“Lincha! Mata!” foram alguns dos gritos direcionados a Flávio de Carvalho por uma multidão que minutos antes caminhava pacificamente em uma procissão do Corpus Christi de 1931 e que teria perseguido o artista pelas ruas do centro de São Paulo. Em Experiência nº 2 – realizada sobre uma procissão de Corpus Christi – Uma possível teoria e uma experiência o autor narra e analisa como uma multidão passou de um pacífico grupo de cristãos celebrando sua fé para uma turba raivosa e violenta, atiçada pelas suas provocações.
Flávio de Carvalho foi engenheiro de formação, mas transitou entre as áreas da arquitetura, pintura, desenho, dramaturgia e cenografia durante sua carreira, entre as décadas de 1920 a 70. Estudou na Europa no momento mais ativo das vanguardas artísticas (anos de 1910 e 20) o que influenciou largamente sua sua produção, assim como a da maioria de seus pares modernistas. Nele, porém, havia uma postura especialmente aguerrida e radical, por isso foi alvo de constantes censuras e centro de várias polêmicas, como essa da “Experiência nº 2”.
O experimento de multidões
Antes de qualquer texto do autor, no início do livro há a reprodução de uma nota publicada no jornal O Estado de S. Paulo no dia seguinte ao da experiência:
“Há tempos [Flávio de Carvalho] vem se dedicando a estudos sobre psicologia das multidões e tem mesmo alguns trabalhos inéditos sobre a matéria. Para melhor orientação dos seus estudos, resolvera fazer uma experiência sobre a capacidade agressiva de uma massa religiosa à resistência da força das leis civis, ou determinar se a força da crença é maior do que a força da lei e do respeito à vida humana”.
Carvalho conta no livro que no momento em que observava a procissão, teve a ideia fazer uma experiência para “desvendar a alma dos crentes”, que depois será base da sua análise psicológica:
Tomei logo a resolução de passar em revista o cortejo, conservando o meu chapéu na cabeça e andando em direção oposta à que ele seguia para melhor observar o efeito do meu ato ímpio na fisionomia dos crentes. A minha altura, acima do normal, me tornava mais visível, destacando a minha arrogância, e facilitando a tarefa de chamar atenção (…).
Os olhares inicialmente espantados e curiosos vão se tornando indignados e agressivos, até chegar um um momento em que, se vendo acuado, o autor tenta dissuadir a multidão de atacá-lo com gritos de “Covardes! Mil contra um!”. A estratégia não funciona e a experiência culmina em uma perseguição pelas ruas que termina em uma lanchonete. A multidão é, então, apartada pela polícia e retoma os cânticos.
No limiar de expressões
30 anos mais tarde, a proposta de Flávio de Carvalho talvez tivesse sido rapidamente entendida como artística, expressão daquilo que se estabelecia nos EUA e na Europa sob o nome de performance, isto é, uma ação realizada em um momento e local específico, cujo foco principal está na prática, e não na produção de um objeto depois exposto e monetizado. Porém, em 1931, a experiência de Flávio de Carvalho foi classificada como psicanalítica e sociológica, e só poderia se colocar como tal. Uma compreensão mais ampla do fazer artístico se consolidaria realmente apenas na década de 60 com a ascensão de artistas como o compositor John Cage ou o Grupo Fluxus nos EUA e aqui, com Hélio Oiticica e Lygia Clark.
É natural então que se esperasse objetividade científica do estudo. O autor parece sinalizar em favor de uma postura coerente com um estudo sério, tanto pela presença da nota de jornal citada anteriormente, quanto pela descrição “Engenheiro civil, membro do instituto de engenharia”, logo abaixo da sua autoria na folha de rosto do livro. Quase um epíteto, uma declaração atestando a credibilidade do relato e das análises. No entanto, esses fatos listados tão cuidadosamente no início do livro são seguidos de uma “Advertência” que vai no sentido oposto, colocando em dúvida essa credibilidade:
“Todas as ideias expostas, todas as conclusões, são tentativas para atingir uma suposta verdade. Algumas das exposições se apresentam de uma maneira aparentemente exagerada – é uma ampliação da vida normal, uma espécie de visão microscópica da vida anímica, fenômeno ilusório e imperceptível a olho nu.”
Aqui se confirma que existe uma boa dose de invenção no relato, e o rigor científico da longa análise comportamental é tão presente quanto a imprecisão desses fenômenos da alma imperceptíveis aos olhos. A maneira como a experiência é descrita – uma narrativa espontânea, que pontua situações absurdas – reforça a dúvida em relação à real proposta do estudo, à “suposta verdade” que ele deseja alcançar. Por exemplo: quando ele diz escolher um grupo de mulheres jovens no meio da procissão para, segundo ele, dominar por meio do flerte e pelo suposto poder de sua presença masculina, e assim controlar parte da multidão. Isso por sua vez servirá de base para suas teorias hoje meio disparatadas mas que carregam embasamento na teoria psicanalítica da época.
Empreendi imediatamente uma série de flirts, escolhendo entre outras 2 louras bonitas, 2 morenas bonitas e 2 feias de cada tipo. Procurei manter com as escolhidas um flirt razoável, tanto quanto me era possível dentro de um ambiente que se tornava a cada instante mais hostil. Fui lentamente correspondido, principalmente pelas feias. Trocamos longas e voluptuosas mensagens, promessas fictícias, arrependimentos, enfim, toda a costumada gama amorosa humana.
Essas considerações, unidas à outras ações excêntricas de Flávio de Carvalho inclinadas ao espetáculo e ao choque, permitem compreender o estudo como uma interseção entre as áreas da experiência científica e da experiência plástica, e a entender suas propostas como antecedentes de formas de expressão artística que se tornariam correntes anos depois. Vale lembrar ainda que com a “Experiência nº 3”, também chamada de “New Look” (1956), Flávio de Carvalho criou e desfilou pelas ruas de São Paulo uma nova vestimenta masculina adaptada ao calor do Brasil composta por saia, sandálias e meia arrastão. A “Experiência nº 1”, por sua vez, teria consistido em simular um afogamento em uma festa de família, mas não existe nenhum registro confiável de sua veracidade. A “Experiência nº 2” parece ser então um meio termo entre as outras duas, ficando entre o espetáculo, a ficção, a ciência e a estética.
Para saber mais, consulte a primeira edição digitalizada na BBM digital: