Reino do encantado – messianismo no sertão

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Por: João Cardoso

Movimentos messiânicos são movimentos sociais baseados na crença na aparição de um salvador, capaz de erradicar o mal e de restaurar na Terra um perdido estado de felicidade e prosperidade. Em Portugal e no Brasil, o sebastianismo foi, desde o século XVI, uma forma particularmente comum desse tipo de movimento. O sebastianismo deve sua origem à morte de D. Sebastião, rei de Portugal, na batalha de Alcácer-Quibir, no norte da África, em 1578. Como o corpo do rei nunca foi encontrado, começou a se desenvolver o mito de que o rei voltaria para restabelecer a prosperidade perdida. 

No Atlas dos viajantes no Brasil, há algumas menções ao sebastianismo, como o encontro dos viajantes alemães Spix e Martius com um fazendeiro “sebastianista” em Catas Altas, Minas Gerais, em 1818. Mas o que mais chama a atenção é o relato que o viajante americano Daniel Kidder faz de um movimento ocorrido nos arredores de Piancó, no sertão nordestino, pouco tempo antes de ele passar pela região, em 1839. Kidder, um missionário metodista, soube em Recife que anos antes houvera um movimento sebastianista no interior da província de Pernambuco (atualmente o local faz parte do Estado da Paraíba). Embora o missionário não tenha estado no local onde os eventos transcorreram, seu relato é uma síntese de um típico movimento messiânico no sertão do Brasil. 

O Reino encantado

Pouco antes de visitarmos Pernambuco, deram-se lamentáveis ocorrências no interior da província, evidenciando que o fanatismo, nas suas piores modalidades, não se restringe aos países protestantes. É possível que os fatos que passaremos a narrar, extraídos de documentos oficiais, não encontrem símile nem na história, nem na mitologia. Para que o leitor possa compreendê-los bem, lembraremos que ainda existe em Portugal e até certo ponto, também no Brasil, uma seita denominada dos Sebastianistas. O dogma fundamental dessa seita é que D. Sebastião, Rei de Portugal, que em 1577 empreendera uma expedição contra os mouros, na África, da qual jamais voltou, vive ainda e algum dia reaparecerá na Terra. Número sem conta de profecias, sonhos e interpretações de fatos maravilhosos confirmam essa crença e, divulgados com a sanção do clero, muita gente os aceita sem vacilação. Nem tem faltado, em períodos diversos, quem se proponha a cumprir as profecias, fazendo-se passar pelo verdadeiro D. Sebastião.

Contudo, o ponto principal da crença é que o rei voltará, vivo ainda, sem jamais ter morrido. Os portugueses esperam o seu reaparecimento em Lisboa, mas os brasileiros acham mais natural que ele venha ter, em primeiro lugar, à sua cidade de São Sebastião. 

Entretanto, certo espertalhão sem escrúpulos, de nome João Antônio, instalou-se em recanto afastado da Província de Pernambuco, próximo a Piancó, Comarca de Flores, à espera da volta de D. Sebastião. O local em questão estava situado dentro de uma floresta onde havia duas cavernas. A isso o impostor chamou de reino encantado, próximo a se desencantar, quando então D. Sebastião apareceria à frente de um exército, coberto de glória e poder para dar a riqueza e a felicidade a todos que, na expectativa de seu regresso, se associassem ao tal João Antônio. 

Como era de esperar, o fanático logo conseguiu prosélitos que dentro em pouco se convenceram de que o reino imaginário só se desencantaria quando regado com o sangue de uma centena de crianças inocentes! Na falta de crianças, homens e mulheres deveriam ser imolados. As vítimas, porém, ressuscitariam depois de alguns dias e entrariam na posse de enormes riquezas. Ao que parece o profeta não teve coragem para levar a cabo seu plano sanguinário, mas delegou poderes a um de seus asseclas, chamado João Fernandes, que tomando o título de “sua santidade”, pôs um ramo verde sobre a cabeça e abrigou seus fiéis a lhe beijarem os pés, sob pena de morte. 

Depois de numerosas cenas por demais horríveis para serem aqui reproduzidas, começou ele a matança de seres humanos. Cada chefe de família era obrigado a oferecer um ou dois de seus filhos. Em vão as crianças choravam e suplicavam que as não matassem. Os pais desnaturados respondiam-lhes; “não, meu filho, não há remédio” e ofereciam os inocentes, à força. No curto espaço de dois dias João Antônio havia assim assassinado, a frio, vinte e um adultos e vinte crianças, quando um irmão do profeta, invejoso de “sua santidade”, assassinou-o e tomou seu lugar. Foi então que alguém conseguiu fugir e comunicar às autoridades a horrível tragédia. 

Enviou-se força ao local, mas os enfatuados sebastianistas nada temiam e pregavam aos seus apaniguados que, se fossem atacados, seria esse o sinal da restauração do reino, a ressurreição dos mortos e a destruição de seus inimigos. Portanto, quando perceberam a aproximação da tropa, atiraram-se contra ela desafiando-a, matando cinco dos que vinham em seu socorro e ferindo outros, antes que pudessem ser subjugados. Entretanto, não se renderam enquanto vinte e nove fanáticos, entre os quais três mulheres, não foram mortos. As esposas, vendo seus maridos morrerem a seus pés, não procuravam fugir, antes gritavam “chegou o tempo; viva, viva, é chegado o tempo!!!” Dos que sobreviveram, poucos fugiram para o mato, os demais se deixaram aprisionar. Verificou-se, depois, que as vítimas desse horrível fanatismo nem ao menos enterravam os corpos de seus filhos e parentes mortos, tão certos estavam elas de sua ressurreição imediata.

O local onde o movimento se desenrolou aponta para um aspecto bastante significativo do messianismo no Brasil: é o sertão, tomado no sentido geral de interior de um território, o palco principal dos movimentos messiânicos, como pontua o professor de sociologia da USP Lísias Nogueira Negrão: “a maioria deles, ou pelo menos aqueles sobre os quais se tem maior documentação, transcorreu entre populações sertanejas, do nordeste ao sul do país, no período de pouco mais de um século, a partir de cerca de 1820.” 

O sertão do nordeste foi território particularmente fértil para a eclosão de movimentos messiânicos sebastianistas. As explicações para essa recorrência variaram ao longo do tempo. Na narrativa de Kidder, nota-se um ponto de vista comum no século XIX e começo do século XX, que atribui o movimento ao fanatismo, à ignorância e credulidade do povo, à astúcia maligna dos líderes, à loucura coletiva. Mais recentemente, esse tipo de movimento é explicado por outros fatores, como a integração à lógica de funcionamento da religiosidade popular em sociedades tradicionais ou como expressão de uma luta contra condições precárias de vida material e social. 

No Atlas dos viajantes, descrições de outras localidades do sertão nordestino permitem compreender dificuldades materiais que marcam a região e seus habitantes: seca, más colheitas, miséria. Assim, conteúdos do Atlas produzidos por diferentes viajantes em diferentes pontos do sertão nordestino permitem articular paisagem, clima, condições econômicas e sociais, ações coletivas etc. Um episódio histórico específico relatado por Daniel Kidder tem, portanto, o potencial de ser o ponto de partida para debater questões importantes que envolvem uma região do Brasil de onde surgiram fatos históricos, sociais e culturais cujos efeitos se fazem sentir ainda hoje. 

Obra sobre o “Reino do encantado” Coleção BBM

Da História à Literatura

Não foi só de Kidder que o movimento messiânico de Piancó chamou a atenção. Em 1875, saiu uma obra inteiramente dedicada aos eventos relatados por Kidder, reeditada em 1898 sob o título Fanatismo religioso: memoria sobre o reino encantado na comarca de Villa Bella. Seu autor, Antonio Attico de Souza Leite, foi um político e advogado nascido na região. Os eventos também serviram de inspiração para a obra de Ariano Suassuna, Romance d’A Pedra do Reino, de 1971. Da necessidade, narrada por Kidder, de derramar sangue de crianças para desencantar o reino pode-se ainda traçar uma relação direta com um episódio do filme de Glauber Rocha, Deus e o diabo na terra do sol, em que um líder religioso (não por acaso chamado Sebastião) ordena que o sertanejo Manoel sacrifique uma criança. 

Como se vê, a partir de um pequeno trecho narrativo situado no sertão nordestino é possível conectar e integrar questões naturais, geográficas, históricas, literárias, artísticas etc., alimentando o conhecimento e o debate sobre temas importantes da história, sociedade e cultura brasileira.

Referências

Antônio Attico de Sousa Leite. Fanatismo religioso: memoria sobre o reino encantado na comarca de Villa Bella. Juiz de Fora: Typographia Matoso, 1898.

Lísias Nogueira Negrão. Sobre os messianismos e milenarismos brasileiros. Revista USP, n. 82, p. 32-45, 1 ago. 2009.         

Daniel Kidder. Reminiscências de viagens e permanências nas províncias do Norte do Brasil. Belo Horizonte, São Paulo: Editora Itatiaia limitada; Editora da Universidade de São Paulo, 1980.

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João Cardoso é curador da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin e coordenador do Atlas dos viajantes no Brasil.

Curadoria

One Comment

  1. Muito bom. Mas uma correção: hoje o local não fica na Paraíba, mas sim na cidade de São José do Belmonte, em Pernambuco mesmo. É um ponto turístico ??

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