Uma utopia socialista em Santa Catarina: testemunho de uma jornalista militante

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50 anos antes da experiência anarquista da Colônia Cecília no Paraná, em 1841 houve em Santa Catarina uma outra tentativa de estabelecer uma organização política paralela no Brasil. Phalanstère du Brésil – voyage dans l’Amerique Meridionale (1842) é uma publicação francesa escrita pela jornalista Louise Bachelet divulgando a causa fourierista na Europa, teoria que é vista hoje apenas como parte dos socialismos utópicos do século XIX, mas aparece aqui ainda carregada de otimismo.

“Partindo às cinco horas da tarde da cidade de Santa Catarina, fomos em direção ao Saí na manhã do dia seguinte, e em 25 de julho de 1842, precisamente ao meio-dia, eu toquei finalmente a terra do futuro e da regeneração. (…)Eu beijei a areia da praia, e se várias damas não tivessem se apressado a me receber em seus braços e me segurar, o excesso de alegria teria sem dúvida suprimido meus sentidos.”

O falanstério de Fourier

O conceito de falanstério faz parte do projeto de sociedade do filósofo francês Charles Fourier (1772 – 1837). Trata-se de um grande prédio que funcionaria como uma unidade social e que comportaria áreas de convivência, habitação e oficinas de trabalho. A partir do sucesso de um falanstério, outros se disseminaram espontaneamente, formando assim o embrião de uma sociedade harmônica, oposta à sociedade industrial europeia em termos econômicos e morais.

Na primeira página do livro há uma ilustração de um gigantesco prédio com a legenda “Falanstério do Brasil”, sem explicar que o prédio é mais uma meta distante, um horizonte, do que algo que esteve próximo de ser concretizado no Saí. O desenho é o esquema mais famoso da teoria de Fourier.

O Manifesto do Partido Comunista (1848) de Marx e Engels descreve os falanstérios como “castelos no ar” pela sua impraticabilidade, e com o impacto desse texto, Fourier passou a ser mencionado, quase sempre junto dos seus contemporâneos Robert Owen e Henri de Saint-Simon, como exemplos do socialismo utópico, contrapondo-se ao socialismo científico, teorizado pela dupla alemã. Infelizmente para Fourier, já que ele não apreciava ser comparado aos outros dois autores (em 1831 ele escreve um panfleto intitulado “Armadilhas e charlatanismo das seitas de Saint-Simon e Owen”) e muito menos se definia como socialista, uma vez que o termo no seu significado moderno surge na obra de Saint-Simon.

“No topo de segunda cadeia me esperava um espetáculo muito agradável. Na curva formada pela rua Mangin, antes da descida, uma área de floresta derrubada deixa à mostra toda a planície do Saí (…) Um vasto assentamento no topo de um monte, e como eu mostrei ao Sr. Mangin [um engenheiro da colônia]: É lá, ele me disse, que nós construiremos o primeiro falanstério.”

 

A experiência em Santa Catarina

Mapa da região da Bacia de Babitonga, onde fica o Saí. (Biblioteca Nacional)

“Foi uma verdadeira festa. Todos estes vigorosos industriais com suas mulheres e filhos pela mão – tantos penhores de esperanças e de futuro, concorriam para dar um aspecto magnífico e grandioso a esta tocante e solene demonstração. O ministro parecia contente com a sua obra, o soberano lançava olhos de curiosidade e de ternura para estes aventureiros, que de tão longe vinham solicitar a felicidade de viver à sombra das suas leis.” (Jornal do Commercio. Ano 1841, Edição 329)

Assim é celebrada a chegada do médico homeopata francês Benoît Jules Mure ao Rio, acompanhado de algumas centenas de colonos também franceses, com o plano de fundar uma colônia industrial e fourierista no Brasil.

Por mais que o redator-chefe deste jornal, Francisco Picot, fosse ligado à causa fourierista – ele patrocina um dos prédios do Saí, que levaria seu nome – e assim a postura deslumbrada é até esperada, não deixa de ser curiosa a reação positiva de D. Pedro II, seus ministros e a elite de Santa Catarina que cede as terras aos franceses. A criação de uma comunidade com fundamentos ideológicos contrários, em praticamente todos os sentidos, à ordem vigente acaba não sendo tomada como uma ameaça. Mure e seus colonos tinham planos muito claros de produzir maquinário sofisticado para venda no Brasil e dessa forma sustentar a comunidade. No contexto em que a Inglaterra impunha cada vez mais censuras ao uso do trabalho escravo e a necessidade de industrialização se acentuava, a vinda ao Brasil de imigrantes europeus com intenções empreendedoras importava mais do que um discurso político com potencial revolucionário.

Louise Bachelet

Louise Bachelet, na sua condição de jornalista e militante, buscava aplicações das teorias de Fourier na América para relatá-las à Europa. Ela começa seu texto em Montevidéu, onde acontecia uma sangrenta guerra civil, e de lá segue para Santa Catarina, depois de ouvir falar da colônia do Saí.

Phalanstère du Brésil, por ter um tom muito elogioso e ter sido publicado na França como um folheto de propaganda, acaba sendo mais registro desse posicionamento ideológico do que registro da colônia em si. A veracidade dos testemunhos de Bachelet é difícil de ser comprovada já que há pouca informação sobre a colônia, e parte dela também tem motivação política e de propaganda, seja a favor ou contra o fundador do Saí, Jules Mure. Uma das certezas é que em 1844, dois anos depois da publicação do folheto, já não existia a colônia fourierista.

Em um texto de militantes contrários a Mure, até mesmo a autoria de Louise Bachelet é questionada, havendo a sugestão de que o próprio Mure teria escrito o relato, por conta de uma “semelhança de estilo”, o que igualmente não pode ser comprovado e acaba falando mais sobre o clima entre os fourieristas do que de Mure ou Louise Bachelet.

“Quanto a mim, deixo aqui meu cajado e capa de peregrino. Dedicada de corpo e a alma à realização falansteriana, eu era estrangeira nesta terra, enquanto a teoria continuasse confinada nos livros. Hoje, quando ela se encarna e lança raízes no chão, eu me apego ao lugar onde ela deve crescer, florescer e se expandir. Como uma mãe terna, lembrarei com amor os desenvolvimentos do germe sagrado, sofrerei de seus problemas, exaltar-me-ei com a vida dele, e se algum furacão imprevisto quebrar seu tronco delicado, oh! então, eu não teria mais nada para pedir ao mundo além de alguns pés de terra, para me enterrar no lugar onde todas as minhas esperanças teriam perecido.

Louise Bachelet”

 

Referências:

Gisele Maria da Silva. Falanstério do Saí: uma experiência utópica em Santa Catarina.  Santa Catarina em História, Florianópolis, UFSC – Brasil, vol.1, n.1, 2007.

Hoyêdo Nunes Lins. Colonização fourierista no sul do Brasil: o Falanstério do Saí (1841-1844) PPGE/UFSC, 2009

Annuaire de la coopération Fédération nationale des coopératives de consommateurs (France) Bibliothèque nationale de France

 

Cris Ambrosio

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