Traduzadaptação: as correspondências entre Guimarães Rosa e seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri

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Por Alice Santana de Lima

A tradução como um ato criativo

O ato de traduzir não exige simplesmente a busca por termos e expressões rigorosamente correspondentes entre uma língua e outra: na verdade, pressupõe a execução de um ato interpretativo que extrapola o logocentrismo. Sendo assim, deve ser uma tradução não apenas de palavras, mas a efetiva construção de sentidos. Isso deve ser feito pelo tradutor não com o intuito de atribuir as definições que bem entender ao objeto do qual se ocupa, mas de apreender seu contexto social e ideológico e, aí sim, lhe dar o sentido mais adequado na nova língua para a qual será transcrito.

Quando se trata da produção de Guimarães Rosa, essa tarefa parece ser ainda mais difícil. A crítica, inclusive, já chegou a considerá-la intraduzível, tamanha a complexidade dos termos empregados: de neologismos a expressões comuns entre os sertanejos, não deixa de se tratar de um vocabulário restrito, que coloca certa dificuldade de compreensão até para falantes nativos. Conforme assinala Francis Aubert: “À primeira vista, somente os que conhecessem muito bem a língua portuguesa falada no Brasil e também sua variedade dialetal do sertão brasileiro poderiam ‘decifrá-lo’ e compreender o universo recriado em suas obras”.

Cuidado de Guimarães em oferecer uma informação completa de um pássaro da fauna local

Apesar da aparente dificuldade de compreensão da prosa roseana, logo começaram a surgir diversas traduções dela. Ficou evidente, portanto, como o seu indecifrável poderia sim ser transportado – recuperando a origem etimológica do verbo traduzir – para outros idiomas. Sua tradução para o italiano, em particular, ganha destaque nesse sentido, tendo em vista a preocupação e o empenho de Edoardo Bizzarri para executá-la de maneira justa. Encarregado de verter Guimarães Rosa para a língua italiana, trocou com ele diversas cartas ao longo do percurso: no acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin constam os originais dessas correspondências, que tratam do processo de tradução de Corpo de Baile, livro publicado em 1956 que reúne sete novelas do autor. As cartas são prova idônea não apenas do esforço de Bizzarri para compreender a obra em sua completude, mas também a dedicação de Guimarães ao concebê-la.

Em Uma vida entre livros: Reencontros com o tempo, ao falar sobre sua relação com Guimarães Rosa, José Mindlin comenta como a iniciativa de publicar as correspondências partiu de Bizzarri, que no entanto teve medo de que esse desejo fosse interpretado como uma tentativa de se autopromover. Ao ser consultado sobre a ideia, Rosa aceitou prontamente e pretendia ir a São Paulo encontrar Mindlin e Bizzarri para acertar os detalhes. Acabou falecendo pouco tempo depois, mas a edição saiu mesmo assim. Atualmente, a editora Nova Fronteira é a responsável pela publicação do livro que reúne as cartas.

 

Relação autor-tradutor: correspondências

O contato entre Guimarães e Edoardo foi quase exclusivamente epistolar. Encontraram-se uma única vez, em 1957, durante a cerimônia de entrega do prêmio literário Carmen Dolores Barbosa. À época, Bizzarri ainda nem poderia imaginar que um dia viria a tornar-se o tradutor de Guimarães, ganhador do prêmio naquele ano. Mais tarde, em 1959, pediu o consentimento do autor para traduzir o conto “Duelo”, do livro Sagarana. Após a autorização e, posteriormente, a publicação do texto traduzido no periódico Il Progresso Italo-Brasileiro, Bizzarri enviou alguns exemplares para Guimarães, que logo o agradeceu, atencioso, através de uma carta, despendendo grandes elogios ao trabalho do tradutor.

Três anos depois, em 1962, Bizzarri recebe um exemplar de Primeiras Estórias com uma dedicatória de Guimarães. Prontamente envia uma carta em resposta, grato pelo presente, na qual aproveita para expressar seu desejo de escrever um ensaio crítico-interpretativo sobre toda a obra do autor e, para tanto, lhe pede informações complementares. Guimarães o responde, não apenas encorajando o estudo, mas sugerindo que se ocupasse também da tradução de outros textos seus, como os demais contos de Sagarana, além de comentar sobre as negociações com editoras italianas para a publicação de Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas: gostaria que Bizzarri se encarregasse destes também.

Na carta de 3 de dezembro de 1962, Bizzarri responde que havia decidido encerrar a carreira de tradutor. Comenta, ainda, que “Traduzir é praticar um exercício de estilo, uma pesquisa de interpretação; é, afinal, um ato de amor, pois trata-se de se transferir por inteiro numa outra personalidade”. Por já ter feito tudo isso com autores célebres como Melville, Henry James e outros, se dava por satisfeito. Ao final, no entanto, decide: “Autorizo portanto o ilustre Amigo – sempre que o achar oportuno e conveniente – a indicar aos editores italianos meu nome como eventual tradutor.”

Guimarães tinha o desejo de que Edoardo traduzisse, preferencialmente, Grande Sertão: Veredas. No entanto, por decisão da editora negociante – Feltrinelli -, acaba se encarregando de Corpo de Baile. Mesmo tendo confessado inicialmente a intenção de encerrar as atividades de tradutor, aceita o desafio, fazendo desse projeto o “ato de amor” que entende ser a tradução, como prova sua dedicação, revelada através dessas correspondências.

Carta de Bizzarri a Guimarães Rosa de 06/10/1963

Em 6 de outubro de 1963, Bizzarri envia a Guimarães o que chama de sua “primeira relação de ignorâncias e dúvidas” quanto ao texto de Corpo de Baile. Em resposta, Guimarães comenta como a lista do tradutor trazia sua “marca da inteligência sem cochilar e esse jeito de agarrar as coisas com mão sutil e firme”, de modo que já se via “vantajosamente traduzido” em suas mãos. “Sem piada, mas sincero: quem quiser realmente ler e entender G. Rosa, terá de ir às edições italianas”.

Para Guimarães, a tradução de Bizzarri para o italiano daria a real compreensão de sua obra não no sentido de ser estritamente fiel ao original, mas de apreender significações que talvez lhe tivessem escapado durante a elaboração.

Eu, quando escrevo um livro, vou fazendo como se o estivesse “traduzindo”, de algum alto original, existente alhures, no mundo astral ou no “plano das ideias”, dos arquétipos, por exemplo. Nunca sei se estou acertando ou falhando, nessa “tradução”. Assim, quando me “re”-traduzem para outro idioma, nunca sei, também, em casos de divergência, se não foi o Tradutor quem, de fato, acertou, restabelecendo a verdade do “original ideal”, que eu desvirtuara… (28.10.1963)

Nesse sentido, entende a tradução como um ato criativo e o próprio texto literário como uma produção co-participativa entre autor e tradutor. Assim, dá a Bizzarri autonomia para fazer as adaptações que achar mais adequadas, considerando as particularidades da nova língua na qual seu texto ganharia vida.

 

A traduzadaptação em funcionamento

Carta de Guimarães Rosa a Bizzarri de 11/10/1963

Nas correspondências, Rosa se mostra bastante preocupado em esclarecer para seu tradutor termos que lhe são obscuros, como mostra a carta de 11 de outubro de 1963 na qual desvenda para ele mais alguns termos. Sugere que uns permaneçam no original; outros, no entanto, teriam de traduzir-se ou “traduzadaptar-se”. Em resposta, Bizzarri diz que essas elucidações tiveram “grande valor de orientação poética, ainda mais do que lexical”, pois também entende que a tradução excede a simples transposição de palavras de uma língua para outra.

Com o pensamento alinhado ao de Guimarães, portanto, Bizzarri adere à “traduzadaptação”, como mostra sua tradução de alguns versos presentes na novela “Campo Geral”.

Meu cavalo tem topete,

topete tem meu cavalo.

No ano da seca dura,

mandioca torce no ralo…

(ROSA, 2001, p. 136)

Il mio cavallo ha un bel ciuffo,

un bel ciuffo ha il mio cavallo.

Quando la pioggia non viene,

il verde diventa giallo…

(ROSA. Trad. BIZZARRI, 2007, p. 117)

Embora não tenha empregado um termo correspondente à “seca” nesse trecho, conseguiu transmitir, da maneira que pôde, parte de seu significado. Desse modo, resgata uma imagem mais próxima do leitor italiano, que apreende pelo menos parte do cenário de estiagem que Guimarães tencionou transmitir.

Terminado o trabalho, Bizzarri faz um balanço na carta de 2 de abril de 1964. “Duvido, e muito, que a tradução tenha saído como eu almejava, como eu queria mesmo que fosse”, confessa. Atribui a insatisfação com a própria tarefa, em partes, aos curtos prazos que lhe foram impostos pela editora. Também se reconhece particularmente culpado e, por essa razão, somada ao cansaço, diz não estar em condições de “pensar em outras façanhas sertanejas”, referindo-se à oferta de traduzir Grande Sertão: Veredas.

Ainda assim, embora com menor frequência, continua trocando correspondências com Guimarães devido à amizade que cultivaram. A última delas, escrita por Guimarães em 20 de outubro de 1967, manifestava o desejo do autor de que um dia seu amigo tornasse a “vestir a roupa de campeiro, montado em cavalo malhado e saindo por essas chapadas e veredas sertanejas”, provavelmente se referindo à possibilidade de que voltasse a se dedicar à tradução de sua obra.

Trinta dias depois de ter escrito essa carta, no entanto, Rosa acaba falecendo. Talvez em homenagem ao amigo e a esse último desejo expresso, ao ser procurado novamente pela editora Feltrinelli, Bizzarri aceita traduzir Grande Sertão: Veredas. Assim, dá continuidade, de modo especial, ao legado deixado por Guimarães, honrando a confiança recíproca e a cumplicidade que estabeleceram em vida, traduzida por ele e pelo autor no entendimento alinhado que tinham sobre a tradução e nas cartas que trocaram.

Vá mandando, sem cerimônia, certo de que toda dúvida é fecunda. E de que nós dois, juntos, seremos fortíssimos, invencíveis. Você não é apenas um tradutor. Somos “sócios”, isto sim, e a invenção e a criação devem ser constantes. Com você não tenho medo de nada! (28.10.63)

Carta de Guimarães Rosa a Bizzarri de 28/10/1963

Referências

MINDLIN, José. Uma vida entre livros: Reencontros com o tempo. 4. ed. São Paulo: Edusp, 2008.

ROSA, João Guimarães; BIZZARRI, Edoardo. João Guimarães Rosa: Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.

ROSA, João Guimarães. Corpo de baile: sete novelas. Rio de janeiro: J. Olympio, 1956.

ROSA, João Guimarães. Miguilim. Edoardo Bizzarri (Trad.) 4. ed. Milano: Feltrinelli, 2007.

 

Alice Santana de Lima é graduanda em Letras – com habilitação em português e italiano – pela FFLCH-USP.

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