A Semana de arte moderna e contexto do festival de 1922

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Por André Luis Rodrigues

A inauguração do Theatro Municipal de São Paulo em 1911, um belo edifício erguido no Morro do Chá, na região central, em estilo arquitetônico inspirado na Ópera de Paris, tinha levado ao primeiro congestionamento de automóveis na cidade, índice tanto da riqueza e pujança da capital paulista, propiciadas pela produção cafeeira e pela incipiente industrialização, uma e outra movidas pelo trabalho de brasileiros e imigrantes, como dos conhecidos efeitos “colaterais” desse desenvolvimento num ritmo que então podia ser chamado de alucinante.
Em fevereiro de 1922, o luxo e o brilho do imponente teatro deviam estar praticamente intactos, ainda que estivesse já incorporado à paisagem da cidade e, ao longo desses pouco mais de dez anos, tivesse recebido muitos espetáculos como o da abertura, cujo programa incluía a ópera “O Guarani”, de Carlos Gomes. Assim, mesmo as pessoas mais simples que circulavam pelo Viaduto do Chá, pelas ruas Coronel Xavier de Toledo e Barão de Itapetininga, e pela Esplanada do Teatro, que depois receberia o nome de Praça Ramos de Azevedo, ou trabalhavam
nas cercanias até o começo da noite não devem ter se mostrado muito surpresas com a entrada no Municipal de homens e mulheres elegantemente vestidos, que pareciam vir para mais uma atração da temporada lírica ou musical.

Esses habitués, por seu turno, não poderiam ficar mais chocados diante do que viam e ouviam lá dentro, por mais que o nome dado ao festival sugerisse que iriam ver e ouvir o novo: Semana de Arte Moderna. Ainda que até hoje não seja ponto pacífico, a ideia teria partido do pintor Di Cavalcanti, como uma grande oportunidade – no ano em que se comemorava o Centenário da Independência – de apresentar a arte nova concebida ou produzida por jovens pintores, escultores, arquitetos, compositores e escritores, e ao mesmo tempo chacoalhar o marasmo da produção artística acadêmica e convencional, que insistia em não acertar o passo com as transformações – para o bem e para o mal – que se davam em todos os setores da vida humana, no Brasil, embora com mais vagar, e no mundo todo.

Ao ser informado da proposta, o escritor e diplomata Graça Aranha a acolheu com grande entusiasmo. Interessados nesse envolvimento antes por conta do prestígio do escritor mais velho que por sua obra e ideias, de fato pouco avançadas, os primeiros modernistas não demorariam a romper com o autor de Canaã. Mas seria por seu intermédio que o evento obteria apoio e patrocínio de homens poderosos, membros das famílias mais tradicionais de São Paulo, cuja riqueza estava ligada ao café, como é o caso de Paulo Prado, historiador e intelectual refinado, para Mário de Andrade o “fautor verdadeiro da Semana de Arte Moderna”. Graça Aranha viria ainda a proferir a conferência de abertura, “A emoção estética na arte moderna”.

Assim, nas noites de 13, 15 e 17 de fevereiro (segunda, quarta e sexta-feira), no interior do já venerável Theatro Municipal, a arte dos então chamados futuristas era apresentada ao público, que em grande parte expressava – por meio de vaias, assobios, pateadas, latidos e cacarejos – o seu descontentamento, irritação ou desprezo diante do que viam e ouviam.

O exorbitante dessas manifestações não encontrava explicação apenas no fato de terem pago ingresso para um espetáculo que parecia não estar à altura do esperado. Aqueles que julgavam genial a poesia de um epígono qualquer, inspirado num dos grandes poetas parnasianos, como Olavo Bilac ou Alberto de Oliveira, não tinham como não se horrorizar ao ouvirem os poemas de Pauliceia desvairada declamados no palco por Mário de Andrade. Aqueles que consideravam grandes artistas os imitadores de Pedro Américo ou Victor Meirelles não podiam deixar de se escandalizar diante dos quadros de Anita Malfatti, como “A mulher de cabelos verdes” ou “A estudanta russa”, expostos no saguão do teatro, juntamente com obras de Di Cavalcanti, Vicente do Rego Monteiro, Victor Brecheret e outros jovens artistas. Os amantes da música de Carlos Gomes, ao ouvirem as composições de Heitor Villa-Lobos executadas no palco, só podiam reagir com exasperação.

Nem mesmo obras relativamente convencionais ou exposições teóricas escapavam da fúria da audiência. Oswald de Andrade, que em 1924 lançaria o “Manifesto da Poesia Pau Brasil”, mal conseguiu ler um trecho de seu romance Os condenados, que ele mesmo afirmará muitos anos depois “nada tinha de excessivamente moderno ou revolucionário”. O público vaiou, pateou, assobiou e gritou durante toda a leitura. Mário, por sua vez, proferiu uma conferência sobre artes plásticas na escadaria do teatro, “cercado de anônimos que [lhe] caçoavam e ofendiam a
valer”.

A imprensa ecoava a aversão do público. Obras de artistas que hoje admiramos eram motivo de chacota e deboche, sendo definidas por um jornalista da época como “ceroplastia [arte de moldar em cera] caricata de pinceladas a esmo, uma touça de sons atacados de pulgões melódicos e um carrilhão de palavras que se assemelham aos rumores infernais de uma banda alemã” (Oliveira Castro, n’A Gazeta). Menotti del Picchia (quase sempre com o pseudônimo Hélios), Mário de Andrade e Oswald de Andrade não deixavam esses ataques sem resposta, em artigos tão virulentos e derrisórios como os de seus detratores. Na defesa de uma expressão coloquial e inventiva, recorriam com frequência a uma linguagem não menos pomposa e grandiloquente que a de seus inimigos.

A despeito de todo o escândalo e animosidade, a Semana foi caracterizada por uma mistura entre o verdadeiramente moderno e o moderno ma non tropo, não muito diferente do que se deu num episódio revelador ocorrido em 1917 e contado muitos anos depois por Mário de Andrade. Arrebatado pela exposição de Anita Malfatti, violentamente criticada por Monteiro Lobato, o futuro autor de Macunaíma acabou compondo um poema sobre o quadro “O homem amarelo”, não em versos livres e de feitio moderno, como seria de se esperar, mas nos moldes de um soneto rigorosamente parnasiano.

No caso da música, peças de Villa-Lobos, ainda que predominantes no programa, foram executadas ao lado de partituras do compositor impressionista francês Claude Debussy. A plateia, por sua vez, insistia para que a grande pianista Guiomar Novaes tocasse o romântico Chopin. Como mostra José Miguel Wisnik, em O coro dos contrários: a música em torno da semana de 22, mesmo o que foi apresentado de Villa-Lobos na Semana não era ainda significativo do “modernismo” do compositor, embora constituísse etapa importante para o desenvolvimento de sua
música nesse sentido, o que só se daria depois de 1922.

Com relação à pintura, como mostra Aracy Amaral, num livro que se tornou indispensável para o estudo das artes desse período, Artes plásticas na Semana de 22, em lugar de “futurista” a tendência que melhor definiria boa parte das obras expostas seria “pós-impressionista”. Quanto às demais, em larga medida se dividiriam entre obras românticas e obras calcadas num cubismo “não digerido e inautêntico”.

Como sugere o exemplo de Oswald, com a literatura não parece ter sido muito diferente. Vários escritores e poetas que participaram da Semana pareciam mais modernistas nas ideias, no discurso e na atitude polêmica do que na criação literária. A despeito de tentativas de renovação por parte de alguns escritores nos anos precedentes, só Mário de Andrade havia escrito um livro de poemas realmente inovador, que logo seria publicado. Os demais, com uma ou outra exceção – como Manuel Bandeira, que não esteve presente na Semana, mas teve o seu provocativo poema “Os sapos” declamado por Ronald de Carvalho, vindo do Rio de Janeiro com outros artistas –, produziam então obras que formalmente não se distinguiam muito da estética parnasiana ou simbolista, mesmo que tematicamente vinculadas à modernidade.

A confusão entre o velho e o novo, entre o desejo de inovação e a impossibilidade de se libertar inteiramente do passado, parece encontrar uma paródia numa das anedotas mais conhecidas e saborosas da Semana, em torno da entrada de Villa-Lobos no palco do teatro, vestido a rigor, com um pé em sapato social e o outro em chinelo, devido a um calo ou a uma infecção, o que muitos acabaram interpretando como um gesto “futurista”…

Se é assim de fato, porque a Semana de 22 tornou-se tão célebre e continua a ser considerada por muitos um evento decisivo nos rumos da arte e da literatura no Brasil?

Talvez antes de mais nada porque veio a adquirir um caráter simbólico de renovação, do desejo de mudança, do imperativo de ruptura com a tradição. Esse anseio surge, é verdade, alguns anos antes da Semana, a partir do contato dos primeiros modernistas com a arte e artistas dos movimentos de vanguarda europeus do início do século XX, como o Futurismo, o Cubismo e o Expressionismo. O próprio nacionalismo não se desvincula dessa faceta internacionalista do modernismo brasileiro, pois o voltar os olhos para o que era nosso foi também em alguma
medida inspirado nesses movimentos.

Com a exposição de Anita Malfatti, em 1917, e a descoberta da escultura de Victor Brecheret pelos jovens “futuristas” de São Paulo, em 1920, os artistas e escritores brasileiros que buscavam novos caminhos se aproximam, mas é com a Semana – e também com os “salões modernistas” – que estreitam ainda mais os laços (em que pese a separação que logo iria se dar em pelo menos dois grupos antagônicos, na arte e na política) e a convivência torna-se mais frequente e intensa.

Nesse contexto, a arte e a literatura iam sendo arejadas e enriquecidas pelo humor e pelo riso, por formas e expressões populares, pela figuração de regiões e paisagens do país até então esquecidas, ao mesmo tempo que tomavam um rumo mais consonante com a modernidade, o que levou à criação de obras caracterizadas pela inventividade, pela descontinuidade, pela dissonância, pela simultaneidade, pelo anti-ilusionismo. Nesse convívio e diálogo fecundo, revistas e manifestos iam surgindo e desaparecendo para dar lugar a outros mais novos e
eventualmente mais radicais.

A polêmica, por sua vez, daria ainda maior destaque a essa produção (é de então a conhecida e paradoxal expressão “a consagração da vaia”) e, se por algum tempo continuaria sendo duramente criticada por muitos, ganharia aos poucos a admiração e o reconhecimento de boa parte do público e da crítica. Mesmo sem obter uma completa unanimidade, em poucos anos os jovens modernistas sairiam vencedores da peleja contra os conservadores ou passadistas.

A Semana de Arte Moderna foi assim um momento propiciador da abertura para a criação de obras genuinamente inovadoras, não apenas nos temas, mas também ou especialmente nos procedimentos formais. Como dirá Mário de Andrade em 1942, na famosa conferência sobre o movimento modernista, uma das grandes conquistas dos jovens que realizaram a Semana de Arte Moderna foi “o direito permanente à pesquisa estética”. Quanto à atuação social e política do escritor e do artista, à tarefa de trazer para a sua obra o país em toda a sua multiplicidade e
complexidade, seus problemas e contradições, e ao desempenho de um papel mais construtivo, teríamos de esperar ainda alguns anos. Na literatura, isso se deu a partir de 1930 não somente, mas também porque os modernistas da fase heroica haviam por assim dizer preparado o terreno nos anos que se seguiram à Semana, ao realizarem o trabalho de destruição dos esquemas e fórmulas obsoletos, e conquistarem a duras penas a tão valiosa liberdade de criação.

André Luis Rodrigues é Professor de Literatura Brasileira no curso de Letras da FFLCH/USP.

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