200 livros: Novos intérpretes do Brasil? A geração dos anos 1960-1970

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O conceito de “intérpretes do Brasil” deve ser creditado ao crítico literário Antonio Candido por conta de seu clássico prefácio a Raízes do Brasil. Para o autor, a geração que se formou entre as décadas de 1930 e 1940 teria sido impactada por três grandes obras: Raízes do Brasil, Casa Grande e Senzala e Formação do Brasil contemporâneo. Essas obras, respectivamente de Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Caio Prado Jr., formularam não somente as mais relevantes sínteses sobre a sociedade brasileira daquela geração, como também apontavam para projetos de futuro que respondiam aos dilemas do país naquela quadra histórica.

Depois de uma década de significativa transformação da sociedade brasileira, os projetos de futuro resultantes dos processos de urbanização e industrialização dos anos 1950, disputados e construídos a partir das sínteses dos intérpretes, foram brutalmente interrompidos com o golpe de 1964. Esse contexto de reversão das conquistas econômicas e sociais, construídas por meio de estruturas democráticas, exigiu que novas formulações teóricas fossem oferecidas para compreender o país na nova conjuntura. 

Foi neste contexto, produzido a partir do golpe militar – com a circulação de intelectuais exilados, especialmente entre Chile, Estados Unidos e Europa, e com a constituição de novas instituições científicas, como a Unicamp e o CEBRAP –, que nasceria uma nova geração de intérpretes do Brasil. Uma nova geração que recuava ao passado, assim como a geração pioneira, para produzir novas sínteses que dessem conta de indicar os limites do “desenvolvimento nacional” de outrora, e apontar novos caminhos de futuro.  

A obra de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, Dependência e desenvolvimento, deve ser entendida como uma das pioneiras desta geração. Fernando Henrique, naquela altura, já tinha publicado sua tese sobre o empresário industrial brasileiro, em que mostrava o caráter associado da burguesia nacional. No livro com Faletto, por outro lado, os autores indicam uma mudança no método de análise da economia periférica: associam os elementos econômicos à sociologia e os determinantes externos às variáveis internas, isto é, à luta de classes. A obra era uma relevante crítica às teses da CEPAL, tornando-se a partir de então, uma interpretação  significativamente influente nos anos 1970.

Reunimos no presente post as obras de Maria da Conceição Tavares, Antonio Barros de Castro e João Manuel Cardoso de Mello, professores que participaram da formação da escola da Unicamp. Os autores eram herdeiros do pensamento cepalino, mas também produziram sínteses que buscavam avançar às ideias de seus mestres, explicando a dimensão da crise econômica e política dos anos 1960: tanto por meio da compreensão da dinâmica da industrialização de uma economia periférica, como pela reflexão sobre os desafios dos desequilíbrios regionais numa economia continental como a brasileira. 

Nos anos 1970, por outro lado, a partir do CEBRAP, núcleo que recebeu intelectuais cassados/aposentados pela ditadura, criou-se um novo núcleo acadêmico com interpretações de Brasil para aquela geração. Os trabalhos de Chico de Oliveira, Paul Singer e Lúcio Kowarick, por exemplo, sintetizam uma das principais teses produzidas pela instituição, que dava conta de compreender o caráter funcional da marginalização de parte da força de trabalho brasileira. Os estudos se beneficiavam dos indicadores do crescimento da desigualdade social, ocorrido durante o regime militar, para apontar como a existência de um exército industrial de reserva era condição para o desenvolvimento do capitalismo brasileiro. 

Dependência e desenvolvimento na América Latina (1970)

de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto

Fernando Henrique Cardoso & Enzo Faletto. Dependência e desenvolvimento na América Latina. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1970.

Fernando Henrique Cardoso, presidente do Brasil entre 1995 e 2002, foi um dos relevantes representantes da chamada escola uspiana de sociologia. Nascido no Rio de Janeiro em 1931, em São Paulo cursou Ciências Sociais e iniciou sua carreira como docente em Sociologia na Universidade de São Paulo. Sob orientação de Florestan Fernandes, obteve seu título de Doutor com a tese Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional em 1961. E, dois anos mais tarde, defendeu sua livre-docência com o trabalho Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil. Com o golpe militar decidiu seguir para o exterior, inicialmente atuando como pesquisador no Chile – local onde produziu sua versão sobre a teoria da dependência – e, mais tarde, como professor na Europa e nos Estados Unidos. Ao retornar ao Brasil, em 1968, permaneceu pouco tempo como professor da USP, sendo aposentado compulsoriamente pelo regime militar. Nos anos 1970, foi pesquisador e diretor do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), década em que iniciou sua trajetória política ao se filiar ao MDB e ser eleito suplente de Franco Montoro ao Senado Federal.  

Dependência e desenvolvimento na América Latina, escrito em coautoria com o sociólogo chileno Enzo Faletto, em Santiago entre 1966 e 1967, foi publicado em português em 1970. A obra seria uma das principais contribuições no influente debate em torno da teoria da dependência naquela década. Para os autores, em contraposição às teses estruturalistas da CEPAL, a nova conjuntura da economia internacional teria fechado as portas para um projeto nacional desenvolvimentista. Com a internacionalização do mercado interno – isto é, com a presença das empresas multinacionais atuando por dentro das economias periféricas – o crescimento das economias agora ocorreria por meio de um quadro de “nova dependência”, de forma que as condições de desenvolvimento e dependência não seriam mais necessariamente excludentes. Não obstante a polêmica perspectiva a respeito de uma estratégia de desenvolvimento associado, o livro trouxe relevantes contribuições metodológicas ao exigir a integração da análise sociológica à análise econômica, como também ao enfatizar a necessidade de compreender a dinâmica das lutas sociais internas ao país. 

Da substituição de importações ao capitalismo tardio (1972)

de Maria da Conceição Tavares

TAVARES, Maria da Conceição. Da substituição de importações ao capitalismo financeiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1972.

Maria da Conceição Tavares é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro e professora titular da Universidade Estadual de Campinas. Nascida em Portugal em 1930, licenciou-se em matemática na Universidade de Lisboa em 1953 e, no ano seguinte, mudou-se para o Brasil fugindo do regime salazarista. No Brasil, cursou economia na Universidade do Brasil, enquanto trabalhava como analista-matemática no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e, mais tarde, como economista no escritório da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL) no Brasil. Exilada no Chile, depois do golpe militar de 1964, manteve grande proximidade com o economista cepalino Aníbal Pinto, que foi importante influência teórica para a economista, assim como Celso Furtado. No Chile, escreveu os ensaios que depois reunidos constituíram sua principal obra, Da substituição de importações ao capitalismo financeiro. Nos anos 1970, escreveu os livros Acumulação de capital e industrialização no Brasil e Ciclo e crise: o movimento recente da industrialização brasileira, outras relevantes contribuições para compreender a dinâmica do capitalismo brasileiro.  

Da substituição de importações ao capitalismo financeiro é a reunião de quatro ensaios redigidos por Maria da Conceição Tavares entre 1963 e 1971. O ensaio que abre a obra, “Auge e Declínio do Processo de Substituição de Importações”, tornou-se uma síntese teórica e histórica sobre o processo de industrialização brasileira, em que a autora destaca os desafios do processo de transformação da estrutura econômica de um país periférico como o brasileiro. Outro ensaio de destaque presente no livro é aquele escrito em coautoria com José Serra, “Além da estagnação”. Trata-se de uma crítica à tese de Celso Furtado sobre o caráter da crise econômica da segunda metade dos anos 1960. Para os autores, a economia brasileira não viveria uma tendência à estagnação, mas uma típica crise de uma economia capitalista. 

7 ensaios sobre a economia brasileira (1971)

de Antonio Barros de Castro

Antonio Barros de Castro. 7 ensaios sobre a economia brasileira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, tomo 1, 1969; tomo 2, 1971.

Antonio Barros de Castro (1938-2011) foi um economista brasileiro e professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Cursou Economia na Faculdade Nacional de Economia da Universidade do Brasil entre 1956 e 1959. Como pesquisador e professor no Instituto Latino-Americano de Pesquisa Econômico-Social da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), assumiu papel central na formação de economistas a partir da teoria estruturalista, tendo inclusive publicado o livro, em coautoria com Carlos Lessa, Introdução à economia, uma abordagem estruturalista. A partir de 1974, tornou-se professor da Universidade Estadual de Campinas e, em 1981, professor titular do Instituto de Economia da UFRJ. No governo de Itamar Franco, foi presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, sendo um dos primeiros economistas brasileiros a produzir reflexões sobre a economia chinesa. 

7 ensaios sobre a economia brasileira é uma vigorosa obra que, mesmo herdeira do pensamento estruturalista cepalino, produz importantes críticas às teses que teriam sido dominantes sobre a economia brasileira no país durante as décadas de 1950 e 1960. Publicada em dois tomos, o primeiro em 1969, e o segundo 1971, 7 ensaios busca compreender as causas da crise do processo de industrialização brasileira. Apresentando não somente uma síntese sobre o “modelo histórico de desenvolvimento latino-americano”, Barros de Castro produz também ensaios seminais sobre o caráter da agricultura e sobre os desequilíbrios regionais no Brasil. 

O capitalismo tardio (1982)

de João Manuel Cardoso de Mello

João Manuel Cardoso de Mello. O capitalismo tardio. São Paulo: Brasiliense, 1982.

João Manuel Cardoso de Mello nasceu em São Paulo em 1942, se graduou em Direito no Largo São Francisco e realizou o curso sobre economia oferecido pelo convênio BNDE-CEPAL. Convidado pelo professor Zeferino Vaz, reitor da Unicamp, participou da fundação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade. Foi na Unicamp que defendeu seu doutorado em 1975, O capitalismo tardio, que se transformaria em uma síntese das teses que constituíam o pensamento do Instituto de Economia da Unicamp. Nos anos 1980, foi assessor técnico da Secretaria de Economia e Planejamento do Estado de São Paulo. Como assessor especial de Dílson Funaro, no Ministério da Fazenda, entre 1985 e 1987, tornou-se um dos idealizadores do Plano Cruzado. Aposentado da Unicamp, na transição para os anos 2000, fundou a FACAMP.

A tese de doutorado de João Manuel Cardoso de Mello, O capitalismo tardio, foi publicada em 1982. Como afirma o autor na introdução do livro, sua interpretação partia das formulações teóricas da CEPAL sobre a industrialização brasileira, indicando suas limitações. Defendia que a análise sobre o capitalismo periférico deveria lançar luzes sobre a dinâmica endógena de acumulação. Assim, a interpretação de O capitalismo tardio buscava superar o que se considerava como deficiente do pensamento da CEPAL: de um lado a sobredeterminação dos fatores econômicos, que desconsiderava a dimensão da luta de classes no processo histórico, e de outro lado, o excessivo papel dos fatores externos na constituição das condições para a industrialização latino-americana. Ao percorrer essas críticas, O capitalismo tardio indica o caráter particular e tortuoso do processo de industrialização brasileiro. 

Desenvolvimento econômico e evolução urbana (1968)

de Paul Singer

Paul Singer. Desenvolvimento Econômico e Evolução Urbana. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968.

Paul Singer (1932-2018) nasceu em Viena e chegou ao Brasil em 1940, fugindo da perseguição nazista aos judeus. Cursou o ensino médio em curso técnico, o que o levou a trabalhar na indústria e se filiar ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. Durante sua graduação no curso de Economia na Universidade de São Paulo, participou do Seminário de O capital, quando se aproximou do grupo que formaria o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – Cebrap, nos anos 1970. Formado em 1959, se tornou professor da USP, tanto na Faculdade de Economia como, mais tarde, na Faculdade de Saúde Pública, onde participou de um grupo de pesquisa interdisciplinar no campo da demografia. Aposentado compulsoriamente em 1969, assumiu posição de pesquisador no Cebrap, local em que desenvolveu importantes estudos sobre urbanização e trabalho. Em 1979 se filiou ao PT, atuando tanto no partido como assessor econômico, como também assumindo cargos em diferentes governos. Os estudos sobre economia solidária foram suas contribuições teóricas resultantes da experiência política com as cooperativas no governo. Em 2003, o governo federal, por meio da Secretaria Nacional de Economia Solidária, tendo Paul Singer como secretário, incorporou suas teses como política oficial. 

O livro Desenvolvimento econômico e evolução urbana de Paul Singer é resultado de sua tese de doutorado em sociologia, orientada por Florestan Fernandes. Na obra, Singer analisa a evolução econômica de cinco municípios brasileiros – São Paulo, Blumenau, Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife –, com formações históricas e culturais bastante distintas. Não obstante fossem parte de uma mesma realidade, de um país periférico e agrário-exportador, as cidades se integravam a estruturas econômicas regionais significativamente distintas, o que explicaria realidades urbanas específicas. Deste modo, como diz Florestan Fernandes no prefácio da obra, compreendendo “o Brasil moderno como uma sociedade nacional multifacetada, em que diferentes idades da economia, da sociedade e da história fazem parte do funcionamento integrado ou do destino do capitalismo dependente”. Paul Singer, com essa obra, abria um campo de pesquisa em torno de temas como urbanização, migrações e mundo do trabalho. 

Crítica à razão dualista (1972)

de Francisco de Oliveira

Francisco de Oliveira. Crítica à razão dualista. Petrópolis: Vozes, 1972.

Francisco Maria Cavalcanti de Oliveira – o Chico de Oliveira –, nasceu na cidade de Recife, em 1933. Graduou-se em Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia da Universidade do Recife e trabalhou como técnico no Banco do Nordeste entre 1956 e 1957 e na Sudene de 1959 até o golpe militar. Foi professor de Sociologia da USP e, aposentado compulsoriamente pelo AI-5, passou a integrar o CEBRAP em 1970, onde apresentaria seu livro Crítica à razão dualista. Em 1977 publicou Elegia para uma re(li)gião, uma dura crítica aos limites do planejamento da SUDENE, que ao invés de promover o real desenvolvimento da região, colocava o Nordeste nas mãos dos interesses dos grupos econômicos do Centro-Sul do país. 

Crítica à razão dualista, livro de 1972, era sua análise sobre as teses cepalinas. Questionando a ideia de que os setores modernos teriam capacidade de absorver os setores atrasados, como advogado pelos teóricos do subdesenvolvimento de influência estruturalista, Chico de Oliveira defende que atraso e moderno eram, na realidade, uma unidade de contrários. A disseminação do capitalismo no Brasil se valia da abundante massa de trabalhadores excluídos do mercado de trabalho, como uma reserva de acumulação primitiva de capital. Com este exército de reserva, o rebaixamento dos salários garantia a elevada acumulação do capital, processo que se evidenciava durante o regime militar. A obra foi republicada trinta anos depois com um novo ensaio, O ornitorrinco, em que a dinâmica captada há décadas se reforçava agora com a disseminação da precarização do trabalho. 

Capitalismo e marginalidade (1975)

de Lúcio Kowarick

KOWARICK, Lúcio. Capitalismo e marginalidade na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.

Lúcio Félix Frederico Kowarick (1938-2020) foi um dos importantes intelectuais brasileiros dedicados aos temas da questão urbana e dos movimentos sociais. Graduado em Ciências Políticas e Sociais, pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1961, passou a lecionar na Universidade de São Paulo em 1970, onde defendeu sua tese de Doutorado, Marginalidade urbana e desenvolvimento: aspectos teóricos do fenômeno da América Latina, em 1973. Nos anos 1970, vinculado também ao CEBRAP, desenvolveu pesquisas sobre a urbanização, tendo participado de relevante estudo da instituição, São Paulo 1975: crescimento e pobreza, e publicado o livro Espoliação Urbana em 1979. Tal preocupação com o mundo urbano permaneceu em sua trajetória intelectual, de maneira que nos anos 2000 publicou os livros Escritos urbanos e Viver em risco, este último prêmio Jabuti. 

Capitalismo e marginalidade na América Latina era a publicação, em 1975, de sua tese de doutorado. Discutindo o caráter periférico de nosso capitalismo, dialogava com outros estudos do período que vinham iluminando o caráter funcional de uma massa de trabalhadores marginais e da heterogeneidade estrutural da sociedade para o capitalismo brasileiro. Os trabalhadores marginais assumiram atividades em unidades produtivas não “tipicamente capitalistas”, produzindo um barateamento da força de trabalho em geral, um exército industrial de reserva.  

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