A Mensageira: revista literária dedicada à mulher brasileira

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Por Patricia Freire do Nascimento

Fundada por Presciliana Duarte de Almeida, A Mensageira: revista literária dedicada à mulher brasileira circulou em São Paulo entre os anos de 1897 e 1900. Em meio a outras publicações que surgiram no país na segunda metade do século XIX abordando temáticas correlatas, A Mensageira – essencialmente escrita e lida por mulheres – reivindicou fortemente direitos civis e, principalmente, educação formal e crítica para as mulheres de seu tempo. As colaboradoras desse periódico, articuladas na produção dos conteúdos da revista, trouxeram à tona questionamentos quanto ao sistema então vigente e projetaram, dentro das perspectivas de sua época, o perfil da mulher do futuro.

Volume II da edição fac-similar de A Mensageira

O fim do século XIX foi um período de mudanças significativas referentes à urbanização de determinadas áreas do Brasil devido à chegada dos avanços tecnológicos e à influência de ideais vindos da Europa. Foi nesse século que ocorreu a consolidação do sistema capitalista e dos ideais burgueses que, em grande parte, definiram os papéis sociais dentro da estrutura familiar como conhecemos hoje e, portanto, determinaram também o papel atribuído à mulher. Esse papel não considerava a autonomia feminina, inibindo assim seu direito à educação crítica, à inserção no mercado de trabalho, à escolha e representação política, entre outros. Tendo isso em vista, uma contradição pode ser constatada na consolidação desse sistema e desses ideais pois, ao passo que os ideais burgueses acerca do papel feminino iam de encontro à atuação social limitada da mulher, a urbanização de determinadas regiões acabou por levar às mulheres das classes urbanas mais privilegiadas a possibilidade da expansão de seus horizontes. O choque dessa limitação e dessa expansão de horizontes gerou certamente contestações, dentre as quais se insere  a revista A Mensageira.

No Brasil, a região sudeste foi largamente beneficiada financeira e politicamente por essas mudanças, em especial  as cidades  do Rio de Janeiro e de São Paulo.  O Rio de Janeiro já abrigava a capital do país desde a época colonial, com centralidade e influência culturais e econômicas já bem consolidadas; e São Paulo, por sua vez, impulsionado pela economia cafeeira, despontava como um dos maiores e mais influentes centros urbanos do Brasil. Assim, ambas as cidades passariam a apresentar certa liderança quanto a questões culturais e intelectuais, defendendo ideais condizentes com a emancipação, presença e atuação feminina em diversas esferas da sociedade. Contudo, é válido observar que apesar de se concentrar nestes centros, a circulação da revista e seus ideais também alcançou demais regiões do país, incluindo o interior e as regiões ainda não urbanizadas.

Expressão feminina e ideais emancipacionistas

Importante salientar que grande parte do caráter da revista se deu no sentido do desenvolvimento da expressão feminina. Nota-se que textos escritos por mulheres tendem a cair no esquecimento da história oficial, evidenciando a problemática inexistência de uma tradição literária feita e seguida por mulheres na época. Procurando justamente criar e fortalecer essa tradição, A Mensageira deu espaço a um ambiente para a afirmação identitária de escritoras, onde elas poderiam contar com uma rede de apoio para sua expressão literária e política. Nas palavras da fundadora e editora da revista, Presciliana Duarte de Almeida: 

Que a nossa revista seja como que um centro para o qual convirja a inteligência de todas as brasileiras! Que as mais aptas, as de mérito incontestável, nos prestem o concurso de suas luzes e enriqueçam as nossas páginas com as suas produções admiráveis e belas; que as que começam a manejar a pena, ensaiando o voo altivo, procuram aqui um ponto de apoio, sem o qual nenhum talento se manifesta; e que, finalmente, todas as filhas desta grande terra nos dispensem o seu auxílio e um pouco de boa vontade e benevolência. (A Mensageira, 1897, n. 1, p. 1)

Tendo isso em vista, o periódico apresenta também certo caráter pedagógico – dedicado à instrução de suas leitoras -, que almeja expor o contexto de submissão em que viviam e propõe a possibilidade de uma participação mais ativa na sociedade. Essa proposta vinha  necessariamente acompanhada da superação do estereótipo frágil e incapaz da mulher e da projeção do perfil da “mulher do futuro”, dotada de instrução e capacidade frente à família, ao trabalho e ao mundo intelectual. Num período de gestação do pensamento feminista e em meio a uma sociedade fortemente conservadora, as primeiras ideias da revista ainda se colocavam no sentido de educar as mulheres para que pudessem cumprir de maneira mais eficiente papéis que já lhe eram atribuídos como boa esposa, mãe e dona de casa. 

Na verdade, considerando a significativa resistência à emancipação feminina nesse período, esse posicionamento mais moderado proporcionava maior aceitação pela sociedade em geral desses ideais, o que não ocorria com as colocações feministas mais incisivas, que tendiam a ser logo descreditadas. Portanto, foi apenas posteriormente que a ideia da educação se voltou paulatinamente para outras finalidades, como para a capacitação para o mercado de trabalho a fim da independência financeira e também para a autonomia intelectual como instrumento na participação em demais circunstâncias sociais.

Para além da situação, educação e emancipação femininas, a revista também publicou textos direcionados a outras temáticas. As crônicas de Maria Clara da Cunha Santos, por exemplo, abordaram diversas questões do contexto brasileiro e do mundo afora. Além de cronista, Maria Clara também foi poetisa e jornalista, sendo uma das principais colaboradoras da revista a partir de sua coluna Carta do Rio. Nesta coluna, na edição de 15  dezembro de 1897, por exemplo, a escritora discorre desde o Caso Dreyfus e a lealdade da esposa do militar francês ao não deixar de usar o nome do marido, passando pelo internamento forçado de uma mulher no Rio de Janeiro – lúcida, mas considerada louca por sua família – e chegando até problemas urbanos cotidianos como a lotação dos bondes.

Maria Clara da Cunha Santos na primeira página do número 23 de A Mensageira

As questões raciais também se mostram de grande relevância à época, em especial no que diz respeito à abolição do sistema escravocrata no Brasil, que havia perdurado até a década anterior à fundação da revista. O posicionamento apresentado pelas escritoras é abertamente favorável à abolição da escravatura, tendo tanto Presciliana Duarte quanto Maria  Clara da Cunha participado das campanhas abolicionistas no sul de Minas Gerais. Acerca de tal assunto, Maria Emilia Lopes, cronista mineira responsável pela coluna Com ares de crônica, discorreu na edição de 15 de maio de 1898 sobre os dez anos da Lei Áurea:

Desde os mais tenros dias de minha infância, revoltei-me contra a escravidão dos negros e contra o cativeiro da mulher! Nunca pude reconhecer o privilégio do branco nem o privilégio do homem! Nós todos que pensamos e sentimos, que sofremos e amamos, que trabalhamos e lutamos pelo desenvolvimento da humanidade, cada qual à medida de suas forças, temos direito a essa divina graça – a liberdade! Ela é essencial a toda alma, como o ar a todo ser. (A Mensageira, 1898, nº 15, p. 230)

Apontando os privilégios branco e do homem, Maria Emilia coloca a libertação dos escravos como equivalente à almejada emancipação feminina sobre a qual se empenha a revista. Há também nesse mesmo texto a exaltação da figura da Princesa Isabel como grande, e praticamente única, responsável pela libertação do povo negro. Essa exaltação acrítica e   estratégica indica a necessidade de afirmação da participação feminina num relevante marco da história brasileira, sendo que outras figuras ainda mais representativas na luta contra o sistema escravocrata, como Luís Gama, são apenas mencionadas.

Assim, ainda que a escravidão seja repudiada e que um posicionamento pró-abolicionista seja amplamente tido como oficial de A Mensageira, isso se dá dentro do contexto já mencionado, considerando as limitações decorrentes de uma sociedade conservadora formada sobre tanto um molde patriarcal, quanto um sistema institucionalmente racista. Nesse sentido, evidencia-se que pautas específicas de mulheres negras, então libertas há menos de uma geração, não foram específica e profundamente contempladas pelas publicações da revista.

A Mensageira e o movimento feminista no Brasil

Julia Lopes de Almeida na primeira página do número 29 de A Mensageira

A importância de A Mensageira como documentação histórica se dá principalmente  sobre a recuperação da memória do movimento feminista no Brasil. Ao declarar que movimentações feministas começavam a se manifestar gradualmente no país, Júlia Lopes de Almeida – outra importante colaboradora da revista – no artigo Entre Amigas, publicado na edição inaugural da revista, argumentou constatar maior consciência das próprias mulheres  sobre suas necessidades e interesses, demonstrando, assim, maior disposição também voltada à participação ativa em variadas esferas sociais. Assim, o artigo em questão, de 1897, é tido como marco inaugural do movimento reivindicatório feminista brasileiro. 

Considerando justamente a necessidade de tal recuperação das origens e memória do movimento feminista no Brasil, em 1987 foi publicada pela então Secretaria de Estado da Cultura e pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo a coletânea de exemplares da revista A Mensageira em edição fac-símile, disponível no acervo físico e digital da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. Nesta edição fac-símile, Zuleika Alambert, na época presidenta do Conselho Estadual da Condição Feminina, discorreu sobre a relevância da coletânea no texto de abertura, pontuando que:

Esta publicação nos permite, de um lado, recuperar um  pedaço da história  do feminismo no Brasil e, de outro, indicar que a luta que hoje travamos por reafirmar que o sexo é político pois nele existem relações de poder; que a luta que travamos para tornar claro o caráter subjetivo da opressão, os aspectos emocionais da consciência etc. etc., é um prolongamento avançado da luta  anterior de nossas bisavós e avós por direitos da mulher  ao trabalho  e a instrução num tempo que era atribuída  uma neutralidade ao espaço individual e se definia como político unicamente a esfera pública, objetiva. (A Mensageira – edição fac-similar, 1987, v. 1, pp. 11-12)

Cerca de cinquenta anos após a publicação original de A Mensageira, em 1949, Simone de Beauvoir registrou que “toda a história das mulheres foi escrita pelos homens”, expondo a forte resistência enfrentada pela luta feminista do fim do século XIX e início do XX no sentido do reconhecimento da produção escrita das mulheres. Somado mais meio século, em exatos cem anos após a publicação inaugural da revista, Zuleika Alambert apontou a persistência desta mesma luta, considerando novos parâmetros e demandas próprios de seu tempo, que não deixavam de conversar diretamente com aqueles do passado. Assim, pode-se dizer que caminhando a passos lentos, por enfrentar obstáculos diversos, a mulher do futuro projetada pela revista do século XIX persiste, de maneira profundamente mais complexa, em sua contínua construção. Ela se renova e inclui pautas de relevância antes não contempladas, redefinindo-se frente às justas demandas manifestadas e reconhecidas ao longo de seu próprio  tempo.

REFERÊNCIAS

KAMITA, Rosana Cássia. Revista “A Mensageira”: alvorecer de uma nova era?. Revista Estudos Feministas,  Florianópolis,  v. 12, n. spe, p. 164-168,  dez.  2004 .
SANTOS , Mirian Cristina dos. A Mensageira (1897-1900): Revista em Revista. XIV Congresso Internacional Fluxos e Correntes: trânsitos e traduções literárias, Belém, Pará, 2015.
SANTOS, Mirian Cristina dos. Palestrando de Minas Gerais: A Produção Periodística de Elisa Lemos e Maria Emilia Lemos. 2010. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de São João del-Rei, 2010.
SILVA, Cristiane Viana da. A Condição Feminina Nas Obras de Júlia Lopes de Almeida Publicadas de 1889 a 1914. 2014. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual do Piauí, 2014.

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Patricia Freire do Nascimento é graduanda em Relações Internacionais pelo IRI-USP

Curadoria

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