Debret e Machado de Assis: artistas e historiadores do Brasil do século XIX

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Por Alice Santana de Lima

A revolução artística no Brasil do século XIX

A Missão Artística Francesa foi a responsável por fundar no Brasil a Academia de Artes e Ofícios mais tarde Academia Imperial de Belas Artes —, no início do século XIX.

Para isso, contou com escultores, arquitetos, artesãos, músicos e pintores vindos da França a mando da corte portuguesa que, instalada em terras brasileiras depois da invasão napoleônica em Portugal, tencionava revolucionar o panorama artístico da colônia com a presença e atuação desses artistas. Havia um consenso de que seria necessário alçá-la à ordem dos países centrais, não só abandonando o modelo agrário, primitivo, mas também realizando uma grande renovação artística.

Até a chegada da missão em 1816, segundo o crítico literário Antonio Candido em O romantismo no Brasil, a instrução no país se limitava a formar clérigos, não havia universidades e as bibliotecas eram poucas. Os artistas recém-chegados, no entanto, liderados por Joaquim Lebreton, modificaram esse panorama, estabelecendo aqui oficialmente um ensino superior de artes. Dentre os nomes mais relevantes que colaboraram com essa tarefa está o do pintor Jean Baptiste Debret, que não só lecionou na Academia de Artes e Ofícios, mas também se dedicou longamente a pintar o cenário brasileiro e suas contradições durante os 15 anos em que viveu no país.

Cena de Carnaval. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional/Divisão de Iconografia

No acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin constam exemplares da primeira edição dos três volumes de Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, composta por gravuras feitas a partir das aquarelas de Debret, adquiridos por Mindlin na França, onde foram publicados entre os anos de 1834 e 1839. A reunião tornou-se uma documentação importante da vida na colônia naquela época, mostrando suas particularidades naturais, costumes, aspectos religiosos e, sobretudo, o cotidiano dos escravos, na cidade e no campo.

 

 

Debret e os impasses da realidade brasileira

Segundo  o professor e crítico de arte Rodrigo Naves, no entanto, o pintor teve de adaptar sua forma para captar esse conteúdo de maneira mais ampla. A formação de Debret foi influenciada pelo Neoclassicismo, muito em razão de seu tutor, o pintor francês Jacques-Louis David. Na França, o movimento pretendia encontrar, no passado romano, episódios exemplares e atualizá-los no presente da Revolução Francesa, de modo a criar modelos de comportamento num contexto de princípios universais — igualdade, liberdade e fraternidade. Esse ideário está posto nos primeiros quadros de Debret, que retratavam comandantes e imperadores romanos, bem como os grandes episódios napoleônicos, fazendo com que a Revolução e a tradição clássica andassem lado a lado.

Napoleão presta homenagem à coragem infeliz. Musée National du Château, Versalhes, França)

Quando chega ao Brasil, contudo, não encontra a tradição republicana e igualitária que norteava suas pinturas na França. É por isso que para Rodrigo Naves em A forma difícil “o trabalho brasileiro de Debret se diferencia de sua produção neoclássica francesa”. Os elementos técnicos que usava em seu país de origem não cabiam a uma realidade tão distinta quanto a brasileira. Como seria possível que o ideário moderno se acomodasse num país ainda escravista? Diante desse cenário, precisa apreender na forma, através de elementos técnicos, a nova matéria social com a qual se deparava.

As gravuras em preto e branco não são capazes de reproduzir fielmente a coloração das telas, pintadas através da técnica de aquarela que, para Naves, era a mais adequada de fato, pois evitava manifestações de grandiloquência e facilitava uma representação eficaz da vida nas ruas brasileiras, marcada pela precariedade e pela pobreza. Enquanto os ideais da Revolução Francesa correspondiam aos do neoclassicismo adotado pelo artista, a continuidade da escravidão impedia que esse mesmo movimento se transpusesse para o Brasil plenamente. A compreensão desse impasse é o que torna a obra de Debret relevante: mais do que buscar uma grandeza pictórica, tenta entender a sociabilidade do país, de modo que sua produção tenha até hoje enorme valor histórico.

Visita a uma fazenda. Acervo Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin

Debret tenta captar a tipicidade da escravidão e não somente servir-se dela e de seus desdobramentos apenas como paisagem em suas telas. Uma em particular, que retrata o cais do Valongo — cujas ruínas recentemente foram declaradas patrimônio da humanidade pela UNESCO — é exemplar: entre 1779 e 1831, segundo Mary Karasch, quase 1 milhão de africanos desembarcaram neste ponto, tornando o Rio de Janeiro a maior cidade Africana das Américas. Essa presença massiva não passou despercebida aos olhos de Debret, que expôs a presença do negro e sua capacidade de estruturar os espaços e não apenas fazer parte deles, tendo como cenário o cais do Valongo — único das Américas criado apenas com a finalidade de receber escravos — e outros pontos importantes, do campo à cidade.

Mercado na Rua Valongo. Acervo Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin

Telas como “Negra tatuada vendendo caju”, uma das mais famosas de Debret que, no entanto, não foi utilizada na Viagem, trazem retratos mais aproximados, conferindo maior vivacidade à imagem. Representada mais de perto, a moça ocupa um lugar de destaque em relação ao espaço onde realiza seus negócios, e sua expressão, que chama atenção, parece melancólica, pesarosa. Thomas Ender, também integrante da Missão, pintou esse mesmo Rio de Janeiro, porém de um ponto de vista paisagista, que acabava por retratar a figura do negro apenas como mais um dos elementos no ambiente, sem destaque algum. Debret vai por outro caminho: busca captar uma personalidade nas figuras, humanizando-as.

Negra tatuada vendendo caju. Museu Castro Maya, Rio de Janeiro

Machado de Assis, a forma romance e a escravidão

Para além dos registros pictóricos, outro artista que teve de adaptar sua forma para tratar adequadamente da realidade escravista do século XIX foi Machado de Assis. A forma romance por ele adotada, surgida na Europa em um contexto de ascensão do Liberalismo pós Revolução Francesa, pressupunha uma sociedade estruturada a partir de classes sociais, pautada nas liberdades individuais, no trabalho livre e remunerado e na concorrência, que servisse como mote central. Contudo, nada disso pode ser encontrado no Brasil por um único motivo: a escravidão.

Da mesma forma que Debret modifica suas técnicas de composição para pintar esse estado de coisas, Machado também o faz em relação à forma romance. Reinventa o gênero para que essa realidade seja alcançada, de modo que abordar as graves questões do país apenas por intermédio do tema seria superficial e, portanto, insuficiente. É isso que o consagra como o nosso maior escritor: através de uma prosa indissociável da matéria social brasileira foi capaz de tratar da má formação do país a nível estrutural. Seus dois maiores romances, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, e contos como Pai contra mãe e Mariana são exemplos primordiais desse feito. No acervo da BBM, constam exemplares das primeiras edições desses livros e de toda a obra de Machado.

 

Ironia machadiana: artifício literário

Frequentemente acusado de não prestar o devido tratamento a temas graves do Brasil como a escravidão, por poucas vezes ter dado o protagonismo a um personagem negro ou jamais ter se declarado abertamente abolicionista, Machado foi, na verdade, o autor que melhor abordou essa problemática em sua obra. Para Sidney Chalhoub, a escravidão é sua pauta oculta; uma “presença ausente” que, por não estar em nada, está em tudo. A chamada “ironia machadiana” é o artifício usado pelo autor para tratar da elite brasileira: clientelista, escravista, patriarcal e ultrapassada, dá voz a ela para melhor reprová-la.

Primeira edição, com dedicatória de Machado a José Veríssimo. Acervo Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin

À sua época, Machado foi aclamado por essa mesma elite da qual fazia parte, inclusive, por ter ascendido socialmente e se consagrado grande escritor ainda em vida , que, na verdade, caiu na sua isca, sem perceber que o autor não estava simplesmente narrando o seu cotidiano, mas expondo seus abusos. O que parece ser o protagonismo do rico é, na verdade, nas mãos de Machado, sua delação. Para Antonio Candido, o autor se abre para uma série de ambivalências ao usar um estilo refinado que, no fundo, critica. Era, de fato, o ideal a ser feito, de forma a não chocar seu público e evitar contrariedades à moral social vigente no período.

Os protagonistas de Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, Brás Cubas e Bento Santiago, respectivamente, são grandes exemplos disso. Detêm o discurso afinal, narram suas histórias em primeira pessoa e, assim, exercem o poder da palavras da mesma forma que gozam dos privilégios de classe enquanto membros da elite brasileira do século XIX: as estripulias e gracejos de Brás não são apenas uma mera sátira ou entretenimento, assim como o poder de fala de Bento não é usado somente para provar ao leitor que fora traído pela esposa. O que está em jogo é a correspondência direta que esses artifícios narrativos têm com a realidade, sendo a expressão da supremacia exercida pelos membros das classes abastadas em relação à população escrava e pobre/ livre.

Brás narra o que quer, quando quer, do jeito que bem entende e, ainda por cima, ofende o leitor: “se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus”, além de relatar as crueldades que praticava desde a infância contra seu escravo, Prudêncio, como se fosse um episódio corriqueiro em sua vida — que de fato era. Bento, por sua vez, faz de sua história um tribunal acusatório, buscando atestar a traição de Capitu para justificar tê-la abandonado na Suíça, junto ao filho, onde acaba falecendo sem nenhuma assistência por parte do ex-marido. “A mãe,  — creio que ainda não disse que estava morta e enterrada. Estava; lá repousa na velha Suíça“, narra. É como se a tivesse forçado a voltar ao estrato social ao qual pertencia antes de se casar com ele, exercendo novamente sua dominação de classe de maneira sórdida.

Páginas de rosto das primeiras edições de Memórias Póstumas de Brás Cubas e de Dom Casmurro. Acervo Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin

Esse descompasso brasileiro, que misturava o ideário liberal burguês e a escravidão, é consequência histórica, mas também ponto de partida artístico. Machado e Debret se aproximam justamente por terem se apropriado dessa conjuntura não simplesmente no que se refere às temáticas que derivam dela, mas sobretudo nos aspectos formais de suas respectivas produções, de forma que tenham conseguido tratá-la profundamente. São retratos do Brasil que entendem a escravidão como o retrocesso que de fato era e não como o progresso que se buscava alcançar com sua implementação.

Essas posições não estão explicitamente manifestas pelos artistas, mas postas em seus métodos de produção. Assim, desenham um mapa geopolítico do país e até mesmo do mundo, uma vez que captam a peculiaridade deste frente aos demais. Sentem a dificuldade de se representar historicamente um país que, no século XIX, se entendia moderno, mas que ainda tinha escravos e é essa sensibilidade que empreendem ao tentá-lo que os torna grandes documentadores do Brasil, da pintura à literatura.

 

Referências

ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: L&PM, 2008.

__________. Dom Casmurro. São Paulo: Escala Educacional, 2008.

CANDIDO, Antonio. O Romantismo no Brasil. São Paulo-Humanitas/FFLCH/ SP, 2004

CANDIDO, Antonio. Esquema Machado de Assis In: Vários Escritos. 3ª ed. rev. e ampl. – São Paulo: Duas Cidades, 1995.

CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, historiador. São Paulo: ed. Companhia das Letras, 2003.

DEBRET, Jean Baptiste. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Disponível em: <https://digital.bbm.usp.br/view/?45000008516&bbm/3802#page/1/mode/2up>

KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850) São Paulo, Companhia das Letras, 2000.

NAVES, Rodrigo. Debret, o neoclassicismo e a escravidão. In: A forma difícil: ensaios sobre a arte brasileira. São Paulo: Editora Ática, 1996: p. 41-75.

SOARES, Carlos Eugenio Libano. VALONGO, CAIS DOS ESCRAVOS: MEMÓRIA DA DIÁSPORA E MODERNIZAÇÃO PORTUÁRIA NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, 1668 – 1911. 2013. 127 f. Tese (Doutorado) – Curso de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. Disponível em: <http://www.portomaravilha.com.br/conteudo/estudos/academicos/DOUTORAMENTO%20UFRJ%20ARQUEOLOGIA%20.pdf>. Acesso em: 07 jan. 2019.

 

Alice Santana de Lima é graduanda em Letras – com habilitação em português e italiano – pela FFLCH-USP.

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