Cadernos do Povo Brasileiro – o livro que antecipou o golpe de 64

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A editora Civilização Brasileira foi, sob comando de Ênio Silveira, entre as décadas de 50 e 70, uma das mais importantes do país. Quando Ênio Silveira se tornou o responsável pela Civilização Brasileira, em 1951, as publicações do selo eram poucas e seu principal negócio era uma livraria. Foi nas mãos de Ênio que a editora cresceu e ganhou um acervo de publicações importantíssimo, que incluiu as primeiras traduções de
Ulisses, de James Joyce, e Lolita, de Vladimir Nabokov. Além das importantes traduções inéditas, o editor estimulava a publicação de escritores nacionais, e a grande produção tanto de autores inéditos como de reimpressões fez com que a Civilização Brasileira se tornasse, nos anos 60, a maior editora de literatura moderna brasileira.

O trabalho de Ênio Silveira à frente da editora também é conhecido pelas muitas publicações de esquerda. O conteúdo de economia, sociologia e política publicado pelo selo fez da Civilização Brasileira uma das mais importantes editoras progressistas da época. Uma importe série de publicações da editora foi a coleção “Cadernos do povo brasileiro”. Publicada entre 62 e 64, a coleção foi uma parceria entre a Civilização Brasileira, o ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros, que passava por uma fase de radicalização política marcada pela defesa das reformas de base) e o Centro Popular de Cultura da UNE (União Nacional dos Estudantes), e consistiu em uma série de 24 livretos que tratavam, em linguagem didática, de temas centrais para os movimentos sociais. Os temas, polêmicos, incluem “Por que os ricos não fazem greve?” e “Vamos nacionalizar a indústria farmacêutica?”. O objetivo das publicações é esclarecido sinteticamente no texto de apresentação da coleção: “os grandes problemas de nosso país são estudados nessa série com clareza e sem qualquer sectarismo: seu objetivo principal é o de informar. Somente quando bem informado é que o povo consegue emancipar-se.” A coleção, que acabou por ser interrompida com o golpe militar, pode ter chegado a uma tiragem total de 1 milhão de exemplares, segundo estimativas de Ênio Silveira, e sua grande inserção se deve principalmente ao trabalho do CPC da UNE, maior responsável pela divulgação nos movimentos sociais e sindicatos.

Entre os livros mais conhecidos da coleção, o quinto volume se destaca pelo momento de sua publicação: “Quem dará o golpe no Brasil?”, escrito por Wanderley Guilherme dos Santos, foi publicado em 1962, dois anos antes do golpe que instaurou a ditadura militar. O livro, organizado em 21 capítulos breves, apresenta algumas questões concretas que indicam a possibilidade de um golpe no país e analisa alguns fatores que determinariam suas características.

Segundo Wanderley Guilherme, o panorama da situação que torna possível esse movimento golpista seria: os movimentos populares, que crescem e se organizam a partir da insatisfação com o governo, se tornam uma ameaça para a minoria dominante, que passa a usar essa insatisfação a seu favor, criando a ideia de que, para resolver os problemas da nação, seria preciso um governo com autoridade acima dos partidos. É a partir desse quadro geral que o sociólogo se aprofunda em algumas questões centrais, como as falácias do discurso defensor de um governo forte. O autor defende que “as causas das dificuldades do País, e sobretudo a causa das dificuldades do povo das quais se originam aquelas reivindicações, residem na estrutura do País que, como vimos, se define como nação capitalista dominada pelo imperialismo”, estrutura essa que se tornaria cada vez mais arcaica e incapaz de resolver os problemas que ela mesma criou, como o avanço do movimento popular. Santos continua expondo o grande dilema criado nessa situação: a manutenção da estrutura básica, às custas do abafamento das reivindicações dos movimentos sociais, ou a modificação dessa estrutura fundamental, que cria ela mesma dificuldades que não pode resolver. Para evitar esse dilema, uma vez que não há interesse da minoria privilegiada em alterar a estrutura, “os arautos do golpe encarregam-se de veicular que são as reivindicações populares, por um lado, e a inépcia do regime atual, por outro, que constituem a fonte dos problemas que afligem a Nação”. 

Também o problema da autoridade do governo forte, que se coloca acima dos partidos, é abordado por Santos, que considera que “um dos componentes da situação que permite à minoria privilegiada instalar a ditadura do governo forte é o reconhecimento geral de que os partidos políticos existentes sofreram colapso, perderam o rumo, já não mais representam a vontade popular e que, em consequência, só contribuem para dificultar ainda mais a vida do povo e levar o País à perdição e ao caos”. Para que se instaure a ditadura, seria necessário que uma parcela considerável do povo aceitasse o argumento golpista de que a solução para essa ineficiência seria um governo acima de qualquer partido. Por isso, Wanderley Guilherme defende que seria preciso “mostrar ao povo que é possível um governo acima dos partidos existentes mas que é absolutamente impossível um governo acima das classes em luta”.

Outra questão abordada é a diferença entre o governo vigente à época, que seria uma ditadura econômica e política, e uma possível ditadura do governo forte. Mas qual seria, então, a diferença entre os dois regimes? Para o autor, na ditadura instalada por meio de um golpe, “a minoria privilegiada dirigente se vê obrigada a rasgar suas próprias leis”. Assim, “a ditadura do governo forte se caracteriza pelo fato de que todas as medidas que toma são justificadas, oficialmente, por imperativos de segurança ou salvação nacionais”, e é necessário que todo o povo seja alertado de que, como já sabe a parcela politizada, esses imperativos de segurança e salvação referem-se efetivemente não à nação, mas à classe dominante.

Apesar do quadro complexo e da força do movimento golpista, Wanderley Guilherme ressalta que “a ação totalitária está condenada, historicamente, ao fracasso total”. O sociólogo continua, lembrando que “os inimigos do povo trabalham contra o curso da história, a qual nos diz que, quando o povo luta, é fatal que termine vencedor”, e esclarece assim sua intenção com o texto: é preciso conscientizar o povo não apenas da iminência do golpe, mas também da importância de sua luta, “tem-se de dizer ao povo que sua vitória é certa, desde que saiba lutar e não abandonar jamais a luta, pois a vitória é fruto não da justiça simplesmente, mas objetivamente da luta social pela justiça.”

Maria

2 Comments

  1. Saudades de quando vocês digitalizavam o acervo, dentro da vontade original do doador…

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