Uma aristocrata perdida no Amazonas

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Isabel Godin des Odonais protagoniza uma das mais impressionantes aventuras do século XVIII. Em 1749, Jean Godin, seu marido, parte de Riobamba, atualmente Equador, onde vivem, para Caiena, na Guiana Francesa. Por razões políticas, Jean Godin fica impedido de retornar à Riobamba. Vinte anos após infrutíferas tentativas de reencontro do casal, Isabel organiza uma comitiva de mais de quarenta pessoas e ruma para Caiena. Para realizar o percurso é preciso atravessar os Andes e a Bacia amazônica. Por motivos os mais variados a comitiva mingua pouco a pouco, até que, próxima ao destino final, Isabel se vê sozinha no meio da floresta.   

 

Uma expedição no interior da América do Sul

Folha de rosto da edição francesa, 1745 (Gallica, BNF)

O livro Relation abrégée d’un Voyage fait dans l’intérieur de L’Amérique Méridionale [Relato abreviado de uma viagem feita no interior da América Meridional], de Charles Marie de La Condamine, é fruto de uma expedição científica da qual ele participou a partir de 1735. Realizada por meio de um consórcio entre França e Espanha, seu objetivo era investigar os graus do meridiano à altura do Equador. O debate no momento era impulsionado pelas questões trazidas pelo surgimento da teoria newtoniana a respeito de a terra ser ou não achatada em seus polos. Apesar do pretexto científico, a França possuía também objetivos políticos de obter informações sobre o tão velado interior das colônias americanas do Império Espanhol. Por esse motivo, a expedição gerou desconfiança constante entre as autoridades espanholas e logo colapsou. Os participantes da expedição ficaram, deste modo, lançados à própria sorte na tentativa de voltar para a França.

La Condamine partiu de Quito e retornou à França via Bacia amazônica, tornando-se o primeiro cientista a realizar esse trajeto e publicar um relato a respeito. As narrativas dessas errâncias eram consumidas avidamente pelo leitor europeu, que neste momento vivenciava uma expansão da curiosidade a respeito das terras longínquas no interior dos continentes. Ademais, as pitadas de aventura oferecidas pela literatura de sobrevivência captavam a atenção do público. Neste cenário, a história das aventuras de Isabel Godin des Odonais, aristocrata euro-americana que se perdeu sozinha por dias na floresta amazônica na tentativa de realizar o mesmo trajeto, tornaram-se notórias e La Condamine logo tratou de incorporar um relato da travessia realizada por ela, que foi escrito por seu marido, Jean Godin e que se encontra anexada ao final do livro sob o título de “Lettre de M. Godin des Odonais, a M. de la Condamine” [Carta do sr. Godin des Odonais, ao sr. de la Condamine].

 

Viagem de uma aristocrata através do Amazonas

Isabel Godin des Odonais era filha de um funcionário da administração colonial espanhola em Riobamba, cidade localizada a aproximadamente 200km ao sul de Quito, no então Vice-Reino do Peru. Ela conheceu o cartógrafo e naturalista Jean Godin, integrante da expedição, com quem se casou em 1741. Em 1749, o marido de Isabel se viu obrigado a regressar à França devido ao falecimento de seu pai. Como ela se encontrava grávida, não pôde acompanhar o marido, que chegou a Caiena atravessando a Bacia amazônica. Tão logo aportou na Guiana Francesa, Godin empenhou-se em reunir meios de buscar sua esposa, o que ele só conseguiu após quinze anos de persistência.

A administração colonial portuguesa na América enviou uma embarcação para a realização da viagem. Contudo, Godin adoeceu e teve seus planos frustrados. A solução foi o envio de um representante rumo à fronteira da colônia espanhola. O emissário não cumpriu zelosamente com sua missão, o que gerou uma falha na comunicação com Isabel Godin, que não teria como tomar ciência da embarcação.

A boataria, contudo, se espalhou pela região de Quito e chegou a seus ouvidos. Após confirmar a veracidade das informações, a senhora Godin iniciou os preparativos para a viagem, organizando sua comitiva. Seguiram com ela seus dois irmãos, um sobrinho, um escravo e três criadas; além de dois franceses que surgiram ao saber que a viagem ocorreria. A viagem teve início em 1769 e encontrou diversos descaminhos tão logo foi realizada a descida dos Andes e a chegada nas cabeceiras da Bacia amazônica. Dentre eles, destacam-se o frequente abandono da mão de obra indígena, responsável pelo transporte da bagagem, o afogamento de guias e as canoas viradas na correnteza.

Ao tentar prosseguir viagem em meio à densa vegetação da floresta, o grupo se perdeu e foi acometido pela fome e pelo cansaço em poucos dias. Aos poucos todos morreram, exceto a motivadora da viagem, por mais inverossímil que pareça. A sobrevivente vagou pela floresta por aproximadamente dez dias. Encontrou água apenas no quarto e, nos seguintes, alimentou-se de frutos silvestres e ovos de perdiz. Ao cabo desses dias, a mulher voltou a encontrar a margem do rio e dois indígenas que a levaram para um aldeamento espanhol. Após reabilitar-se dos efeitos dos dias de privação, a sra. Godin retomou viagem e finalmente reencontrou com seu marido em 1770 na Guiana Francesa. O casal seguiu para a França três anos depois.

Trajeto de Isabel des Odonais

Referências

MAGALHÃES, Basílio de. Apresentação. In: CONDAMINE, Charles-Marie de la. Viagem na América Meridional descendo o rio das Amazonas.

PRATT, Mary Louise. Os Olhos do Império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC, 1999.

SAFIER, Neil. Como era ardiloso o meu francês: Charles-Marie de la Condamine e a Amazônia das Luzes. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.29, nº57, p.91-114, 2009.

Rafaél Antônio Cruz é graduando em História pela FFLCH-USP

Curadoria

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