis tivessem pretensões aventureiras.
Como é de se esperar, o Brasil era um destino comum, principalmente as regiões da Bahia e do Rio de Janeiro, e as visitas produziram relatos de tons e intenções variados, em sua maioria publicados ao longo do século XIX.
Vários relatos integram o acervo da BBM e a biblioteca digital, conheça algumas delas a seguir:
Maria Graham
A inglesa Maria Graham escreveu um dos relatos mais conhecidos sobre o Brasil, publicado em 1824, quando ela já era uma autora consolidada de livros de viagem. Diário de uma viagem ao Brasil comenta as três vezes que esteve no país, visitando Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro entre 1821 e 1823, a princípio acompanhando seu marido, o capitão da marinha inglesa Thomas Graham, e depois da sua morte no Chile, viaja sozinha. Paralelamente às esperadas frustrações com o clima, a comida, as cidades e seus habitantes, Graham descreve as mudanças durante os encaminhamentos do processo de independência do Brasil. A autora se destacava nos círculos da elite pelo seu alto nível de instrução e suas conexões importantes, e acabou observando as insatisfações com a Coroa portuguesa de dentro dos altos escalões da sociedade e da política, inclusive tendo contato com a família de D. Pedro I; Graham se tornaria preceptora de Maria da Glória, filha do imperador, e manteve correspondência com a imperatriz Leopoldina depois do seu retorno à Inglaterra. A proximidade é tamanha que há no livro transcrições de correspondência discutindo assuntos de Estado, inclusive do próprio D. Pedro I.
Quinta-feira, 10 de Janeiro – Houve ontem uma reunião da Câmara do Rio e, após uma curta deliberação, os seus membros foram em procissão, acompanhados de grande concurso de povo, ao príncipe, com uma enérgica petição contra sua saída deste país e uma viva súplica para que ele ficasse em meio ao seu fiel povo. S.A.R. recebeu-os gentilmente e respondeu que, desde que parecia ser a vontade de todos, ele permaneceria. Esta declaração foi recebida com gritos e com entusiasmo, correspondidos com descarga de artilharia e com todos os sinais de regozijo público. (Graham, 1824)
Acompanham o texto ilustrações da autora, que também era artista amadora, retratando as paisagens brasileiras. Há também desenhos do pintor inglês Augustus Earle, que além das paisagens, representava cenas urbanas, havendo especial interesse pelo tema da escravidão e a violência inerente à ela.
Elizabeth Agassiz
Assim como o livro de Graham, o relato redigido pela educadora estadunidense Elizabeth Agassiz e seu marido, o zoólogo suíço Louis Agassiz, tem uma abordagem que se volta menos ao exótico e mais a uma postura de pesquisa, tendo inclusive a preocupação em definir termos científicos usados no texto. Viagem ao Brasil é lançado em 1869 relatando a expedição Thayer, que reuniu uma equipe de pesquisadores para estudar espécies de peixes no rio Amazonas e no Rio de Janeiro.
O assunto atraía atenção por estar no contexto das investigações em torno da origem das espécies e os resultados do estudo seriam um dos argumentos para Agassiz defender que o surgimento e desaparecimento das espécies estavam diretamente motivados pela ação de um criador e assim, não teriam uma relação de parentesco entre si, e sim origens isoladas; seu contemporâneo Charles Darwin, como se sabe, defendia o oposto. Agassiz estendia sua teoria aos seres humanos, afirmando que as raças humanas teriam origens e características diferentes e definidoras, sendo a miscigenação não só indesejável, como “contaminante” para as raças, apagando seus traços mais positivos e característicos, criando seres inferiores, sem caráter. Mais tarde tais teorias seriam base para pensamentos como a eugenia.
A sociedade brasileira é então uma grande vitrine para os observadores estrangeiros, não tão habituados à escravidão, muito menos às proporções do tráfico de escravos no Brasil. Nos relatos, o repúdio à prática é quase um consenso, havendo em praticamente todos os textos das viajantes comentários perplexos diante das condições às quais os escravos eram submetidos. Ao mesmo tempo, contudo, há igual perplexidade diante da presença de negros livres na sociedade, sobretudo em círculos um pouco mais elitizados.
E os negros continuavam a dançar ao clarão duma grande fogueira. De tempos em tempos, quando a sua excitação atingia o mais alto grau, eles atiçavam as chamas que projetavam estranhos e vivos clarões sobre o grupo selvagem. Não se podem contemplar esses corpos robustos, nus pela metade, essas fisionomias desinteligentes, sem se formular uma pergunta, a mesma que inevitavelmente se faz toda vez que a gente se encontra em presença da raça negra: “Que farão essas criaturas do dom precioso da liberdade?” O único meio de pôr um termo às dúvidas que nos invadem então é de pensar nas conseqüências do contato dos negros com os brancos. Pense-se o que se quiser dos negros e da escravidão, sua perniciosa influência sobre os senhores não pode deixar dúvidas em ninguém. (Agassiz, 1869)
Ina von Binzer
A professora alemã Ina von Binzer, ou Ulla von Eck como assinava, escreve em uma das suas cartas: “Estará certa essa manifestação de boa índole e seremos nós disciplinados demais?”. A pergunta é dirigida a sua amiga na Alemanha, com quem se correspondia relatando suas muitas frustrações nos anos em que morou no Brasil. Binzer é uma das viajantes que não possuía grande riqueza, e veio ao Brasil a trabalho: educar os filhos de um fazendeiro no Rio de Janeiro e depois trabalha em São Paulo, também lecionando. As cartas de Binzer são reunidas em 1887, em um livro intitulado Alegrias e tristezas de uma educadora alemã no Brasil, publicado em português apenas em 1956. Seus relatos são repletos de comentários um tanto cômicos sobre as dificuldades de educar crianças brasileiras com métodos alemães e alguns episódios típicos de choques de culturas.
Um deles se passa na noite de São João de 1882, foguetes estouravam para todos os lados formando uma nuvem de fumaça que fatalmente entrava nas casas. Gente de todas as idades e estratos sociais estourava seus foguetes e estalinhos, muitas vezes das janelas em direção às ruas. Ela descreve com muito choque as senhoras elegantes empunhando os canudos dos foguetes e se divertindo muito, assim como os estudantes aparentemente inofensivos até o momento que cruzassem com uma senhora, sobretudo se fosse estrangeira, que seria prontamente aterrorizada com estouros mirados nos seus pés. Irritada, Binzer não compreende o fascínio dos brasileiros com a brincadeira, mas dirige seus lamentos apenas à amiga alemã, guardando para si as certezas sobre a falta de civilidade dos brasileiros.
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Diante da novidade que esses relatos podem representar, a romantização das figuras das autoras é quase inevitável. Porém, ainda que o enfrentamento das dificuldades das longas viagens e a publicação dos relatos sejam precedentes importantes, também é verdade que nos textos não há um discurso que indique uma militância nesse sentido, e que não os textos não possuem como um todo um diferencial de estilo ou conteúdo que possa ser justificado pelo gênero.
No entanto, ainda que exista a conformidade com a literatura de viagem que já era publicada aos montes na Europa graças à internacionalização do comércio e industrialização da imprensa, a dificuldade de encontrar traduções, reedições ou estudos sobre esses relatos também aponta que eles em geral não recebem atenção equivalente, apesar do óbvio valor de registro histórico que possuem; Maria Graham é uma exceção. O estudo dos Agassiz, por exemplo, muitas vezes é referido como sendo apenas de Louis Agassiz, embora Elizabeth também seja uma pesquisadora de grande porte, tenha redigido, participado da expedição e tenha seu nome impresso no livro – nas primeiras edições, apenas Senhora Agassiz.
Outras leituras do acervo da BBM:
Jemima Kindersley , Cartas da ilha de Tenerife, 1777
Rose de Freycinet, Compagne de l’Uranie, 1817-1820
Maria Graham, Diário de uma viagem ao Brasil e de uma estada nesse país durante parte dos anos de 1821, 1822 e 1823, 1824
Ida Pfeiffer, Viagem de uma mulher ao redor do mundo, 1858
Elizabeth e Louis Agassiz , Viagem ao Brasil, 1869
Anne Brassey, A voyage in the Sunbeam our home on the ocean for eleven months, 1878
Adèle Toussaint, Une parisienne au Brésil avec photografies orginales, 1878
Marie von Langendonck, Une colonie au Brésil, 1883
Carmem Olivier de Gelabert, Viaje poética a Petropolis, 1872
Ina von Binzer, Alegrias e tristezas de uma educadora alemã no Brasil, 1883
Lady Isabel Burton, The romance of Isabel Lady Burton, 1897
Marie Robinson Wright, The new Brazil: its resources and attractions; historical, descriptive and industrial, 1901
Li um relato interesante sobre o Rio de Janeiro numa versão em castelhano (Universidad de Magallanes) do livro “Across to Patagonia” (1880) da escritora britânica Lady Florence Dixie (1855-1905). Mulher incrível, primeira não nativa a chegar em Torres del Paine. Rumo ao Sul da América ela faz uma escala no RJ e descreve, no primeiro capítulo, a chegada numa narrativa imperdível que nos remete, ateh mesmo ao Rio de agora. Vale conhecer
Obrigada pela indicação Ricardo! Consultei aqui e a edição de 1880 em inglês, ilustrada, faz parte do acervo, você pode mandar um email para consultá-la: biblioteca@bbm.usp.br.
https://goo.gl/yfmNQV