Por: Pedro Perera
Axl Leskoschek foi um multiartista austríaco que atuou no decorrer do século XX, destacando-se como xilogravador no Brasil. Em função da ascensão do nazifascismo na Europa e da iminente guerra que se protejava sobre o continente, o artista foge de sua terra natal em exílio no ano de 1939, permanecendo no Rio de Janeiro por quase 10 anos. Sua chegada ao Brasil representa um momento muito importante para a história da gravura e da literatura russa no país. O artista, de difícil enquadramento, trouxe da Europa todo um repertório de técnicas e ideias baseadas nas vanguardas artísticas modernas que se desenvolviam desde o início do século XX e revela forte proximidade com formas expressionistas de criação. É a partir de suas ilustrações feitas para livros de Dostoiévski, que vai obter destaque, sendo reconhecido como um dos grandes nomes entre os artistas de sua época no Brasil. Parte dessa obra está presente no acervo da BBM disponível para consulta. Destaca-se o conjunto de 35 gravuras realizadas para ilustrar os livros: “O Adolescente”, “Os Demônios” e “Os Irmãos Karamazov”.
Axl Leskoschek: da Áustria para o Brasil.
Axl von Leskoschek nasceu no ano de 1889 na cidade de Graz, na Áustria e faleceu em 1975 em sua terra natal. Formando-se inicialmente em direito, participou da primeira guerra mundial como oficial-aviador e foi ferido em combate no ano de 1918. Ele decide então concluir seus estudos em 1919, primeiramente na Escola de Belas Artes de Graz e logo em seguida na Escola de Artes Gráficas de Viena. O artista realizou sua primeira exposição de aquarelas em 1921 na capital do país, e permaneceu compondo obras de arte e exposições até o final da década de 1930, tendo atuado também como cenógrafo para o teatro entre os anos de 1929-32.
Durante as primeiras décadas do século XX, a Áustria e principalmente sua capital Viena, se revelaram terreno fértil para as artes plásticas, e foi justamente esse o momento e o lugar de formação de Leskoschek. Dentre os movimentos artísticos que despontaram, o mais famoso deles foi a “Sezession” de Viena, que tinha como membro mais notável Gustav Klimt. Apesar da efervescência cultural da época, a Europa da década de 1930 tornou-se palco para o espetáculo de nacionalismos exacerbados que culminaram no fortalecimento de discursos e governos nazifascistas. Tornou-se frequente a perseguição nazista aos artistas, não somente na Áustria mas em diversos países da Europa, e logo após filiar-se ao partido comunista, Leskoschek fugiu para a Suíça em 1939 e no mesmo ano veio para o Rio de Janeiro, permanecendo até 1949.
É muito frequente entre os historiadores da arte, uma periodização que identifica o surgimento da arte expressionista a partir dos anos de 1900 e 1905 com o movimento Die Brucke (A Ponte) em Dresden e o movimento Der Blaue Reiter (O Cavaleiro Azul) em Munique, permanecendo até 1920 com a instauração do regime de Weimar na Alemanha unificada. Embora tenham surgido inicialmente na Alemanha os maiores impulsos expressionistas, de acordo com Renato De Fusco, o expressionismo em si pode ser entendido como um conjunto de linhas plásticas gerais que se dão independentemente do seu país de origem, o que explica o seu espraiamento para diversos países na Europa.
Por se tratar de um movimento que surge na Europa num momento que antecede a primeira Guerra Mundial, tornam-se presentes sensações muito fortes de angústia em relação à existência humana representadas nas artes. São as diversas agonias vivenciadas pelos artistas que fazem com que a realidade seja reconfigurada nas obras, adquirindo um tom delirante e onírico. Um dos maiores escritores que perscrutaram esse mal-estar existencial da vida humana desde meados do século XIX foi Dostoiévski. Esse sentimento de opressão psicológica da vida é fortemente captado na obra do escritor russo logo após sua saída da prisão na Sibéria. Vemos aí uma temática que vai ecoar décadas depois na obra de Leskoschek.
Não demorou muito tempo para que, ao chegar no Brasil, Leskoschek entrasse em contato com Cândido Portinari. Depois de se tornarem amigos, Portinari apresentou Leskoschek a José Olympio, figura que estava a frente de uma das maiores editoras do país na década de 1940. A partir dessa parceria, mais de 200 gravuras foram realizadas, e diversas obras da literatura russa ganharam novas edições ilustradas, tais como Os Irmãos Karamázov (1944), O Adolescente (1943), O Eterno Marido (1943), O Jogador (1945) e Os Demônios (1946). Segundo José Neistein, curador de exposições sobre Leskoschek e editor do álbum de gravuras presente na coleção da BBM, pode-se dizer que tais publicações ilustradas renderam um caráter ecumênico às obras de Dostoiévski, firmando sua relevância desde então.
Além de uma trajetória consolidada enquanto artista ilustrador, Leskoschek teve papel fundamental na formação de diversos artistas. Em 1946, foi convidado pelo pintor Thomás Santa Rosa Jr para dar aula no curso de Desenho de Propaganda de Artes Plásticas da FGV, um curso de pequena duração que atraiu grandes nomes como Fayga Ostrower. Logo depois em 1947 foi ministrar aulas em seu ateliê particular localizado no bairro da Glória no Rio de Janeiro, momento em que foi professor de Renina Katz e Ivan Serpa.
Foi no ano de 1949 que Axl Leskoschek decidiu retornar para a Áustria. Renina Katz conta que muitos artistas, tanto alunos quanto amigos de Axl, tentaram convencê-lo a ficar no país, porém, o artista estava decidido a retornar para sua terra natal e se engajar em ajudas sociais. José Neistein, que conheceu Axl pessoalmente, diz que já enfermo e no fim da vida, o artista austríaco teria dito que se arrependera de ter deixado o Brasil.
Axl Leskoschek no acervo da BBM.
No acervo da BBM pode ser consultado um álbum composto de 35 gravuras originais de Leskoschek realizadas na década de 1940 para as primeiras edições de livros de Dostoiévski: uma gravura para o “O Adolescente”, 8 gravuras para o livro “Os Demônios” e 26 gravuras para o livro “Os Irmãos Karamazov”. Ao todo são dois exemplares impressos no ano de 1981 pelo Ateliê Julio Pacello de São Paulo e editados pela Grapheus Editora. O álbum possui texto de apresentação escrito por José Neistein. A editora José Olympio, conhecida por contar com o trabalho de grandes ilustradores, tais como Lívio Abramo e Oswaldo Goeldi, é quem esteve à frente do projeto de publicar as obras russas no país.
“Todo ilustrador verdadeiro tem qualquer coisa de prostituta; do contrário, ele não poderia se adaptar completamente a cada um dos autores, para os quais o editor o ‘comprou’”.
É com esta frase que Leskoschek nos dá uma mostra de um princípio que marca fortemente sua obra: a maleabilidade plástica. Apesar de ter realizado trabalhos em diversas técnicas, como linóleo e aquarela, é através da xilogravura que Leskoschek vai encontrar o meio mais adequado para as ilustrações dos livros, marcando sua inserção no boom editorial brasileiro na década de 1940.
No primeiro contato com a obra, nos deparamos com uma imagem que revela a capacidade do artista de sintetizar o espaço. A gravura de número 1 realizada para ilustrar o livro “O Adolescente” de 1875, apesar de possuir pequenas dimensões, apresenta amplitude e profundidade. Alguns críticos acreditam que sua trajetória no teatro trabalhando com cenografia tornou sua percepção do espaço apurada, o que se reflete diretamente em suas gravuras em miniatura com proporcionalidades perfeitas. Tudo isso para estabelecer uma síntese entre a imagem e a palavra.
Logo em seguida nos deparamos com 8 gravuras feitas para a ilustração de “Os Demônios” de 1872. As gravuras de número 2 e 3, com espaços menores e mais fechados, apresentam uma atmosfera de humor, enquanto, logo em seguida, as gravuras 5 e 6 são responsáveis pelo desenvolvimento de uma cena de clímax e tensão, onde podemos observar uma clara transição da cidade para o bosque, e um alargamento das imagens panorâmicas. Nesta obra, não só a paisagem russa é importante, os quartos e tabernas soturnas são cruciais para a construção de sua poética.
A expressividade facial da gravura de número 9 é outro ponto interessante. Ao prostrar-se, quase que em clamor de onde ressoa também um possível grito de desespero, a personagem ilustrada nos dá uma mostra dos efeitos dramáticos obtidos através do contraste do branco e preto. A gravura faz ecoar o clima de obscuridade concebido por Dostoiévski em sua obra e nos dá a impressão de uma sintonia entre o escritor russo e o artista austríaco.
O livro “Os Irmãos Karamazov” é um dos mais ricamente ilustrados pelo artista. Ao todo são 26 gravuras, em sua maioria miniaturas que retratam de forma bastante pontual objetos ou momentos. Por outro lado, neste conjunto de gravuras é bastante explorada a multiplicidade de facetas humanas, sobretudo a mesquinhez, que Dostoiévski é tão enfático em ressaltar. A gravura de número 12 por exemplo, de forma humorística e até despretensiosa, retrata essa dualidade superficial das índoles do homem. Por outro lado, de modo bastante sinistro, a gravura de número 14 confere uma carga grotesca para retratar Fiódor Pavlovitch, o pai dos irmãos Karamazov, uma das personagens mais detestáveis no livro.
Alguns autores tentaram compreender a obra de Leskoschek e a impressão que fica é que se trata de um artista que escapa de enquadramentos formais. É da vida humana que o artista retira seus temas e inspirações, ou seja, ao adequar-se à obra e a psicologia de Dostoiévski, Leskoschek primeiramente debruça-se sobre toda a questão do drama existencial e da realidade dramática, para recriá-las logo em seguida. É evidente que além da retratação da verdade humana, ou seja, da realidade, há em Leskoschek uma visão de mundo e de arte que privilegia também as sensações.
“Suas xilogravuras de pequenas dimensões, de caráter realista mas também com certo acento expressionista e fantástico, corresponde à arte do período, marcada pela objetividade do real sem abandonar a expressividade visual: (…) na verdade, coexistem na sua gravura elementos realistas, expressionistas, abstratos e até surrealistas” – Frederico Moraes
Referências
Ilustrações de Axl Leskoschek para Dostoiévski: Os Demônios, O Adolescente e Os Irmãos Karamazov. Texto de José Neistein. São Paulo: Graphus, 1981.
Expressionismo no Brasil. Heranças e Afinidades. Fundação Bienal de São Paulo. Imprensa Oficial do Estado, 1985.
VARELA, Marcus Baptista. A xilogravura expressionista brasileira. Rio de Janeiro: Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro: Dissertação de mestrado em história da arte, 1997.
Pedro Perera é graduando em História pela FFLCH-USP.