Tratado Descritivo do Brasil em 1587

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por Luis Augusto Santos

O Tratado Descritivo do Brasil, escrito por Gabriel Soares de Sousa, conta em detalhes e com riqueza de exemplos os traços mais marcantes do Brasil quinhentista. Os caranguejos, o pau brasil, a rota dos ventos, os costumes dos indígenas, a fertilidade do solo, os engenhos de açúcar e muitos outros tópicos dividem as páginas deste livro, considerado fundamental para a compreensão de como se deram os primeiros contatos dos portugueses com esta terra e com a gente que nela vivia. 

Não sendo apenas o relato de um viajante curioso e impressionado com a beleza e a estranheza dessa terra brasilis, o Tratado Descritivo do Brasil é redigido por um colono que se estabeleceu na Bahia, onde desenvolveu seus negócios, e por aqui morreu após muitos anos de estadia. Nas linhas de seu relato encontramos a descrição das localidades que compunham toda a costa do Brasil à época; também somos informados sobre a vegetação local, sobre ervas medicinais, sobre frutos e sobre propriedades aproveitáveis das árvores. Soma-se a isso considerações mineralógicas, observações acerca da extensa fauna distribuída por terra e mar, descrições dos ânimos e hábitos das tribos encontradas nas margens do Atlântico, avaliações acerca das potencialidades que a terra oferece, conselhos acerca da proteção das províncias e povoados. 

Dentre toda essa diversidade temática, em meio a este esforço em se classificar toda essa variedade de objetos, um mesmo fio condutor ordena e dá sentido a esta pluralidade que a obra sintetiza: o ímpeto colonizador. São sobretudo os interesses coloniais que pautam a produção do documento, assim como o caráter dos conhecimentos coligidos, das análises realizadas e dos apontamentos prescritos. Nesse sentido, o texto é de especial interesse para aqueles que querem aprender o vocabulário colonial e os conceitos segundo os quais flora, fauna e indígenas foram inseridos no imaginário europeu e transformados em fonte de riqueza.

Embora a obra contenha passagens indispensáveis para o estudo da realidade colonial, o Tratado passou mais de dois séculos sem ser publicado integralmente. Em um período de intensa disputa pela posse das vastas e incógnitas terras americanas, era estratégico e indispensável que cada coroa controlasse o fluxo de informações sobre suas colônias;  provavelmente por esse motivo o presente texto teve de atravessar os séculos de maneira subterrânea, circulando fragmentado, com falta de referências e disperso em manuscritos de um e de outro lado do Atlântico.

Foi somente em 1851 que o Tratado Descritivo do Brasil recebeu uma edição impressa, revisada e comentada. Este feito foi realizado pelo historiador brasileiro Adolfo de Varnhagen, que conseguiu restituir a integridade do escrito, expurgando erros e imprecisões das versões anteriores. 

Contexto de produção da obra

Gabriel Soares de Sousa nasceu provavelmente em 1540 na província de Ribatejo, Portugal. Mas ainda jovem desembarca na Bahia, em 1569, local onde se firma e se posta como notório colono. Na região do Recôncavo Baiano chegou a possuir dois engenhos, sendo também proprietário de grandes extensões de terra, de gado, móveis, casas na capital e de mão de obra escravizada negra e indígena. Seu êxito no empreendimento colonial foi tanto que chegou a se tornar vereador da Câmara de Salvador. 

Não contente com suas posses, Gabriel Soares de Sousa resolveu empenhar esforços para levar a termo uma missão iniciada por seu irmão – e que só se concretizaria de fato no século XVIII: encontrar ouro e pedras preciosas no curso do rio São Francisco. É com esse objetivo que Gabriel se dirige para a corte de Felipe II da Espanha, monarca da União Ibérica (1580-1640), para que lhe fosse concedido o direito de exploração das riquezas do rio São Francisco. É durante os anos em que passa na corte tentando obter os privilégios de exploração do rio que Soares escreve o Tratado Descritivo do Brasil, como um meio de demonstrar ciência sobre a colônia e de sustentar a viabilidade do empreendimento proposto.

A obra foi tão bem recebida que:

Em dezembro de 1590, foram despachados os requerimentos de Gabriel Soares, conferindo-lhe uma série de concessões, como o título de “Capitão- mor e Governador da conquista e descobrimento do rio São Francisco”; o direito de nomear, por seu falecimento, um sucessor, que gozaria dos mesmos títulos e poder; a permissão de prover todos os ofícios da justiça e da fazenda, no seu distrito; o direito de distribuir o foro de cavalheiros fidalgos a cem pessoas que o acompanhassem; e, além de vários outros itens, obteria o título de Marquês.

Gabriela Soares de Azevedo – Leituras, notas, impressões e revelações do Tratado Descritivo do Brasil em 1587 de Gabriel Soares de Sousa, p. 16.

Apesar desse êxito, o final dessa história e do próprio Gabriel não foram das melhores. Ele morre no sertão, antes de achar as pedras preciosas que acreditava encontrar na nascente do São Francisco; algumas versões falam que padeceu por doença, outras que os indígenas que mantinha em cativeiro o feriram fatalmente. 

Xilogravura de Marcelo Grassmann que ilustra Bestiário – Trechos do Tratado Descritivo do Brasil em 1587,de Gabriel Soares de Sousa

Sobre a costa brasileira e sobre a Bahia de Todos os Santos 

A primeira parte da volumosa obra é intitulada “Roteiro geral da costa brasílica, com largas informações de toda a costa do Brasil”; a segunda parte se chama “ Memorial e declaração das grandezas da Bahia”, na qual encontramos uma abordagem mais aprofundada dos vários temas citados e ainda um trecho inteiro dedicado aos costumes dos povos indígenas da Bahia. 

Na descrição da costa do Brasil, Gabriel Soares descreve a miríade de povoações que foram sendo criadas após a divisão das 15 capitanias hereditárias, instituídas em 1534 por D. João III, descrevendo os sucessos e insucessos das missões de povoamento e de exploração dos territórios. Os nomes que visam dar conta das ilhas, províncias e engenhos são muitos, e os processos de estabelecimento no litoral são complexos. Porém, destaca-se a riqueza dos engenhos de Pernambuco e da Bahia, locais que mais prosperaram no século XVI, graças à monocultura do açúcar e à mão de obra escravizada indígena e negra.    

Nesta primeira parte do livro o autor se concentra em construir uma historiografia das ocupações territoriais, narrando sucintamente a chegada dos primeiros portugueses, a concessão das capitanias hereditárias, a centralização destas em Governos Gerais, os embates com os concorrentes franceses e as experiências localizadas de enfrentamento com os “gentios” – termo pejorativo usado para se referir à população indígena. A outra grande preocupação que norteia esta seção do livro é o detalhamento geográfico das regiões de interesse econômico, sendo notável a precisão com que o autor informa-nos sobre a distância entre um rio e outro, as condições de navegação que oferecem e quais embarcações transitam por eles.

A essas informações se juntam passagens que relatam momentos importantes de conquista territorial. O curso destas histórias segue as margens dos muitos rios citados, como o rio de Itamaracá, rio de Igarassu, rio de São Domingos, rio de Jaguaribe, rio de Jaboatão, rio do Ipojuca, rio de São Francisco; e conta sobre as dificuldades enfrentadas pelos heróis pacificadores em suas cruzadas civilizatórias, assim como também exalta o êxito destes empreendimentos. Gabriel Soares descreve a província de Olinda do seguinte modo: 

É tão poderosa esta capitania que há nela mais de 100 homens que têm de mil até 5 mil cruzados de renda, e alguns de 8, 10 mil cruzados. Desta terra saíram muitos homens ricos para estes reinos que foram a ela muito pobres, com os quais entram cada ano desta capitania 40 e 50 navios carregados de açúcar e pau-brasil, o qual é o mais fino que se acha em toda a costa; importa tanto este pau a Sua Majestade que o tem agora novamente arrendado por tempo de 10 anos por 20 mil cruzados cada ano. E parece que será tão rica e poderosa, de onde saem tantos provimentos para estes reinos, que se devia ter mais em conta a fortificação dela, e não consentir que esteja arriscada a um corsário a saquear e destruir, o que se pode atalhar com pouca despesa e menos trabalho.

Tratado descritivo do Brasil, 1851, p. 35

Notícia etnográfica do gentio tupinambá que povoava a Bahia

A partir do capítulo 147 da segunda parte do Tratado, Gabriel Soares de Sousa faz observações e análises sobre o comportamento e a moralidade dos vários povos indígenas com os quais teve contato, especialmente os Tupinambás, apresentando como se dão suas relações de parentesco, como se ornamentam, como caçam e comem, de que maneira se unem matrimonialmente, como criam seus descendentes, sobre como agem as mulheres em trabalho de parto, sobre as festividades nas quais bebem, cantam e dançam, sobre seu espírito belicoso e como se portam em guerra etc.

Um quadro pintado com tintas fortes é o que concerne à sexualidade dos tupinambás. Segundo o autor, eles são  “tão luxuriosos que não há pecado de luxúria que não cometam.” Aqui é notável o espanto do autor quanto à naturalidade dos encontros sexuais entre os tupinambás, como também sobre a normalidade de tanto homens como mulheres se deitarem com vários outros que não seus cônjuges. 

Por outro lado, Gabriel louva as habilidades impressionantes de muitos indígenas. Ressalta suas qualidades enquanto navegadores, caçadores, nadadores e flecheiros; reforça o fácil desenvolvimento que muitas tribos têm em aprender ofícios como a marcenaria, a criação de gado e a tecelagem, porém critica-lhes a inabilidade com matemática.  

As características sócio-culturais abordadas são muitas, porém, a passagem que mais se destaca e que de certo modo se posta como uma interpretação fundante acerca dos indígenas, é uma reflexão sobre a linguagem dos Tupinambás, feita por Pero de Magalhães dez anos antes do Tratado, e da qual Gabriel se vale: 

“Ainda que os tupinambás se dividiram em bandos e se inimizaram uns com os outros, todos falam uma língua que é quase geral pela costa do Brasil (…) São muito compendiosos na forma da linguagem, e muito copiosos no seu orar; mas falta-lhes três letras do A,B,C, que são F, L e R (…) Porque se não tem F, é porque não tem fé em nenhuma coisa que adorem (…) E se não têm L na sua pronunciação, é porque não tem lei nenhuma que guardar, nem preceitos para se governarem; e cada um faz lei a seu modo, e ao som da sua vontade; (…) E se não tem esta letra R na sua pronunciação, é porque não tem rei que os reja, e a quem obedeçam, nem obedecem a ninguém (…)”  

Tratado descritivo do Brasil, 1851, p. 308-309

Gramáticas do Colonialismo Ibérico  

A percepção que temos ao percorrer as páginas do Tratado, são a de um Brasil que vai se constituindo como entreposto comercial, como uma terra que dialoga com as outras costas do atlântico por meio da língua das commodities; é um diálogo que move culturas, que leva homens e mercadorias a deslizarem através do mar e liga produção, consumo, histórias de êxito e fortuna individual, relatos de naufrágio de naus em alto mar e de naufrágios de povos em plena terra. É uma história atlântica, uma história de atravessamento entre continentes, de trajetórias improváveis mas economicamente viáveis, de desejo, de fé, de antagonismo e de sofrimento. Podemos pensar este documento como a crônica de um certo tempo e lugar, como a ficcionalização, a construção de sentido, de justificativa e de legitimação de um “acidente” histórico premeditado, irreversível e que assegurou vultosos lucros às coroas ibéricas. 

O Tratado Descritivo do Brasil não conta só sobre as guerras pelo domínio de terras, riquezas e pessoas, mas relata uma batalha dos nomes, que permanecem como brasões simbolizando o poder daqueles que subjugaram seus inimigos ou com eles estabeleceram acordos. Nomes que se alternam na classificação dos rios, povoados, frutas, gentes… referenciais linguísticos nativos e ibéricos se amalgamam ao longo da costa e pelo interior do Brasil ainda hoje, como destroços a nos lembrar das batalhas do passado e das resistências do presente: vila de Cosmos, vila de Olinda, vila de Nossa Senhora da Conceição, cabo de Santo Agostinho, cabo de São Roque, Búzios, Paraíba, Pernambuco, Itamaracá, Sergipe, Porto Seguro, rio das Caravelas, Espírito Santo, cabo de São Tomé, Cabo Frio, Rio de Janeiro, São Vicente, rio da Prata; Butantã, Morumbi, Fernão Dias, Borba Gato, M’boi Mirim; os Guaianases, Carijós, Potiguares, Caetés, Aimorés, Tupiniquins, Goitacases, Papanases, Tamoios, Tupinaés, Ubirajaras, Maracás, Amoipiras.   

Na obra de Gabriel Soares de Sousa é repetitiva a referência aos anos gastos e aos cruzados investidos pelos colonos para povoar lugares já povoados, devassar paisagens e construir engenhos, projetos nem sempre concluídos, mas que garantiram títulos de honra e uma vida confortável aos que venceram os selvagens, o fluxo perigoso dos rios e as febres da mata. Relata Soares sobre o trabalho, o imenso trabalho de colonização, protagonizada por muitos notáveis e ambiciosos homens, o trabalho perigoso e altamente valorizado de se lançar ao mar e conquistar algo próximo do paraíso na terra. 

A ciência que Gabriel Soares de Sousa encerra em sua obra é expressa sobretudo pela sua capacidade de medir e classificar, de estabelecer a quantidade de cruzados ganhos e gastos nos empreendimentos, de contar as léguas que ensinam a distância entre as localidades: a linguagem com que o colono se comunica com a coroa é a linguagem das longitudes e latitudes, dos meridianos, do número de barcos que entram e saem dos portos e dos montantes que levam em açúcar, em pau-brasil; a quantidade de pastos, de gado, de igrejas e casas que compõem os simples ou complexos engenhos. A linguagem geográfica, que determina, especifica, esclarece o mistério das matas e montanhas, que cria rotas, que traça caminhos improváveis para dentro de sertões inóspitos. As quantidades, as medidas, as classificações, os desenhos, as descrições, os avisos, as recomendações do que fazer e do que não fazer ao andar por essas terras, ao tratar com o “gentio” feroz e arredio… um trabalho de muitas mentes, de muitas mãos, de muita ciência –  uma colonização não se faz sem convicção em um projeto de mundo específico, sem esperança de lucro e sem um arsenal imenso de violência racionalizada.  

Por fim, é possível notar nas palavras de Gabriel Soares de Sousa que as tribos eram valoradas segundo a parecença com os hábitos do velho mundo. As comunidades indígenas que plantavam e que tinham lavouras eram mais bem vistas do que as que somente caçavam e se alimentavam da coleta de frutos. Aqueles grupos que dormiam em redes eram considerados mais civilizados do que os que dormiam sobre folhas no chão; a língua também entrava como fator de aceitação ou de descriminação de certos agrupamentos indígenas, sendo aqueles que partilhavam de uma língua mais comum – no caso o tupi-  e sonoramente mais agradável aos ouvidos dos portugueses, os que eram escolhidos para tentativas de contato e para o estabelecimento de acordos. Os que comiam carne humana como uma forma de mantimento eram altamente desprezados, enquanto os antropofágos eram tidos apenas como vingativos e rancorosos, visto que este ato é parcialmente compreensível para Gabriel por, na sua visão, surgirem dos ódios de guerra. A “luxúria” de todos esses povos é amplamente mal vista. As tribos que tinham habilidades apreciadas pelos portugueses, como a habilidade na pesca, na caça, no trabalho e na guerra eram bastante elogiados pelos colonos. Os mais valorizados ainda eram aqueles que mantinham os tratados de paz com os portugueses, sendo os mais odiados aqueles que eram inflexíveis e não negociavam de modo algum  – nem com portugueses nem com franceses – a exploração de sua gente, de seus territórios e de seus recursos. 

Referência 

Azevedo, Gabriela Soares de. Leituras, notas, impressões e revelações do Tratado Descritivo do Brasil em 1587 de Gabriel Soares de Sousa. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2007.

SOUSA, Gabriel Soares de Tratado descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851.

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Luis Augusto Santos é graduando em filosofia pela FFLCH-USP e bolsista da BBM pelo Programa Unificado de Bolsas (PUB-2020-2021).

Curadoria

2 Comments

  1. Que enorme prazer ser surpreendida com esta excelente resenha-artigo sobre o Tratado descritivo de Gabriel Soares Sousa: uma bela escrita, informações precisas, imagens preciosas. No entanto, a resenha não só identifica a trajetória do autor e as características do escrito, mas aponta formas distintas com que o escrevente, Gabriel Soares, tratava os grupos indígenas de acordo com hábitos mais ou menos aceitáveis. E isto, sem dúvida, configura uma abordagem inovadora do resenhista Luis Augusto Santos, destacando aspectos pouco percebidos, de profundo significado, enfatizando a complexidade dos valores em confronto.
    Esta obra possui certamente um conteúdo tão interessante quanto a trajetória de Gabriel Soares, além de ser mais um capítulo da fascinante da história dos manuscritos seiscentistas. Cheia de perdas, apócrifos, cópias, mutilações, recopilações…uma trajetória tão incrível que uma cópia é pedra preciosa do acervo de José Midlin e Guita e significou a entrada nos círculos doutos de Francisco Adolfo de Varnhagen, em 1838.
    Eu quero parabenizar ao autor Luis Augusto pela bela resenha e agradecer por ter sido citada.
    O Gabriel Soares e sua obra permanecem um fonte imprescindível sobre o século XVI e cada vez mais repletos de relações com o presente.

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