Fim da escravidão, não dos privilégios – Memória sobre a abolição do comércio da escravatura

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por: Luis Augusto Santos

O fim do século XVIII e o início do XIX comportaram mudanças profundas que alteraram as relações entre os países e modificaram a estruturação da ordem social, econômica, política e intelectual de diversas nações em torno do globo. Brasil e Portugal também se incluem nessa lista, porém, mais para não serem sufocados pelos adventos históricos do que para protagonizar transformações. 

É sob este chão histórico que Domingos Alves Branco Muniz Barreto formula um manuscrito denominado Memória sobre a abolição do comércio da escravatura, de 1810. O documento se propõe a analisar uma questão de cabal importância econômica para a Monarquia Portuguesa e para as elites brasileiras: como conciliar as pressões externas pelo fim do tráfico negreiro e, ao mesmo tempo, dar sustentação e viabilidade para o sistema agroexportador, então principal fonte de riqueza da colônia.

A relevância em revisitar um documento como este se deve não tanto aos efeitos práticos por ele gerado, mas sobretudo pelo que nos revela sobre o teor do debate político da época em torno do comércio de africanos escravizados; ademais, o escrito nos permite ver que elementos conformaram o imaginário dos homens de letras e dos políticos do Império acerca da escravidão, da função do Estado e do projeto de civilização que se desdobraria ao longo do século XIX. 

Atuação e vida de Barreto

Filho de pais portugueses radicados no Brasil, Domingos Alves Branco Muniz Barreto nasceu na Bahia em 1748, fez carreira militar assim como seu pai e seus irmãos, chegando a patente de tenente-general. Transitou em serviços e pesquisas por vários locais: entre a Bahia, o Rio de Janeiro, Lisboa e o sul do Brasil (Rio Grande de São Pedro e Colônia do Sacramento). Domingos, de formação ilustrada-militar, produziu muitos manuscritos que tiveram bastante circulação na época, os textos versavam sobre assuntos variados tais como economia, agricultura, questões relativas aos indígenas, filosofia natural, e se postou como ativo intelectual da Monarquia lusitana no que toca a administração do Brasil colônia e império. O seu texto mais famoso é o Plano sobre a Civilização dos índios do Brasil (1788), primeira obra propositiva sobre o tema. 

Militar, naturalista, agente civilizador e intelectual ilustrado, Domingos buscava interferir na elaboração de políticas e na forma do Estado, tendo participado diretamente no processo de Independência de 1822. Enquanto homem de letras preocupado com a sorte do Império, Barreto fazia parte do rol de ideólogos, burocratas e arquitetos do Estado. Suas ideias e projetos, se não foram as que mais vingaram, por certo galgaram espaço e influência nos cálculos do governo, ajudando a maturar o debate e a compor uma cultura científica e política. O que nos interessa no presente texto é apresentar uma obra cuja originalidade talvez seja pequena, mas que se projeta como um quadro representativo dos valores, das crenças, dos objetivos, das justificações e da racionalidade “pragmática” das elites luso-brasileiras do início do século XIX.

O impacto dos ventos históricos ou o senso de modernidade

A primeira parte do texto se inicia fazendo uma breve contextualização da atmosfera geopolítica internacional da época. A Revolução Francesa (1789) e a subsequente expansão territorial deste país, comandado por Napoleão Bonaparte, é identificada por Barreto como a causa do desequilíbrio entre os Estados europeus, também como peça chave para a compreensão do recrudescimento de ingerências e imposições legais de umas nações sobre as outras. Partindo deste ponto de vista, reinaria então no Velho Mundo uma tendência generalizada para a tirania, situação na qual o direito de autodeterminação e o reconhecimento da soberania dos Estados estaria fragilizada. 

A vinda da realeza portuguesa para o Brasil, em 1808, é o gatilho para uma série de processos que delimitam o campo a ser trabalhado na Memória. A fuga da família real lusitana para os trópicos, devido à invasão de Lisboa pelas tropas napoleônicas, agravou uma certa dependência de Portugal em relação à Inglaterra, pois o translado para o Brasil foi realizado com a ajuda da escolta britânica, somando-se a isso o fato de o alinhamento político e diplomático então estabelecido por essas nações ter sido pautado segundo termos assimétricos. Ainda em 1808, D. João prescreve a abertura dos portos para as nações amigas, lê-se Inglaterra, e em 1810 assina o Tratado de Paz e Amizade, que preconiza a diminuição gradual do tráfico e restringe este comércio apenas entre as possessões portuguesas na África. Além da condescendência forçada diante das taxações e prescrições dos ingleses, a Soberania portuguesa tinha outro valioso bem a perder fora a “Dignidade Nacional” e que punha em cheque seu principal recurso produtivo, a priori imprescindível: o fluxo hemorrágico de mão de obra escrava que saia da África e desembarcava em terras brasílicas.     

“Este sistema da Inglaterra, fundado em ciúme, e rivalidade, não podia ser mais destrutivo pelo que pertence ao Brazil, que pela fatal Sentença de proscripção do Commercio da Escravatura, que apesar de ser marcada com o santo nome de zelo pela liberdade, com tudo não patentea huma linha de conducta recta, não sendo seu fim outro, que o de converter o Brazil em universal miséria, e privar a Agricultura dos braços necessários para lavrar a terra, e até pôr as nossas minas em decadência por afectados motivos, e, da mesma maneira, que se podia pretender proibir o uso do fogo, só porque o incendiário pôde dele abusar”. (Memória p. 9)

Mercado de escravos no Rio de Janeiro – Johann Moritz Rugendas
(no acervo digital da BBM)

Barreto gasta boa parte de seu tratado tentando demonstrar o quão legítima a instituição da escravidão é, pintando com as tintas da fantasia a África como a terra natural da escravidão, significando o tráfico de cativos africanos como um ato de benevolência dos portugueses, ressaltando uma irreal brandura do escravismo e fazendo uma caracterização desfigurante da submissão e exploração de milhões de seres humanos como uma atividade justa e juridicamente sustentável. 

O autor apela também ao prejuízo que teriam tanto os comerciantes e produtores de fazendas do Brasil como os de África, pois a interrupção do tráfico negreiro colocaria em colapso o esquema de permuta constante existente até então com as várias regiões africanas e acabaria com os vultosos impostos pagos nas alfândegas brasileiras pelos bens semoventes.

Valendo-se de tais argumentos para defender o “comércio infame”, como então passou a ser chamado o tráfico negreiro, Domingos busca refutar o discurso humanitário dos ingleses e salientar a motivação estritamente econômica que os leva a agir; este debate também reflete o atraso das elites coloniais brasileiras em relação ao modelo de produção industrial em expansão na Europa, pois explicita a absoluta dependência econômica do Brasil em relação aos produtos agrícolas e, simultaneamente, a dependência de mão de obra escravizada para a manutenção da empresa colonial. Porém, o texto de Barreto não se contenta em meramente diagnosticar os efeitos nocivos da abolição do comércio da escravatura, o militar se empenha, sobretudo, em oferecer soluções viáveis e em propor planos econômico-políticos capazes de modernizar a estrutura do Estado, manter o privilégio das elites e responder às ingerências externas.        

“Avant le depart pour la roça”- Charles Ribeyrolles e Victor Frond, no livro Brazil Pittoresco
(no acervo digital da BBM)

Sobre o meio de extinguir a escravidão de huma maneira, que nos não provenha o menor damno , mas resulte proveito”. 

Barreto põe no texto seu pensamento escravista, porém, quer também fazer valer seu pendor iluminista, mesclando, de maneira bem característica aos intelectuais do país, a manutenção de ordenações sociais arcaicas e arbitrárias com a racionalidade científica moderna; adotando uma perspectiva “emancipatória” presente na Europa em um território como o Brasil, assentado na irracionalidade do Estado e na extrema assimetria de direitos sociais.

Seguindo essa linha, Domingos desenha uma flexibilização do escravismo, que deve atender à prudência e às oscilações da conjuntura econômica e política do país, culminando, dentro do horizonte modernizante de Barreto, na libertação geral dos cativos. A noção de um abolicionismo gradual e lento do autor é uma forma de conciliar a demanda vinda da Europa por maior “humanidade” nos tratos sociais – dentro do eixo, novamente, da barbárie da colônia (escravidão) e da civilização da metrópole (trabalho assalariado) – com o arcaísmo constitutivo do Estado brasileiro. É mais no sentido de concessão a pressões internas (o crescente movimento abolicionista) e principalmente externas (o estigma de incivilidade com que os países europeus passam a julgar o trabalho escravo, como também pelo comportamento coercitivo dos ingleses) que Barreto se propõe a repensar o sistema escravocrata. Este movimento geral das sociedades no século XIX, o abolicionismo, é visto num primeiro momento como um risco à estabilidade econômica e uma ameaça a coesão Estado brasileiro, entretanto, o arguto gesto de Domingos é o de pensar em como reverter esse mal em um bem ou, em outras palavras, em como instrumentalizar o referido processo de emancipação de modo que ajude a solucionar problemas, não a criá-los. Vão nesse sentido as considerações explanadas pelo tenente sobre a segurança do Estado e o controle das camadas mais baixas que forem libertas, como também a incitação para que o Governo facilite a migração de estrangeiros para substituir a mão de obra cativa. Estão inclusos no plano de civilização de Domingos os indígenas, os negros alforriados e até africanos livres: os primeiros figuram como uma força produtiva a ser assimilada, os segundos como um contingente perigoso que precisa ser vigiado, disciplinado, docilizado, os últimos como força de trabalho livre a ser obtida nos portos africanos através de uma espécie de arrendamento de braços em troca de produtos brasileiros.

Barreto é um ilustrado ilustrativo da recepção e da elaboração das idéias francesas em terras brasílicas. A adaptação dos sistemas jurídicos, das filosofias e concepções sobre o Estado e sua atuação são, a bem dizer, deformadas com vistas a promover a manutenção dos sistemas de dominação e controle social, sem, contudo, permitir que o discurso das elites locais demonstre seu enorme descompasso com o que de mais elevado circula no ambiente europeu; podemos dizer que o esforço teórico de Domingos vai mais no sentido de dar novos fundamentos à velhas práticas sociais e políticas do que em redefinir a finalidade do Estado ou remodelar os circuitos de poder da sociedade.

“Encaissage et pesage du sucre”- Charles Ribeyrolles e Victor Frond, no livro Brazil Pittoresco
(no acervo digital da BBM)

Referências

Fabricio Lyrio Santos. “Colonização e pensamento ilustrado: Domingos Álvares Branco Muniz Barreto e seus primeiros escritos”. Estudos de Literatura Brasileira em Portugal: Travessias. Porto, CITCEM, 2017, pag. 187-198. https://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/17367.pdf

Domingos Alves Branco Muniz Barreto. Memória sobre a abolição do comércio da escravatura. Rio de Janeiro: Typ Imparcial F Paula Brito, 1837. https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4596

Henrique Antonio Ré et Carlos Zeron. Escravidão e antiescravismo no Brasilhttps://heritage.bnf.fr/france-bresil/pt-br/antiescravismo-artigo

Luis Augusto Santos é graduando em Filosofia pela FFLCH-USP

Curadoria

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