As pinturas e gravuras de Jean Baptiste Debret, pintor francês que integrou a Missão Artística Francesa, estabelecida no Rio de Janeiro em 1817 por iniciativa de Dom João VI, são reconhecidas por seu valor artístico, mas mais do que isso por seu caráter documental. Debret integrou a Missão como pintor histórico e quando retornou à França publicou o livro “Viagem pitoresca e histórica ao Brasil”, que contém litografias feitas a partir de suas pinturas e textos que comentam as imagens. Nos três volumes do livro, publicados entre 1834 e 1839, Debret pretende documentar a sociedade e cultura brasileira, revelando de tribos indígenas a cenas da vida cotidiana do Rio de Janeiro.
A pintura intitulada “Dança dos selvagens da Missão de São José” é uma das pranchas que compõe o primeiro volume da “Viagem pitoresca”. Ao descrever os índios, Debret elogia seu gosto e delicadeza, ressaltando “a regularidade simétrica das linhas de suas tatuagens”, ao mesmo tempo que considera as pinturas corporais “engenhosas imitações das vestimentas militares europeias”, pelas cores características.No entanto, há algo notável em relação a essa imagem quando comparada com outra gravura presente no acervo:
“Dança indígena na Missão de São José” é uma das gravuras que ilustra o relato de viagem de Georg Langsdorff, russo-alemão que acompanhou uma viagem de volta ao mundo realizada entre 1803 e 1807.
A semelhança entre as imagens poderia fazer pensar que os dois viajantes visitaram o mesmo lugar, e por isso registraram a mesma tribo. Mas não é bem assim: o desenho do relato de Langsdorff não apenas retrata uma viagem feita pelo menos 10 anos antes da chegada de Debret ao Brasil, como foi feita em um lugar nunca visitado pelo pintor francês. A “Missão de São José” visitada pelo alemão se localiza na Nova Califórnia, que era então parte do Vice-Reino da Nova Espanha.
A inspiração clara de Debret na gravura dos índios da Missão de São José permite um questionamento a respeito de seus registros. Desenhos e pinturas que seguiam modelos de outras pinturas eram comuns à época. Mas a apropriação de imagens de um lugar completamente diferente e distante para elaborar um registro com pretensão de ser um documento histórico é bastante problemática.
O exercício de observação direta, muito valorizado no registro de viagens, não foi sempre praticado por Debret, que, embora tenha retratado muitas tribos indígenas, talvez não tenha ido muito além dos limites da cidade do Rio de Janeiro. Mas além de utilizar relatos e objetos trazidos por aqueles que viajaram e viram as diferentes tribos e pessoas do Brasil, o pintor abriu mão da fidelidade do registro ao trazer referências externas ao país.
As pinturas de Debret têm grande importância na construção de um ideário de Brasil. Ao expor essa curiosa similaridade, não pretendemos por em xeque o talento ou importância de Debret, mas incitar uma discussão quanto à validade da dimensão documental de um de seus registros. Mais do que isso, vale pensar como o imaginário sobre o Brasil, construído por um olhar europeu ou europeizado, se valeu não apenas de documentos, mas em grande medida também de invenções.
A ideia da existência de uma “missão francesa” já foi superada e demonstrada como equivocada por Lília Schwarcz em seu livro “O sol do Brasil”, de 2008. Quem escreveu o texto poderia se informar mais sobre Debret e a historiografia mais recente sobre o tema. Esse mito da “missão” foi criado pelo próprio Debret e alimentado por Porto-Alegre e outros de seus pupilos.