Elisa Lispector e a angústia metafísica

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Por Gabrielle Gonçalves de Carvalho

“Num assombro de dor e angústia, ele toma da pena e começa a escrever, a escrever depressa, nervosamente, em letra miúda e desigual, a lançar no papel todo o tumulto, toda a amargura e o desespero que lhe vão no íntimo.” (primeira frase de seu romance de estréia, Além da Fronteira.)

Elisa Lispector foi uma escritora brasileira do século XX. Autora de dez livros, sendo sete romances e três coletâneas de contos, sua produção literária começou quase na segunda metade do século e teve um reconhecimento limitado e sem grandes repercussões para além do momento de publicação. Hoje, ela é quase desconhecida no cânone e entre o público contemporâneo. Dentre suas obras publicadas, poucas tiveram reedições.

A Biblioteca Brasiliana possui quatro delas: Além da Fronteira (1945), O Muro de Pedras (1963), Inventário (1977) e Corpo a Corpo (1983).

Os Lispector e o êxodo

Da esquerda para direita: Marieta Krimgold Lispector, Elisa Lispector, Tania Kauffman, Pedro Lispector. Ao centro, Clarice Lispector.

Passaporte russo da família Lispector.

O sobrenome não é mera coincidência; Elisa Lispector é a irmã mais velha de Clarice Lispector. Ao que se sabe hoje, em algum momento e em alguma medida, todas as mulheres da família entraram em contato com a escrita literária: além das duas irmãs já citadas, Tania Kaufmann, a filha do meio, tem um livro de contos publicado, e a matriarca, Marieta Lispector, escrevia poesias (como foi informado pela própria Clarice, em uma entrevista dada a TV Cultura já no fim de sua vida).

De origem judaica e ucraniana, a família Lispector percorreu um longo e conturbado caminho até chegar ao Brasil. A guerra civil na Ucrânia, como consequência da Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e os constantes pogroms – palavra russa que designa os ataques antissemitas que ocorreram no Império Russo e em outros países – levaram os Lispector a fugirem em busca de um lugar seguro. O destino ainda não era certeiro quando tiveram que abandonar sua casa. Passado mais de um ano da fuga a família recebe a “carta de chamada” – documento que, na época, dava permissão para parentes de imigrantes entrarem no país – do cunhado José Rabin, que residia em Alagoas. Somente nesse momento que Pedro Lispector, sua esposa e as três filhas finalmente embarcam num navio rumo à América.

Da esquerda para direita: Tania, Elisa e Clarice.

Foi em Maceió, em março de 1922, que Elisa Lispector pôs seus pés em terra firme brasileira pela primeira vez. Ao contrário de suas irmãs, as quais chegaram ao Brasil ainda bem novas, Elisa tinha 10 anos e condições suficientes para criar certa memória do cenário caótico do qual havia fugido. Além disso, apesar da pouca idade, tinha a responsabilidade de cuidar das caçulas, pois sua mãe se encontrava bastante debilitada. Em 1925, após a morte de Marieta Lispector, a família se muda para o Recife, onde as filhas passam a maior parte da infância e adolescência. Depois desse período, Elisa e as outras se mudam para Rio, onde vão tentar a vida adulta.

Do êxodo à literatura

Sua estreia na literatura acontece em 1945, com o romance Além da Fronteira. Este nos traz a história de Sergio, escritor irrealizado que não consegue se firmar no mercado editorial. Já nesse momento inicial é possível encontrar aspectos que se estenderão por toda obra de Elisa: o êxodo migratório e a angústia metafísica.

É pela reminiscência de sua experiência de migração, marcada pela tradição judaica praticada pela família e o pelo sentimento de se chegar em terras estrangeiras através da fuga, que surge seu segundo livro, No Exílio (1948). Nele, conta-se a história de uma família de imigrantes que, obrigada a fugir de seu país por conta da guerra, termina por chegar no Brasil.

O romance se inicia com Lizza, personagem principal e primogênita entre as filhas, recebendo alta de um sanatório após uma enfermidade não identificada. Numa tentativa de compreender os últimos acontecimentos de sua vida, ela rememora dias angustiantes, dando início à narrativa da trajetória da família para o Brasil. Através de um registro memorialístico e subjetivo, o livro nos mostra não só uma experiência particular, mas cria uma espécie de síntese das dificuldades do êxodo e da perseguição aos judeus ao longo do tempo. É numa mistura de fatos históricos e ficção que Elisa escreve o sofrimento de uma família que abandona seu país, língua, cultura, parentes e amigos para tentar uma vida nova em um lugar distante e diferente. Assim, ela faz a denúncia da história de um povo injustamente perseguido desde os tempos mais remotos.

Para além desses aspectos, o enredo apresenta fortes semelhanças com a própria história dos Lispector, funcionando como uma espécie de autobiografia – trata-se, também, de um casal e três filhas que se instalam no nordeste brasileiro. Até mesmo os nomes dos personagens possuem traços de semelhança com os verdadeiros. Nadia Battela Gotlib – professora da Universidade de São Paulo e autora da biografia Clarice, uma vida que se conta, em uma entrevista para o site do Instituto Moreira Salles – conta que Clarice não gostava que Elisa escrevesse biografismos. Mas o fato é que as histórias de Elisa nos levam também para um outra face de Clarice Lispector, na qual podemos entender sobre sua origem, pouco falada por ela. Vale pensar que No Exílio relata também a história de duas autoras.

Navio de Emigrantes (1939 – 1941), Lasar Segall. Detalhe da pintura ilustrou a capa da 2ª edição do romance No exílio.

Mas não foi apenas na literatura que Elisa assumiu um compromisso com a tradição judaica. Em sua vida ela foi praticante das tradições, mantendo contato com os parentes, envolvendo-se na produção de periódicos que divulgavam informações sobre a colônia, e atuando em instituições de apoio a famílias exiladas. Hoje, pelos seus feitos e obras, pode-se considerar que ela deixou informações importantes sobre a história da cultura judaica no Brasil.

O sentimento de desamparo diante de perdas e carências, o enfrentamento com o passado, e a busca por uma adequação e um lugar no mundo, questões estas que muito se relacionam com a experiência de migração, podem ser vistas nas obras de Elisa Lispector para além daquelas com referências semitas. Desde sua primeira obra, pode-se encontrar nas histórias da autora o desenvolvimento de reflexões com teor bastante filosófico: a angústia existencial, o dilema entre vida e morte e a transitoriedade temporal, por exemplo, são temas centrais em sua obra. Suas personagens estão sempre questionando o sentido da existência, o que traz ao cenário uma atmosfera extremamente melancólica, solitária e por vezes, um pouco mórbida. Apesar disso, a questão da morte, na maioria dos seus romances, não é vista como o fim, mas sim uma saída, uma fuga para a crise existencial. Tudo o que suas personagens querem é escapar.

A consciência de estar só

“– Não há o maior perigo em articular o verbo, pensou. Desde o dia em que o verbo foi, o mundo transfigurou-se. Devo porém, prosseguir com vagar, bem devagar, com toda a cautela, porque é tão forte a minha comoção e tão frágil meu corpo que num átimo o tênue fio da vida pode se romper.” (trecho de “Medo”, conto do livro Inventário)

Nesse sentido de pura introversão, a literatura de Elisa se aproxima, de alguma forma, à feita por sua irmã. Porém, dentre todas as diferenças estabelecidas entre elas, a principal está no uso da linguagem. Pode-se dizer que, para escrever suas histórias Elisa foi bem mais contida na estruturação da linguagem do que Clarice Lispector. O caos interno das personagens não se manifesta também no modo de narrar a história. Para fazer seu mergulho introspectivo, Elisa utiliza do monólogo interior, discurso irônico e diálogo para estruturar as histórias, mas é principalmente através do discurso em 3ª pessoa que conta suas histórias, o que dá à narrativa uma certa linearidade não encontrada nas da sua irmã mais nova.

Muro de Pedras (1963) – romance que recebeu prêmios como Coelho Neto, Luísa Cláudio de Souza e José Lins do Rego, concedido pela editora José Olympio – é um bom exemplo disso. Narrado em 3ª pessoa, o romance nos conta a história de Marta, mulher solitária que, além de ter que lidar com conflitos internos decorrentes de um passado conturbado e de abandono, nos mostra as dificuldades decorrentes de não optar, num primeiro momento, por fazer o que se espera dela socialmente, como casar-se. Assim, a autora traz uma reflexão sobre a realidade feminina na década de 60 ao escrever sobre a busca da personagem por tentar se encontrar e firmar sua independência numa sociedade completamente patriarcal.

Da esquerda para direita: Tania, Clarice e Elisa.

Do relacionamento conturbado com os pais, especialmente com sua mãe, que sempre a desprezou com muitas críticas, Marta acaba por criar não só um “muro” entre ela e sua família mas também entre ela e o mundo. Tentando fugir do isolamento, ela procura a solução dos seus problemas em relacionamentos: primeiro, no amor; depois de um casamento falido e um relacionamento conturbado com um homem bem mais jovem, Marta acaba fugindo para o sítio de seu pai. Lá conhece Bruno, o administrador, e acabam se casando.

Quando engravida, a personagem realmente acredita que o seu sentimento solidão estaria acabado. Porém o filho cresce e Marta se vê novamente sozinha e instável: é a idealização do amor maternal que já havia tido como maior exemplo a ambígua relação entre ela e sua mãe.

Em síntese, o romance é a busca da personagem que, fadada às regras de um mundo falocêntrico, se vê perdida na busca da resolução dos seus problemas pessoais e da sua essência. De uma certa forma, os romances de Elisa seguem por esse caminho da procura por autoconhecimento que leva ao isolamento ou a conformar-se com uma vida destinada à burocracia e ao cumprimento de regras maiores.

A própria Elisa, antes e durante a escrita dos seus livros, foi funcionária pública no Ministério do Trabalho e na Previdência Social do Rio de Janeiro, até se aposentar-se em 1969. Sua relação com o universo literário teve início ao começar a escrever para revistas e jornais. Mas foi quando parou de trabalhar para o Estado que se dedicou completamente à escrita, sendo essa também a época que foram lançados seus dois livros de contos, o que exigiu da autora mais tempo e dedicação.

Elisa construiu uma carreira com número de publicações consideráveis. Nos seus livros podem ser encontradas não só uma escrita bastante delicada, mas histórias que nos remetem ao âmago da existência. “Qual o sentido da vida?” é a irresolvível questão principal, e dela surgem os desdobramentos de outros sentimentos que remetem ao mais puro “existir no mundo”.  É inevitável pensar o quanto toda essa temática dialoga com as questões e consequências do êxodo. A autora fez jus às suas origens e deixou obras que também servem de material de estudo da cultura judaica no Brasil, com seus hábitos, costumes e desdobramentos de ser um imigrante no Brasil em pleno século XX, além de pensar na disposição dos sobreviventes para esquecer seu passado e recomeçar.

Por isso, é também muito difícil não dar à obra e escrita da autora um caráter extremamente pessoal, pela possibilidade de diálogos que se pode criar com sua própria vida. É quase como uma literatura de defesa e ao mesmo tempo de superação. Leve, por necessidade de ser, e solitária, como a única irmã que coube lembrar, Elisa continua a busca que se iniciou no passado, como se nunca tivesse terminado de migrar.

Vítimas de progrom na Ucrânia, em Tcherkassi, 1919.

Obras de Elisa Lispector na BBM

Além da Fronteira. Editora Leitura, 1945

Inventário (contos). Editora Rocco, 1977

O Muro de Pedras. Editora José Olympio, 1963

No Exílio. Editora de Brasilia, 1971

Referências

Entrevista com Nádia Battella Gotlib, blog do IMS – 2011

Fernanda Cristina de Campos; tese O Discurso Melancólico em Corpo a Corpo, de Elisa Lispector – 2006

André de Souza Pinto; Retratos falados em Elisa Lispector: Um Álbum Fragmentado. Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG

Clarice Fotobiografia –  Nadia Battella Gotlib. Editora Edusp, 2007

Gabrielle Gonçalves de Carvalho é graduanda em Letras (Português/Italiano) pela FFLCH-USP.

Curadoria

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